Reimaginando Dom Quixote
Dom Quixote em penitência. Ilustração de William T. Wiley. |
São raros os livros que alcançam o
lugar de merecerem a atenção para projetos editoriais de valor inestimável. Dom
Quixote, de Miguel de Cervantes, é um desses. Recentemente, a tradução em
língua inglesa de Edith Grossman alcançou destaque no seleto catálogo da Arion
Press — casa que publica três ou quatro livros por ano sempre em tiragem
limitada e combinando textos clássicos com artistas contemporâneas.
A editora foi criada em 1974 e até
agora publicou quase noventa livros, incluindo trabalhos de artistas como John
Baldessari, Jasper Johns, Alex Katz, Robert Motherwell e Kiki Smith. A nova
edição da obra mais importante da língua espanhola que levou mais de dois anos
para sua composição é integralmente ilustrada por William T. Wiley. Como outros
projetos do tipo, é de tirar o fôlego de qualquer um leitor apaixonado por
livros.
Edith Grossman é uma das mais reconhecidas tradutoras de obras da literatura de
língua espanhola para a língua inglesa; com Cervantes, trouxe a esse agora
popular idioma, obras de Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa e Carlos
Fuentes, autores incontornáveis da literatura latino-americana. Para ela, Dom
Quixote é o primeiro romance moderno, o que justifica a presença invariável
da obra entre as importantes criações literárias e sempre à espera de novas
traduções e releituras pelas lentes de outras artes.
O livro interesse da Arion Press
foi publicado originalmente em dois volumes: o primeiro em 1605 e o segundo em
1615. Já a primeira tradução para o inglês data de 1611 e outras traduções se
multiplicaram muito rapidamente em toda a Europa. Uma edição totalmente
ilustrada do Dom Quixote apareceu pela primeira vez em Dordrecht, na
Holanda, em 1657; continha 24 ilustrações e dois frontispícios feitos provavelmente
pelo próprio impressor, Jacob Savery. E assim como se espalharam traduções do
livro, sempre foi fonte de interesse criativo para artistas de várias escolas e
épocas como Fragonard, Goya, Doré, Dalí e Picasso.
Toda essa tradição, representou a
primeira ponta do desafio proposto a William T. Wiley; a procura do editor
Andrew Hoyem pelo artista parece seguir o rastro do traço imaginado a partir da
ficção de Cervantes com o da representação pictural da personagem sábia e tola
de Mr. Unnatural, que aparece em várias pinturas e desenhos desenvolvidos por
Wiley, personagem, aliás, que o próprio artista chegou a interpretar em algumas
de suas atividades como performer.
As edições de luxo de Dom Quixote pela Arion Press. Foto: Reprodução / Arion Press |
Vencidos os medos, William T. Wiley
criou 97 ilustrações para os dois volumes do romance a partir das sugestões
propostas por Hoyem, quem enviou uma lista de episódios que, na sua opinião,
mereciam o registro numa imagem. A lista foi seguida em parte; o artista também
aproveitou para dar forma às suas ideias e nisso incluiu imagens icônicas como
a da protagonista do livro de Cervantes na luta contra os moinhos de vento,
contra os barris de vinho ou Sancho Pança transformado em peça numa cama de
vento.
O que coloca em destaque trabalhos
como o de Wiley, além da criatividade em propor releituras para imagens já
sedimentadas num imaginário, é a técnica. E o ilustrador se utiliza nas
ilustrações para o Dom Quixote de agulhas de gravação em filme, compondo
delicadas imagens que primeiro foram impressas como relevo em placas de
polímero. Retomadas, o artista fez correções e acréscimos às versões originais.
Depois, as imagens impressas em sépia ganham dois tons para o livro: em preto
para as ilustrações gerais e em marrom avermelhado para as que abrem os
capítulos do romance. É dele também a monograma que compõe as capas dos dois
livros.
Das ilustrações de Wiley chama a
atenção a que sintetiza um episódio talvez vivido pelo próprio Cervantes e que resultaria
na continuidade do romance de 1605. Sabe-se que a fama rapidamente obtida com o
primeiro livro levou ao aparecimento de uma variedade de falsos autores com
suas falsificações da narrativa do escritor espanhol. Este episódio colaborou
para que o autor original voltasse ao romance, oferecendo uma continuidade às peripécias
do cavaleiro da triste figura e seu fiel escudeiro para um desfecho total.
O próprio romance coloca em cena a
descoberta por Dom Quixote de uma gráfica que imprimia suas falsas aventuras —
episódio, aliás, que encena um dos primeiros tratamentos do tema ou tratamento
metaficcional numa obra literária. E Wiley criou uma imagem à parte para esta
ocasião intitulada “Dom Quixote numa gráfica em Barcelona”; o desenho constitui
certo mimo para o comprador interessado em investir US$ 4 mil no livro.
A edição começou a ser publicada
em 2021; o primeiro volume com 576 páginas e o segundo com 632 com encadernação
em couro de cabra costurada à mão e acomodada em estojo exclusivo. A tiragem é
de 400 exemplares numerados e registrados.
Ligações a esta post:
>>> No nosso Tumblr, ilustrações de William T. Wiley para a edição do Dom Quixote da Arion Press
>>> No nosso Tumblr, ilustrações de William T. Wiley para a edição do Dom Quixote da Arion Press
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