Os encontros como desertos férteis
Por Marcelo Moraes Caetano
Contam os sábios orientais que é
possível sentir o gosto do mel no interior de uma garrafa, mesmo que ela esteja
vedada com uma rolha ou algo semelhante. Para isto, basta vê-la, senti-la,
tocá-la... eu ousaria dizer: escutá-la.
A primeira característica notável
de O poder do encontro: origem do cuidado (São Paulo: Tumiak Produções, 2017),
do psicólogo e antropólogo Roberto Crema, é exatamente a que os sábios
orientais indicam. Ao percebermos o objeto livro que contém os sinceríssimos
relatos de viagem do velho ao novo paradigma, já se instila em nosso interior
um mel que, mais do que simplesmente doce, é também capaz de nos retirar do
estado de estagnantes para o ponto de mutação de mutantes... e daí para além.
A obra tem, por assim dizer, um
poder semiótico que se doa generosamente, como o mestre que aparece quando o
discípulo está pronto, e como o discípulo que aparece quando o mestre está pronto.
Traz um poder catalisador como “O livro vermelho”, de Jung, trazido à luz
extemporaneamente há tão pouco tempo. A sinergia que converge nesse encontro em
que “eu” e “tu” são muito mais do que “nós” só poderia ser nomeada – com todas
as limitações intrínsecas ao ato de nomear, pois Name ist Rauch und Schall¹ – como uma obra
que, entre outras travessias de mãos dadas, leva-nos ao centro do labirinto, à
iniciação que é o alfa e o ômega que nos permite tornarmo-nos quem somos.
A obra não tem mapa. Nem poderia
ter. Pois trata-se de um oceano profundo; muitas vezes de um deserto vasto;
trata-se, pois, de uma vivência em que mapas pouco importam, já que só as
bússolas, nesse caso, guiam-nos à Luz do Norte.
É preciso desenvolver muita
confiança no nosso Amigo Evolutivo mais experiente: Roberto Crema. Lembra-me um
conto oriental que narra que certo Mestre ordenou a um de seus discípulos que
entrasse no decurso de um rio que estava quase vazio e que só saísse de lá com
um comando seu. O discípulo o fez. Logo em seguida, o rio começou a encher-se
paulatinamente, pois vinham águas de afluentes seus. O rio foi enchendo cada
vez mais e mais, e o discípulo foi ficando submerso nas águas que já tocavam
seu pescoço. À margem do rio, sentado, o Mestre o olhava impassível. As águas
subiram mais e cobriram toda a cabeça do discípulo. O Mestre nada fez.
Passou-se um minuto, e o discípulo permanecia em seu lugar, submerso por
inteiro debaixo das águas, esperando o comando de seu Mestre. Neste momento, o
Mestre calmamente se levanta, entra no rio e retira o discípulo quase
desacordado – inebriado de confiança, eu ouso dizer – de dentro do rio.
Passados uns segundos, o discípulo se recompôs, seu pulmão encheu-se de ar.
Vida nova.
Sua vida encheu-se de um algo a
mais que não pode ser confinado à semântica das palavras. Essa pequena parábola
nos ensina sobre a confiança, a entrega, o êxtase, a perseverança, o tudo ou
nada, a plenitude, a fidelidade, a lealdade, o encontro, a transformação – em
outras palavras, o Amor. Há sempre certo risco no Amor, porque há sempre, em
algum momento, a necessidade imperiosa de nos colocarmos de alma despida nas
mãos de outros. Haja o que houver, custe o que custar: velit nolit. Para isso é
necessário haver, desde o início, confiança e fé na totalidade a que somos
convidados e nos Mestres que nos convidam.
É assim que, em muitos momentos,
nos vemos em O poder do encontro: embaixo das águas de um rio, afogados até
acima de nossas cabeças. Mas confiando em que seremos retirados de lá pelo
Mestre. Não é fácil, não é uma experiência racional, não se situa nas cercas do
ego, não poderia ser explicada por Descartes, Kant, Maquiavel, Hobbes, Bacon,
Berkeley...
Aliás, a própria essência da
Transdisciplinaridade, como síntese de diálogos permanentes e em constante
movimento, revela que as experiências mesuradas pela obra só poderiam unir a
ciência, a filosofia, a arte e as tradições espirituais, numa ponte epifânica cujo
alheamento tem causado ao ser humano o vazio existencial acusado por um Sartre,
o niilismo acusado por um Nietzsche, o mal-estar acusado por um Freud. Assim,
seria desnecessário tentar demonstrar o óbvio: as experiências que o Mestre nos
solicita a viver vão muito além – ou estão antes, através e além – da mera
cognição de uma inteligência intelectual ou lógica, passando pelas nossas
outras inteligências, que nos tornam demasiado humanos, culminando, talvez,
numa hierofania da Inteligência Espiritual.
Há momentos em que somos obrigados
a sermos nós mesmos e ao mesmo tempo este que está nos observando ao nosso
lado. Isso só é possível porque há uma quinta força que não exclui aparentes
paradoxos: como eu poderia ser eu mesmo e outro ao mesmo tempo?
Ora, acaso não é o que somos sem
que, simplesmente, muitas vezes, apenas não saibamos que o somos, sem que
deixemos de ser por essa única razão?
Essa quinta força é a abordagem
transdisciplinar holística, que respeita o percurso das grandes escolas da
psicologia – a psicanálise, a psicologia comportamental, o humanista e a
transpessoal –, reconhecendo-lhes, entretanto, limitações. A psicologia
transdisciplinar permite o encontro de todas as nossas “oposições”, de todos os
nossos “paradoxos” numa ponte em que resta apenas a transparência da essência
na existência e a sua consequente (e causal) pureza. Evocando o Fausto de
Goethe mais uma vez: “A pureza é a força última do universo”.
Um dos princípios de Hermes
Trismegisto – O princípio da Polaridade – ensina justamente que “Tudo é Duplo;
tudo tem polos; tudo tem o seu oposto; o igual e o desigual são a mesma coisa;
os opostos são idênticos em natureza, mas diferentes em grau; os extremos se
tocam; todas as verdades são meias verdades; todos os paradoxos podem ser
reconciliados”. Isso está colocado no livro com outros ensinamentos
análogos, como os de Lao-Tsé, quando afirma, por exemplo (na página 160), que
“diz o santo: aceitar todas as impurezas do reino é ser senhor do solo e dos
cereais. Aceitar os males do reino é ser o monarca do universo. As palavras da
Verdade parecem paradoxais”.
Dante dizia que para chegarmos ao
céu é preciso passarmos pelo inferno. Esse “paradoxo” é abraçado, amparado,
amado e transubstanciado no colo da transdisciplinaridade holística, que eu
vejo como um verdadeiro colo da Pietà, de Michelangelo, em que chumbo se torna
ouro nas hábeis e amorosas mãos perseverantes do Alquimista. (Sempre vi a
Virgem Maria como a Pedra Filosofal, daí o seu colo onde, do chumbo da dor de
Cristo, há a ressurreição na sua completa Transfiguração de Iluminado e
Desperto.)
Ninguém pode fazer essa travessia
tão enigmática (e muitas vezes amedrontadora) por mim. Mas há aqueles que podem
me dar a mão, para que a busca não seja aterrorizante. É preciso confiar no
coração que conduz essa mão – sublinho mais uma vez –, porque essa é uma
condição de possibilidade, como Torralba fala tantas vezes sobre a intuição no
desenvolvimento da inteligência espiritual, para que a vivência não seja
interrompida, ou seja, para que a lagarta não seja impedida de alcançar o seu
destino final: a borboleta.
A mão que nos guia nas sendas, nas
dunas, nos bancos de areia e nos arrecifes de coral são análogas às mãos de
Deus. “O que está embaixo é análogo ao que está em cima.” Assim na terra como
no céu. Essa circunstância inevitável me lembra um trecho em que Nikos
Kazantzakis, em O pobre de Deus, narra que certa vez perguntam a São Francisco
de Assis quem é Deus. O Iluminado responde: “Deus às vezes é um copo d´água, às
vezes é um incêndio...”
A experiência iniciática às vezes
é um copo d´água, às vezes é um incêndio...
Este livro foi um dos maiores
incentivadores a que eu escrevesse meu recente “Em busca do novo normal:
reflexões sobre a normose em um mundo diferente”. Tive e tenho, também, o
privilégio de ser aluno do Roberto Crema e da Glória Sobrinho, na Unipaz do Rio
de Janeiro, onde fui francamente incentivado a escrever e me aprofundar nesses
temas tão sensíveis ao mundo contemporâneo, em busca de reorganização pautada
em valores construtivos e sustentáveis.
Não é de forma alguma meu objetivo
redigir uma resenha vasta da obra, porque isso seria pretensioso e
reducionista. Mas é preciso dizer que Roberto Crema põe uma erudição que rebrilha
em harmonia com o “ornamento-coroa dos eruditos da terra das neves”, como se
canta no hino a Losang Dragpa, o Buda Je tsongkhapa, a serviço de uma verdadeira
psicologia ou pedagogia iniciática: um projeto de plenitude, uma utopia
realizável no microcosmo, no mesocosmo e no macrocosmo.
Essa erudição – muito mais do que
uma celebração, uma verdadeira reverência aos Mestres e seus ensinamentos – se
observa por exemplo no seu “diário de bordo” sobre os artesãos do Encontro. É
nessa toada que Crema aborda as contribuições primogênitas de Moreno, Buber,
Rogers, Berne, Perls, Toro, Freire e Weil. Sem permitir que “andemos a esmo
pela Terra”, como Satanás relata a Deus, no Livro de Jó, a sua (des)ventura em
nossa Gaia, a mão que nos guia no deserto e no oceano é capaz de brandir uma
bússola confiável, que nos leva ao que Allan Watts chama de “caminho da
libertação”, o que, como lembra Roberto Crema, chama-se “holopráxis” nos
jardins da Unipaz.
Ninguém anda a esmo quando sabe
aonde quer chegar. Mas, por sua vez, nenhum vento é favorável a quem não tem
aonde ir.
No fundo, só escrevi este texto
porque, de alguma forma, na minha subserviente condição de escritor, era necessário
que a minha expressão escrita tomasse a dianteira e construísse estradas à
frente de mim para que a caminhada, após o batismo de O poder do encontro, se
tornasse de alguma forma mais apolínea. Em outros termos, a heurística
dionisíaca da obra abraça a luminosidade de Apolo e solicita que Yin e Yang
dentro de nós se reencontrem para girar a Lemniscata do Infinito. E meu fanal,
escriba que sou, dá-se prioritariamente pela palavra inscrita.
Assim, como pequenos príncipes e
pequenas princesas, somos convocados a sair de nossos pequenos feudos ou
planetoides normóticos convidados à suprema das aprendizagens: aprender a amar,
o que significa entregar-se ao encontro (pessoal, onírico, transpessoal,
iniciático, transdisciplinar...), ao cuidado e à “vida em abundância”,
ensinamento central do Cristo. Isso significa viver plenamente conosco, com o
outro, com o planeta, com todos os níveis de consciência e com todos os
inconscientes que nos prefiguram: a coletiva, a simbiótica, a noética, a
angelical, a aberta...
Trata-se de uma obra catártica,
para quem está disposto a andar por desertos, labirintos e oceanos – não a esmo
– com a finalidade de aprender a aprender. Na teia da vida, os relacionamentos
tecem e entretecem caminhos e dias novos; e um galo sozinho não faz uma manhã. Quem
não se predispuser a educar os cinco sentidos por uma pedagogia iniciática que
leva ao encontro e ao cuidado talvez não seja capaz de permanecer no rio
enquanto as águas de O poder do encontro vão avolumando-se.
A confiança no Mestre é
diretamente proporcional ao desejo de autotranscendência que não mais tolera
viver a esmo nos descaminhos da patologia da normalidade que, num mundo de
medíocres, é a patologia da mediocridade.
A obra é para quem sabe que tem
asas e raízes. É para quem sabe que do húmus da Terra brotam as riquezas e os
alimentos da base da nossa árvore, e para quem não sofre de vertigem no momento
em que estiver alçando o mais alto dos voos sem o qual não valeria a pena a
aventura da existência inscrita na bem-aventurança da essência.
Nota:
Nota:
1 Nome é som e fumaça (Fausto, Goethe)
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