A descoberta de um escritor extraordinário
Por Rafael M. Fogaça*
Ao terminar a leitura de A coruja cega e outras histórias,
do iraniano Sadegh Hedayat, fiquei com uma sensação semelhante à que me tomou
depois de assistir ao filme Dançando no escuro, de Lars Von Trier, há alguns
anos. Fui tomado por profunda comoção, a ponto de, por algum tempo, perder o
sentido de orientação espacial. Composto pela novela que dá título ao volume e
uma coletânea de 14 contos selecionados pelo tradutor, cada narrativa explora
facetas diversas do lado mais obscuro da existência humana.
Em “A coruja cega”, narrativa em primeira pessoa, o
protagonista é um pintor viciado em ópio perseguido por alucinações que parecem
advir de uma vida anterior. Incapaz de viver entre as pessoas comuns, ele passa
os dias isolado em seu quarto, fumando a droga e escrevendo sobre
acontecimentos terríveis em que esteve envolvido, sem que o leitor saiba se
tais acontecimentos possuem ancoragem na realidade ou se não passam de delírios
decorrentes dos efeitos do ópio. Pela forma como expõe os acontecimentos,
lançando mão de recursos surrealistas e do fluxo de consciência, bem como do
patético que a história nos comunica, esta novela é uma obra-prima. Não por
acaso ela já foi traduzida para dezenas de línguas estrangeiras e tornou-se um cult
na Europa e nos Estados Unidos, a ponto de gerar toda uma variedade de cafés,
restaurantes, cervejarias e produtos chamados The Blind Owl. Há mesmo quem
tatue o título desta história no corpo, tal o impacto provocado por sua
leitura.
Quanto aos contos, vários deles são do mesmo nível literário
de “A coruja cega”, desenvolvendo técnicas e temas presentes no principal texto
do livro. Destaque para os excepcionais “O manequim atrás da cortina”, em que
um rapaz se apaixona por um manequim de loja; “O turbilhão da vida”, em que um
marido tem uma suspeita infundada de que sua mulher se envolveu com seu melhor
amigo, que acabara de suicidar-se; “Dash Akol”, em que valentão de subúrbio de
meia-idade vê sua vida revirar-se a ponto de ser destruída após se apaixonar
por uma mocinha bem mais jovem”; “Davoud, o corcunda”, em que um rapaz
marginalizado socialmente por suas deformações físicas cultiva um amor
desprezado por uma moça de seu meio, vindo a terminar na mais patética das
solidões; “Um cão de rua”, em que um cachorro se perde do dono durante um
passeio, sendo tratado com crueldade pelas pessoas com as quais passa a conviver,
sonhando com a volta à boa vida de antes, até encontrar um fim terrível; “O
homem que destruiu suas paixões”, em que um asceta islâmico tenta encontrar
elevação espiritual sob a orientação de um mestre, até frustrar-se com a hipocrisia e a mentira de seu guia, bem como
com a vida que desperdiçara... Bem, paro por aqui, senão vou citar todos os
contos enfeixados no volume, que são extraordinários. Neles Hedayat prossegue
em sua exploração do grotesco, do macabro, do pessimismo em relação ao ser
humano, das peças que a vida nos prega a todos. Isso numa escrita muito vívida,
compacta, exata, densa. Geralmente, a tensão provocada pelo encadeamento dos
acontecimentos se anuncia desde as primeiras linhas. Os desfechos são sempre
muito fortes, chocantes, trágicos no sentido grego da palavra. Nas histórias do
escritor iraniano, o ser humano é um bicho precário, incoerente, egoísta... tal
como na vida aqui mesmo, fora da literatura.
A sensação que tive com a leitura das narrativas de Sadegh
Hedayat foi a de um misto muito original de Kafka, Horacio Quiroga, Nelson
Rodrigues e As mil e uma noites. A trivialidade do absurdo no escritor tcheco,
o sinistro embebido no fantástico do escritor uruguaio, a exploração das
paixões humanas em chave grotesca no brasileiro e a capacidade de fabular e
manter o interesse pelo episódio seguinte, além de uma verdadeira enciclopédia
de costumes orientais, típicas da famosa compilação de histórias do Oriente
Médio e do sul da Ásia, contadas por Xerazade, compõem obviamente não um
conjunto de influências mas de afinidades eletivas do escritor iraniano. Uma
coisa que chama a atenção nos contos é a culturas literária que os personagens,
em geral pessoas comuns, possuem. Diversas vezes eles citam passagens de obras
clássicas da literatura persa. Soube que isso não é uma idealização do autor,
que de fato as pessoas comuns costumam ter muito boa cultura literária no Irã.
Infelizmente, pelo fato de o texto original ter sido escrito
numa língua tão desconhecida no Brasil, não dá para avaliar a acuidade da
tradução, realizada por Adriano de Paula Rabelo. No entanto, seja como for, o
texto em português é intenso e muito bem articulado, mantendo a atenção do
leitor até a última palavra. Rabelo parece ter privilegiado a fluência e a
recriação de certa coloquialidade da escrita de Hedayat, pois em diversos
momentos aparecem expressões como “caminha com o rabo entre as pernas e cai
fora rapidinho” (p. 147), “você está se fazendo de tonta” (p. 165), “esse cara
é doido” (p. 203), “ele teria feito Mirzá de palhaço” (p. 238), “chega, já
estou de saco cheio” (p. 258). Sem deixar de manter um pé na cultura iraniana,
o tradutor coloca o outro pé na cultura brasileira ao aproximar assim as falas
dos personagens iranianos de nossas falas coloquiais do cotidiano, o que torna
a leitura muito mais agradável. Mas expressões originais típicas às vezes
permanecem, sendo explicadas em nota, como “meter a pata do burro na lama” e
“bater no chão” (p. 124), formas grosseiras de se referir ao ato sexual. Vale
destacar ainda o texto introdutório e as notas do tradutor, que são necessários
e muito esclarecedores em se tratando de um autor, uma língua e uma cultura tão
pouco conhecidos no Brasil.
Enfim, A coruja cega e outras histórias é um dos melhores
lançamentos de autores estrangeiros traduzidos em 2021, a primeira do escritor
iraniano no Brasil, 70 anos depois de sua morte. O leitor de Hedayat que se
prepare para algo bastante diferente de tudo o que já leu, uma verdadeira
chacoalhada em todos os seus conceitos.
A coruja cega e outras histórias,
de Sadegh Hedayat. São Paulo: Minotauro, 2021, 326 páginas, R$ 63,20.
* Rafael M. Fogaça é Mestre em Estudos Literários pela Unicamp.
Comentários