Harriet Beecher Stowe, alguns caminhos

 
Harriet Beecher Stowe. Foto: Arquivo Life

 
Conta-se que quando Harriet Beecher Stowe conheceu Abraham Lincoln em 1862, durante a Guerra Civil estadunidense, o presidente a teria saudado da seguinte maneira: “So you’re the little woman who wrote the book that started this great war!”.  De família tradicional e educada nos limites da cerrada tradição cristã, Stowe era nessa ocasião uma figura popular, desde quando publicou A cabana do pai Tomás, uma das primeiras obras de ficção a colocar negros escravos como protagonistas da narrativa. Isso somado aos debates antiescravocratas então dominantes foi uma combinação revolucionária, ou melhor, incendiária. O suficiente para inscrever sua presença no rol das grandes criadoras da literatura universal.
 
O convívio com a luta abolicionista nasce a partir de quando os alunos do pai de Beecher Stowe — o reverendo Lymar Beecher — lançam-se publicamente numa empreitada pela lei de libertação que resultou na perseguição de escravagistas ao jornal-epicentro da revolta. Foi dela, nesta celeuma, a atitude de escrever uma carta ao editor do Cincinnati Journal, assinada com pseudônimo masculino e em defesa do abolicionismo a partir de uma leitura da Primeira Emenda.
 
Bom, com a fama da escritora, o livro começa a ser tratado como uma arma de protesto contra a escravidão nos Estados Unidos do século XIX — daí, irradia para todo o resto da América e chega alcançar sua presença entre nós, merecendo atenções de nomes variados como José de Alencar e Machado de Assis; este último, então jovem, menciona pela primeira vez a obra de Stowe numa crítica sobre Mãe, uma peça redigida por aquele: “Esse drama, essencialmente nosso, podia, se outro fosse o entusiasmo de nossa terra, ter a mesma nomeada que o romance de Harriette Stowe, fundado no mesmo teatro da escravidão.”
 
A peça de Alencar, encena uma circunstância inusitada: uma escrava dá à luz um filho que, ignorando saber dela como sua progenitora, se torna senhor de sua mãe. Hélio de Seixas Guimarães¹ observa que as alusões ao romance da escritora estadunidense são explícitas: os jovens protagonistas da peça, Jorge e Elisa recuperam os mesmos nomes dos jovens escravos fugitivos de A cabana do pai Tomás.
 
Sabe-se que este romance se construiu do contato de Harriet Beecher Stowe com a vida de escravos numa colônia em Cincinnati, onde viveu por quase duas décadas depois de se casar. Se Lincoln chegou realmente a insinuar que o livro dela se tornou a pólvora para o estopim da guerra ou não, a história não guardou registros oficiais. Mas, a lenda certamente terá se constituído no interior de um sucesso que até então nenhuma obra literária escrita nas Américas havia alcançado.
 
A ação de A cabana do pai Tomás se passa em Kentucky, então um dos principais centros de comércio escravocrata, para onde foi viver, depois de Cincinnati. Um rico proprietário se vê forçado a se desfazer do melhor de seus escravos, Tomás, e o menino Henry. No segundo caso, Eliza, a mãe da criança, foge levando consigo o menino. Já o destino da personagem-título do romance é mais triste e dramático: nas mãos do novo dono se faz um homem melancólico, apartado da família original; o que lhe apetece é o convívio com a pequena Evangeline Saint-Clare, quem convence o pai a adquirir o escravo. A morte da menina, porém, faz com que ele caia outra vez em mãos de outro proprietário: o sanguinário Simon Legree, que, dentre outras tarefas, o obriga aos maus-tratos contra os outros de sua mesma condição.
 
Este texto aparece primeiramente num folhetim da revista The National Era entre junho de 1851 e abril 1852 — no ano final, com o alto sucesso das vendas, logo em março, antes do ponto definitivo nas entregas, publica-se como o livro que agora conhecemos. A primeira edição aparece com tiragem de dez mil exemplares, um alto número, se atentarmos para as limitações do tempo: tratava-se da obra de uma estreante, uma mulher e com um drama que só causaria maior impacto — se considerarmos as erradas definições do tempo corrente — entre pessoas que não liam, os negros escravos. Mas, apenas na primeira semana, venderam-se as dez mil cópias e no primeiro ano, A cabana... alcança tantas reedições que as vendas chegaram aos trezentos mil livros e se tornou o epicentro de um acalorado debate na sociedade estadunidense dividida entre defensores e detratores do abolicionismo.
 
Desde então, a obra amplamente traduzida, levando sua autora a figurar entre os importantes nomes da literatura de língua inglesa. Quer dizer, um feito que ainda derrubava outras muralhas: as que limitavam o papel da mulher, este que a própria Stowe, mais adiante começará a descrever por relação de comparação com a vida das escravas. Basta dizer que A cabana do pai Tomás não foi um livro concebido na dedicação exclusiva ao ofício de escrever, mas produto cerzido nos pequenos instantes entre as inúmeras tarefas domésticas de mulher que precisava cuidar da casa, do marido e de sete filhos.
 
É verdade que o marido de Stowe — Calvin Ellis Stowe, um viúvo, linguista e estudioso da Bíblia que ela conhece quando se integra ao círculo Semi-Colons, em 1833, depois de publicar com a irmã Catharine um livro de geografia para crianças — se fazia acreditar no companheirismo, mas sempre se deixava tomar pela cólera quando o assunto eram as atividades da mulher. Harriet pouco colheu financeiramente do estrondoso sucesso; os retornos financeiros foram parcos e só mais tarde o Estado se propôs reparar com uma vida que a permitiu a família levar uma vida confortável e ela continuar com seu interesse pelo trabalho como escritora.
 
Mais que as vendas, uma medida do sucesso desse romance pode ser dada pelas traduções imediatamente à publicação; em língua portuguesa, por exemplo, Hélio de Seixas Guimarães esclarece que o livro teve pelo menos três traduções já no ano de 1853, uma delas, direta do inglês e com vocabulário destinado aos leitores brasileiros — a tradução de Francisco Ladislau. Além de Alencar e Machado de Assis — este, aliás, volta a se referir à Cabana cinco anos depois da crítica sobre Mãe e noutras ocasiões adiante —, as influências de Stowe logo atravessaram toda a literatura abolicionista no nosso país; sabe-se que João Clímaco Lobato, toma de empréstimo o livro da escritora estadunidense e refaz o enredo em tom contrário ao abolicionista: a partir do registro de um crime de 1850-51 no Maranhão, escreve sobre o assassinato de um fazendeiro escravocrata pelas mãos do escravo Mateus. Mal lido, foi censurado.
 
Amigo de Maria Firmina dos Reis, eis o caminho palmilhado para que a maranhense, também ciente do drama da escravidão no Brasil, siga os passos da Cabana; o resultado é Úrsula, saído em 1859. Embora não dedicado ao tema desenvolvido por Harriet Beecher Stowe, afinal estamos diante de uma comum história de amor impossível entre integrantes da classe latifundiária, comparece com frequência a vida, o sofrimento e os desmandos do senhorio contra os negros escravos; é singular aqui, a centralidade da voz de uma personagem secundária de relevância, a preta Suzana, fazendo-se denunciadora do desterro padecido desde quando arrastada de sua terra natal. Soma-se a estes episódios, o fervor cristão com o qual a narrativa de Firmina dos Reis pinta seus escravos. Isto é, ao contrário de Clímaco, a amiga aproxima-se da dicção de Beecher Stowe, atribuindo pelos tons dramáticos certa denúncia de um danoso regime do qual o Brasil foi um dos últimos países a se desfazer e, claro, mais devido às pressões internacionais que por iniciativa própria.
 
De acordo com Joan D. Hendrick, autora de Harriet Beecher Stowe. A life, a escritora estadunidense se apropria de narrativas ouvidas dos escravos e transpõe para a ficção sem citar ou se preocupar com o registro documental das fontes, uma atitude que parece praticada por Maria Firmina dos Reis, tal como a propriedade de alguns discursos é sustentada — outra vez, o relato da preta Suzana é singular nesse sentido.
 
Outro traço que alinhava as duas obras está na figuração do matriarcado como modelo social. As duas casas em destaque em Úrsula, para citar o nosso romance, estão centradas por mulheres vitimadas pela intolerância radical de homens que se sentem seus posseiros. Stowe nunca esteve do lado do feminismo radical, tal como a irmã mais nova, Isabella Beecher Stowe; e mesmo favorável ao voto das mulheres, nunca foi uma militante. Mas, a elas, a autora de A cabana do pai Tomás acreditava como uma alternativa para uma sociedade justa e equilibrada e mesmo a possibilidade de reconstrução de um país fundado e dividido pelas amarras do poder patriarcal. Isso se justifica pela maneira como o romance expõe a aceitação passiva do Pai Tomás à escravidão e o gesto de fuga de Eliza. Seu romance é assim um apelo às mulheres de seu país; entrevistas como mães da nação, a elas atribui a responsabilidade moral de perpetuar ou derrubar a escravidão como instituição que cisão entre gentes de mesmo sangue — humanos.
 
Agora, da mesma maneira que se colocou na contramão dos feminismos do seu tempo, é muito provável que, embora tenha feito do tema do abolicionismo uma recorrente desde sua primeira atuação pública como escritora, se sentiria profundamente incomodada com o apelo político que fizeram de sua obra, sobretudo, porque seu interesse pareceu se centrar exclusivamente na composição de um romance com voz própria e natureza estética capaz de se colocar entre as produções literárias vigentes; nota-se a apropriação que faz da chamada literatura de salão, o único estilo praticado por mulheres escritoras no seu tempo, e a tarefa de dirigir o tom de sua voz narrativa para o papel da reflexão instrutora. Preocupada com a qualidade da escrita — mais que com o tema —, Harriet Stowe assim se mostra numa carta a George Eliot: “Você já pensou no poder rítmico da prosa, como cada escritor, quando se aquece, cai num certo balanço e ritmo peculiar a ele, as palavras todas tendo seu lugar e as frases sua cadência?”
 
Não foi apenas A cabana do pai Tomás o seu romance. Depois deste livro, se destacou com The Minister’s Wooing (1859); escreveu ensaios sobre a vida social e sobre outras obras e escritores. O mais célebre é um artigo que saiu em The Atlantic em 1969 alegando que Lord Byron teve um caso incestuoso com sua meia-irmã; reconhecida na Inglaterra desde um ano depois de seu romance mais famoso, o texto criou um alvoroço no país e significou um recrudescimento do interesse dos seus leitores pela sua obra — ou seja, parece que estamos diante de um caso simultâneo de fake news e cancelamento. Terá razão E. L. Doctorow quando afirma que Stowe era uma figura “que conseguiu desenhar ao longo de sua vida todas as grandes batalhas morais e culturais de seu século”². E, talvez, uma precursora dos subsequentes.
 
Notas
1 O texto referido é “Pai Tomás no romantismo brasileiro”, publicado na revista Teresa (São Paulo, 2013, p.421-429). As referências sobre os textos dos escritores Machado de Assis e José de Alencar estão registradas neste trabalho.
 
2 De “Out of the parlor and into the fray”, publicado em New York Times Book Review (Nova York, 1994, p.3-4).
 

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