Joseph Brodsky

Por Ernesto Hernández Busto

Joseph Brodsky. Leningrado, 1972. Foto: Lev Poliakov.



Na primavera de 1972, Joseph Brodsky saiu da Rússia com um livro de John Donne na bagagem. Nesta imagem podemos depositar, talvez, alguns dos precoces desenvolvimentos de um poeta que, apenas cumprido os 32 anos, descobre o tema da velhice. Dedicará a John Donne sua “Quase uma elegia”¹, o primeiro de seus poemas importantes e também seu primeiro poema publicado na Rússia tão logo se confirma o eclipse de seus censores. Como uma herança do poeta inglês, Brodsky arrastará sempre o gosto pelo paradoxo, uma impureza de origem que recorda aquela “sombra do motivo impuro” que T. S. Eliot, com a severidade mestra, impunha sobre Donne.

Para trás ficava o Império, adiante, as ilhas: a medida dessa perda (“ato que iguala a Deus com os humanos”) é incomensurável. Durante muito tempo as experiências poéticas de Brodsky não serão novidades, apenas o prolongamento memorioso de sua vivência russa: o grande exemplo é a arquitetura bíblica de Sretenie (antigo termo na sua língua de origem que significa “encontro”, mas que designa também a apresentação de Jesus ao Templo: Lucas 2, 22-36) em que se descreve a passagem do Velho para o Novo Testamento. Ou, arriscaríamos, a passagem do Velho ao Novo, entidades opostas num dilema religioso, mas reconciliáveis na poesia. Em Sretenie (traduzido para o inglês como Nunc Dimittis) o principal protagonista é Simão, quem também aparece num poema de Eliot (“Song for Simeon”, 1928) como símbolo humano da conversão, uma paragem entre as dúvidas.
 
Mas, à metade dos anos 1970, Brodsky evita qualquer credo e avança cada vez mais na direção do fragmento, para o jogo linguístico, para o calembour. Um bom exemplo é o seu “Mexican Divertimento”, um longo poema de tom voluntariamente paródico que repete uma vez mais o embate moderno entre analogia e ironia. O princípio orientador desse embate teria se estabelecido de antemão: “de cada qual permanece uma só parte do discurso”; a continuidade se torna uma utopia desfeita pelas declarações apodíticas. Os opostos (geográficos, sentimentais, estilísticos) não se superam: se alternam e se encontram. A distância se exibe com a solidão: “o homem ao quadrado”.
 
O símbolo persistente dessa dialética irresoluta é muito antigo: é a água que invade a poesia de Brodsky, elemento que une e que divide; reflexos de uma Veneza invernal e sedutora, aquário onde a gente transita como peixes de sangue frio. Os cenários mudam, mas estão sempre ameaçados pela ruína: a Inglaterra brumosa, a Veneza carcomida, a Roma como um jardim de pedras, o atapetado Jardim Borda de Cuernavaca  (“Maximiliano não reconheceria o lugar./ Não há bustos nos nichos,/ os pórticos estão envelhecidos, os muros cravam suas gengivas na descida”) ou aquele pomar decadente no qual desperta um novo Odisseu (“arbustos, túmulos, o grunhir dos cerdos”). E toda essa destruição, interna e externa, contada sem o menor drama. Elegiacamente.
 
Essa distância também era necessária para falar da História com um tom neutro, antipanfletário. Aí estão os Versos sobre a campanha do inverno de 1980 (a invasão soviética ao Afeganistão), ou “Sobre a morte de Zhukov”. Mas Brodsky não foi nunca um poeta político. Num poema de 1977, “Quinto aniversário”, se redescobre em meio dos fulgores de uma paisagem mental, e define o exílio como um ato do destino, reservado a quem “não amava a vulgaridade nem beijava as efigies”.
 
Fala-se muito sobre o rosário de suas influências: o acmeísmo russo de Tsvetáieva, Mandelstam e Akhmátova (quem batizou o círculo de Brodsky e seus amigos hebraicos como um “coro angelical”), de Derzhavin e Baratinsky, poetas russos do século XVIII, e sobretudo da poesia inglesa: John Donne, W. B. Yeats, W. H. Auden e T. S. Eliot. Acima dessa plêiade organizada de maneira rápida, Brodsky é o arquétipo, solitário, do poeta moderno em língua russa: o “filho do barro”, o primeiro profeta (irônico) de uma tradução da ruptura. Sua poesia abandona uma visão unitária do mundo, um contexto e até uma métrica tradicional. Seus versos são desajeitadamente longos para a norma da poesia russa. Blók, por exemplo, opinava que um poema não podia passar de entre dezesseis ou vinte versos; em Brodsky o mínimo são cinquenta. Versos que se alongam muito, que seguem necessidades próprias, enjambements febris: o poema como “uma torre de palavras que nunca chegará a ser construída totalmente”.
 
Do meu ponto de vista, Brodsky abusou da ironia em detrimento do princípio analógico. Ou para utilizar uma metáfora de Octávio Paz, quebrou a ordem analógica a partir da qual se lê o mundo, para entrar no mundo da exceção, do bizarro, do necessário mas também do infausto. Alguma vez definiu um de seus poemas como “uma mistura de Mozart e de Beckett”. Essa é uma graça que nos faz pensar. Muitos de seus poemas abandonaram o concerto para pagar tributo à ironia: era talvez o preço de uma consciência da História, de sua história.
 
Esse movimento pendular entre a analogia e a ironia coincide em seu caso com uma oscilação entre duas línguas: o russo e o inglês. A segunda (aprendida, segundo sua própria confissão, para entender-se com Auden) o permitiu aprofundar o diálogo com a tradição da poesia moderna. Depois de alguns anos no exílio, Brodsky não apenas traduzia seus poemas de uma língua para outra mas também comunicava ambos idiomas por meio da poesia: mudava seus livros para publicá-los em inglês, traduzia livremente muitos versos, omitia e agregava, convertia seu Quinteto num Sextet graças a uma estrofe final, escrita diretamente em inglês, com a qual polemiza com a religiosidade construtiva de um verso de Eliot (“Into the crowned knot of fire”.)
 
O impulso babélico do poeta moderno o permite a todos esses cruzamentos que às vezes chegam a roçar o nonsense ou no melhor dos casos, o divertiment. Mas, Brodsky perdeu algo com o seu monolinguismo original: esse complexo sentido musical, esse princípio construtivo da poesia russa. Algo ganhou, também: o desenfado de seu prosaísmo foi o caminho pelo qual muitos leitores de língua inglesa se iniciaram em “seu Brodsky”.
 
“Parte do discurso” é talvez seu melhor poema porque aqui a vontade crítica de uma consciência insatisfeita procede mais por refinamento que por inovação, um reconhecimento de traços evolutivos mais que uma absoluta mudança de registro. Sob este título, Brodsky recolheu uma série de poemas breves cujo denominador comum é a obsessão pelo idioma, mais ou menos disfarçada com outras obsessões pessoais. (Ao leitor não-russo estranhará, por exemplo, a palavra “marciembre”, que é na verdade uma citação retirada de Diário de um louco de Gógol, uma palavra composta de “março” e “setembro” que significa “um dia qualquer de um mês qualquer”).
 
“Parte do discurso” anuncia o que depois prosseguirá na poesia de Brodsky: a separação entre (o) sujeito e (o) predicado, a descolocação verbal. O discurso lido por ocasião do recebimento do Prêmio Nobel de Literatura em 1987 resume com elegância esta fé negativa: a intranscendência no mundo da Palavra, da Poesia. Nesse sentido, Brodsky é um poeta físico, um poeta que descreve a contradição entre o espaço, o tempo e os sentidos: “o espaço é a ausência de corpo em cada ponto”; “o tempo é maior que o espaço”; “Só para o som o espaço é estorvo: / O olho não se lamenta pela ausência do eco”... Nenhum outro poeta moderno fala tanto da Intempérie ou de sua extensão na memória. Sua musa não é Calíope nem Terpsícore, nenhuma de suas “artísticas” irmãs (relacionadas com as emoções e os sentidos), mas Urânia, matrona do conhecimento estelar, do espaço puro, da extensão fria, no meio da qual o homem é como uma elevação, uma elevação de formação lodosa formada por pedras e o barro que arrasta o glaciar. (Brodsky dedicou um poema bastante explícito à Urânia que começa com um verso ideal para um irônico epitáfio: “Tudo tem um limite, inclusive a tristeza...”).
 
Não sei se seus últimos poemas, muitos dos quais escritos em inglês, permitiram Brodsky reconciliar com algum credo unitário: é possível adivinhar em seu interesse crescente pela Antiguidade certa nostalgia cosmopolita, “histórica”. Também deixou alguns poemas de amor excepcionais (os dedicados a M. B., recolhidos em Novas estâncias para Augusta) e vários livros de ensaios perfeitos. Sua morte repentina em 1996, nos privou cedo de um grande escritor e se confirmou, ao mesmo tempo, a desmesura de todo destino moderno.

Nota da tradução:
1 Neste texto os títulos de obras e citações de Joseph Brodsky são a partir do inglês. Este caso é exceção, visto existir a tradução brasileira realizada por Boris Schnaiderman e Nelson Ascher.  
 
* Este texto é a tradução de “Joseph Brodsky (1940-1996)” publicado na edição n.232 da revista Vuelta editada em março de 1996.

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