Guimarães Rosa aporta no Uruguai
Por Guilherme Mazzafera
Não foi sem alguma surpresa que me
deparei há alguns anos com um livrinho de Guimarães Rosa publicado no Uruguai.
Intitulado Con el vaqueiro Mariano — relatos (Ediciones de la Banda Oriental,
1979), com tradução de Washington Benavides e Eduardo Milán, o livro reúne duas
narrativas fundamentais de momentos de escrita distintos na obra de Rosa: o
próprio “Com o vaqueiro Mariano” e “São Marcos”. Este, extraído de Sagarana
(1946), funciona como uma espécie de núcleo linguístico da obra de estreia,
delineando uma poética precisa que tanto valoriza o “ileso gume do vocábulo”
como a tensão inelidível entre as instâncias letrada e popular de linguagem,
imortalizada no duelo poético em gomos de bambu protagonizado pelo narrador em
primeira pessoa e seu rival, “Quem-será”. A importância deste texto para a obra
rosiana é indicada pelo próprio autor quando indagado sobre a gênese das
narrativas do livro assim como, por exemplo, nas minuciosas instruções sobre o
texto enviadas a Harriet de Onís, sua tradutora norte-americana. Além disso,
“São Marcos” foi republicado na revista Vamos ler já em 1947 e, mais
recentemente, figura como texto de abertura dos Melhores contos (Global,
2020), coletânea organizada por Walnice Nogueira Galvão, uma das mais
conceituadas intérpretes de Rosa entre nós.
A inclusão de “Com o vaqueiro
Mariano”, por sua vez, é certamente mais interessante, a começar pelo lugar que
esta narrativa ocupa na bibliografia rosiana. Um dos múltiplos textos derivados
da viagem de Rosa ao Pantanal em 1947, a narrativa foi publicada em três partes
no Correio da Manhã (1947-48); reunida em livro de tiragem limitada, com
consideráveis modificações, em 1952; e, por fim, incorporada, com sutis
mudanças, ao póstumo Estas estórias (1969). O texto formula de forma
mais ostensiva alguns dos impasses narrativos sutilmente presentes em Sagarana,
sobretudo quanto a transmissibilidade da experiência, que Rosa buscará
confrontar com os livros de 1956, tanto em primeira quanto em terceira pessoa (Grande
sertão: veredas e Corpo de baile, respectivamente). Em “Mariano”, por
exemplo, Rosa já experimenta a técnica do monólogo dialógico, da qual lançará
mão com notáveis efeitos em seu único romance e em “Meu tio o Iauaretê” (1961,
republicado, com alterações, em Estas estórias). Compondo uma curiosa
entrevista com respostas a perguntas não visíveis no texto, Rosa ainda não
entrega a palavra por completo ao outro, reportando suas falas em discurso
indireto, resultando em um (im)possível diálogo marcado pela técnica suspensiva
de contar utilizada pelo vaqueiro e que avulta à comunicabilidade direta apenas
em seu fecho. Diferente de “São Marcos”, no qual o leitor se encontra imerso na
narrativa desde o início, “Com o vaqueiro Mariano” apresenta uma construção
mais parcimoniosa, que mescla o sabor de reportagem à elaboração ficcional,
culminando em um conto-retrato (que forma um instigante díptico com “O mau
humor de Wotan”, de Ave, palavra) que aponta tanto para uma indeterminação
formal constitutiva, prolificamente difusa na obra rosiana, como também expõe,
sem cabotinismo, os bastidores da própria ficção.
Washington Benavides (1930-2017)
foi um nome importante da poesia uruguaia, além de crítico, músico e tradutor.
Escreveu diversos prefácios para as Ediciones de la Banda Oriental e foi
pioneiro na tradução de grandes nomes da literatura brasileira em seu país, como
Gregório de Matos, Oswald de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Guimarães
Rosa, Clarice Lispector, Haroldo de Campos e Décio Pignatari. Os três primeiros
comparecem em Poesía y transcreación: abordajes a la literatura brasileña
[Poesia e transcriação: abordagens da literatura brasileira] (Biblioteca
Nacional, 2007). Quanto a Rosa, além do livro aqui comentado, Benavides publicou
“Los Zoo” y otras prosas de João Guimarães Rosa: los fueros de la nostalgia
en la extensa "animalia" y la inacabable flora, dispersa en su obra
[“Os Zoo” e outros textos de João Guimarães Rosa: o âmbito da nostalgia na
extensa “animalia” e na infindável flora, dispersa em sua obra] (Ediciones de
la Banda Oriental, 1993), composta pela série “Zoo” e outros textos de Ave,
palavra (1970).
Apresento abaixo a tradução do prefácio
escrito por Benavides para Con el vaquero Mariano — relatos, que procura
introduzir a vida e obra de Rosa aos leitores uruguaios. Para os leitores
brasileiros o texto não traz grandes novidades, até mesmo porque o prefaciador
se apoia continuamente em nossos críticos, sobretudo Paulo Rónai (dependência
esta que resulta em uma atribuição errônea na mais longa das citações,
originalmente de Leo Gilson Ribeiro, como indico em nota), mas, ainda assim, trata-se
da primeira tradução para o espanhol destas duas narrativas (um breve trecho de
“São Marcos” já havia aparecido em uma sintética antologia publicada por uma
revista madrilenha em 1967) e, mais do que isso, da primeira publicação
uruguaia da obra rosiana. Os leitores de espanhol, sobretudo os europeus, já
dispunham de algumas traduções — Gran sertón: veredas e Primeiras
histórias foram publicados pela Seix Barral em 1967 e 1969, respectivamente
—, mas na América Latina, somente “La oportunidad de Augusto Matraga” (1958) dera
as caras em uma revista argentina lançada mais de vinte anos antes.
Diante deste cenário, a escolha
destas duas narrativas não deixa de espantar um pouco, já que nenhuma delas
possui um apelo tão evidente em termos de enredo, espraiando-se com algum vagar
na contemplação da natureza e encenando embates, em diferentes graus de
intensidade, entre a cultura rural e citadina. A opção por tais textos parece
residir no gosto pessoal do prefaciador, que, poeta ele mesmo, se deleita com o
apuro linguístico do autor mineiro e com a novidade, o sabor e a precisão
poética de suas imagens, das quais recolhe suas favoritas. O tom talvez um
tanto encomiástico do prefácio — algo razoavelmente comum em parte dos estudos
rosianos — pode ser desculpado, a meu ver, pelo pioneirismo da intenção.
Minha tradução é acompanhada por
algumas breves notas nas quais busco corrigir ou completar informações presentes
no texto. Uma análise detida das traduções certamente levantaria questões
interessantes para além de qualquer julgamento sumário, mas, infelizmente, ela
terá que aguardar uma outra ocasião. Fiquemos, por ora, com o apaixonado
prefácio de Benavides.
A narrativa de João Guimarães
Rosa
Por Washington Benavides
João Guimarães Rosa nasceu em
Cordisburgo, Estado de Minas, em 1908. Para acompanhar o desenrolar de sua vida
convém recordar o que ele disse sobre sua infância (ou a infância) em uma
entrevista: “É um tempo de coisas boas, mas sempre com pessoas grandes
incomodando a gente, intervindo, comentando, perguntando, mandando, comandando,
estragando os prazeres. Recordando o tempo de criança, vejo por lá um excesso
de adultos, todos eles, mesmo os mais queridos, ao modo de soldados e policiais
do invasor, em pátria ocupada. Fui rancoroso e revolucionário permanente,
então. Já era míope, e nem mesmo eu, ninguém sabia. Gostava de estudar sozinho
e de brincar de geografia. Mas, tempo bom, de verdade, só começou com a
conquista de algum isolamento, com a segurança de poder fechar-me num quarto e
trancar a porta. Deitar no chão e imaginar histórias, poemas, romances, botando
todo mundo conhecido como personagens, misturando as melhores coisas vistas e
ouvidas.”
A infância de Guimarães Rosa será
uma fonte de estímulos criadores. Sua miopia e a descoberta do mundo, por meio
dos óculos, irão se projetar em formidáveis novelas; veja-se o exemplo do
menino protagonista de “Campo Geral”, novela de abertura de Corpo de baile,
ciclo de novelas editado em 1956. A preocupação de “olhar para o mundo” será
constante em Guimarães; a obsessão com a cegueira pode assim ser compreendida,
e comparece neste livro na narrativa “São Marcos”. Mas a infância está presente
em toda a sua criação, como indicado por ele na entrevista que transcrevemos e
na intenção de escrever (não teve tempo) um “pequeno tratado de brinquedos para
meninos quietos”. No entanto, em sua obra dispersa, que começa a ser reunida
por decisão de Vilma, sua filha, e da Livraria José Olympio Editora, do Rio de
Janeiro, deparamo-nos novamente com o encanto da infância; vemos, com as lentes
mágicas de Guimarães Rosa, as inquietantes possibilidades de um mundo que
parecia dormente e opaco. Para dar um exemplo: o livro póstumo Ave, palavra
(1970), que reúne contos, artigos de jornal, poemas, ensaios e notas, dos quais
emana a veia humorística e infantil (em sua visão das coisas) de Guimarães,
sustentada por uma imensa fé nesta vida e uma sabedoria poética que salta
(lebre) de cada página. Ou suas notas sobre zoológicos e aquários, que foi
conhecendo em sua vida errante de diplomata-escritor, e toda a seção denominada
“Jardins e riachinhos”, na qual reaparece a integração homem-natureza, que
provocou tantas análises interpretativas desde o seu famoso Grande sertão:
veredas (1956), que tem como subtítulo — não nos esqueçamos — “O diabo na
rua, no meio do redemoinho...”. A esse respeito, Milton Vargas escreveu, na
revista Diálogo 8, de São Paulo: “a presença sentida em toda a leitura
do livro, de uma potente energia que a tudo comove e que produz a impressão de
que todo o fluir da narração é movido por um ímpeto vital que anima personagens
humanos, animais e a própria natureza [...] a inesgotável fonte de tudo.”1
Esta reflexão é totalmente válida
para as obras que reunimos neste volume de “Lectores de Banda Oriental”, o
conto-reportagem “Com o vaqueiro Mariano” (editado em Niterói em 1952), e a
narrativa “São Marcos”, que integra o livro Sagarana (editado no Rio em
1946). Em ambos, através do tempo, Guimarães Rosa descobre ou redescobre a natureza,
descrevendo-a, recriando-a, criando-a de forma duradoura. Quase com uma força
sacerdotal, o grande escritor mineiro se volta para a visão de sertões e
bosques, nas secas ou nas inundações, na planície ou na serra, fixando, com
velhas palavras, com o vocabulário do sertão ou do índio, ou com neologismos
perfeitos, entremeio dos cultos com os de essência popular, a fauna e a flora;
mas a fauna e a flora em atividade, sem a ociosidade das descrições da
novelística do passado. Guimarães Rosa se propôs (e cremos que conseguiu) a
representar a natureza com uma técnica comparável unicamente à cinematografia.
Ainda nas obras de sua primeira ou
segunda época, como as que aqui apresentamos, o revolucionário da forma, o
experimentador vem ao nosso encontro, cativando-nos, por um lado, com a força
de sua narrativa, e apanhando-nos, por outro, no forte emaranhado de suas
vinhas poéticas, absolutamente necessárias para nos oferecer a cosmovisão de
seu engenho criador. Graça Aranha, no seu Estética de vida, diz que “essa
própria terra, que o brasileiro combate e martiriza, se lhe torna objeto de
veneração e amor”. Veneração e amor brotam destas páginas. Se por vezes o
leitor da narrativa em voga (e passiva?) se vê deslocado, e perde o pé, temos
certeza de que logo voltará a se estabilizar, porque esta criação sempre
oferece apoios para se segurar nesse magma de fascinação impressionante, para
acompanhar o Narrador em suas peripécias, em seu colóquio de palavra e ação
junto ao vaqueiro Mariano, uma espécie de Virgílio silvestre, para a
compreensão deste mundo insólito do Pantanal de Mato Grosso — o qual, em um
livro de Geografia, Ronald Murphy define como “A terra do Dilúvio”, a terra dos
“cavaleiros d’água”. Ou acompanhar o personagem de “São Marcos”, para quem, sem
qualquer dúvida, a natureza é um objeto de “veneração e amor”; mas também — e
aqui tampouco cabem dúvidas — terá que acompanhá-lo em sua relação, nem sempre
amistosa, com o próximo, e em sua experiência quase limite.
Mas voltemos ao homem que escreveu
estas narrativas e sua breve história. Outro aspecto importante de sua
formação, de sua infância, é o seguinte: a atração que lhe despertam,
precocemente, os idiomas. Excelente aluno, que não desprezará tampouco as
asperezas do futebol, estuda em Belo Horizonte e, após concluir os cursos
preparatórios, ingressa na Faculdade de Medicina. Escreve seus primeiros contos
e poemas. Contos que obtêm, em concursos, alguns almejados “réis”. Forma-se
médico e se muda para Itaguara, município de Itaúna, onde viverá anos intensos.
Mas nem todo o trabalho de médico rural o impede de seguir estudando línguas e
anotando experiências, que transformará em narrativas ou artigos. Guimarães
Rosa foi um excelente médico e era bastante respeitado naquela região. Perder um
doente era para ele algo terrível, como contam as anedotas sobre sua dedicação
desesperada, por vezes diante do inevitável. A partir de 1932 será médico do
exército. Sobre suas leituras, diz: “Estudava línguas para não me afogar por
completo na vida do interior”. Depois ingressa na diplomacia (1934) e vence o
concurso de poesia da Academia Brasileira de Letras com um livro de poesias que
nunca publicou, Magma.2
Em 1937, o profundo amor por sua
terra se converte nos contos que dão forma a Sagarana, seu primeiro
livro, publicado muitos anos depois, em 1946. Levou sete meses para criar os
contos deste livro, “sete meses de exaltação, de deslumbramento”, e o inscreve
no concurso Humberto de Campos, instituído pela editora José Olympio, para pôr
seu trabalho à prova. Não obtém o prêmio. A partir se 1938 torna-se cônsul em
Hamburgo, e, em 1942, quando o Brasil rompe com a Alemanha, fica isolado com
outros artistas brasileiros. O pintor Cícero Dias, ao conhecer os contos de Sagarana,
instiga Guimarães Rosa a publicá-los. Permutado em seguida por diplomatas
alemães detidos no Brasil, o escritor retorna ao país e vai em seguida para
Bogotá, onde ficará até 1944. Em 1945, retoma os originais de Sagarana e
refaz quase completamente o livro, eliminado dois contos.3 Em 1946,
publica Sagarana, recebido com excelentes críticas e prêmios. É
considerado um dos mais importantes livros de ficção surgidos no Brasil. Guimarães,
no meio disso tudo, prossegue com sua errante vida de diplomata: em 1946 é
chefe de gabinete em Paris;4 em 1948 está em Bogotá, entre 1948 e
1950 encontra-se novamente em Paris. Retorna ao Brasil em 1951. Mas devemos
rapidamente precisar que, a despeito de tantas viagens pelo mundo, Guimarães
não se desliga de sua terra. Em 1945, viaja pelo interior de Minas,
reencontrando a natureza de sua infância, e em 1952 realiza uma excursão ao
Mato Grosso, de onde volta — melhor do que com pele de onça ou penas de arara —
com essa reportagem-conto poético: Com o vaqueiro Mariano, que publica
em uma edição limitada e bem-cuidada, e que hoje traduzimos, pela primeira vez,
para o espanhol.5
Em 1956, Rosa publica o ciclo de
novelas Corpo de baile, no qual leva ainda mais longe as experiências
que tentara em Sagarana. A linguagem adquire uma riqueza que desvela os
profundos estudos linguísticos do autor, mas valorizados por um intenso afeto
pela matéria trabalhada que acaba por deslumbrar o leitor.
Neste mesmo ano publica Grande
sertão: veredas, o impressionante romance-monólogo de Riobaldo, culminação
de sua temática homem-natureza, da vinculação homem-demônio (já presente em
“São Marcos” e no efeito da “reza brava”). Pensamos que Grande sertão: veredas
provavelmente é, mais do que um grande romance latino-americano, a formulação
contemporânea do poema épico, que outrora se chamou Ilíada ou Cantar
del Mio Cid. Trata-se de uma reflexão, bastante pessoal, sobre a obra do
escritor mineiro (de Minas Gerais, claro).
José Carlos Garbuglio, em seu
livro El mundo mágico de Guimarães Rosa6 (1973, Buenos
Aires), definiu Grande sertão: veredas como “o primeiro romance
metafísico da literatura brasileira”, e anotamos isso aqui como prova da
importância desta obra e de seu múltiplo poder de irradiação. Acrescentemos as
palavras de Jorge Albistur: “Mas há em Guimarães, além de uma linguagem ímpar,
uma cosmovisão que lhe é também bastante própria e única. Este homem que se
vestia à europeia e em tudo vivia segundo a razão mais estrita e adequada,
imagina-se por sua vez como projetado em direção a forças obscuras,
transcendentes, míticas. A alma do Brasil supersticioso está sempre, furtiva,
no próprio centro de suas criações tão conscientes, tão elaboradas, tão cheias
de autêntico refinamento. Riobaldo, o protagonista de Grande sertão,
acredita ter feito um pacto com o diabo, e sua vasta confissão não é outra
coisa, ao fim e ao cabo, senão um esforço de autopurificação.”
Faltam, ainda, alguns trechos da
vida e obra de Guimarães: em 1962, publica Primeiras estórias; sua
versão espanhola para a Editorial Seix Barral, de Virginia Fagnani Wey, é de
1969 (Madri), com um excelente prefácio de Emir Rodriguez Monegal no qual propõe
estas reflexões: “Se é fácil desconhecer Guimarães Rosa, e são tantos os que o
ignoram dentro e fora do Brasil, é muito difícil não se tornar um aficionado
quando se começa a vislumbrar, mesmo que de fora, o mundo mágico criado por
seus livros. É como Kafka ou como Borges: basta que uma frase entre em nosso
sistema circulatório e estamos perdidos. Nada podemos fazer além de pedir mais,
buscar mais, conseguir mais.”
Em 1967 publica Tutameia
(terceiras estórias), variegada coletânea de breves e fulgurantes contos
(quarenta e quatro), dos quais quatro cumprem, por sua vez, a função de
prefácios. E é nestes que, pela primeira vez, Guimarães Rosa consente em se
explicar (à sua própria maneira, é claro): explicação cheia de voltas e
digressões que (como em outro exemplo ilustre, San Juan de la Cruz nas Glosas a
seus poemas) mais agregam e encobrem do que descobrem.
Assim, define para nós o conto-anedota que, em sua opinião, toma melhor forma ao
redor de um núcleo absurdo; nos oferece uma apologia zombeteira da linguagem
criadora, por meio de um incidente comum, como o retorno de um bêbado a casa;
vemos a incessante transformação dos fatos por uma imaginação desatada; e,
finalmente, ficamos sabendo do inconformismo do escritor — lembre-se de suas
palavras iniciais: “Fui rancoroso e revolucionário permanente” desde criança —,
que nos confessa ter composto algumas de suas obras em estado “mediúnico”; e então
nos fala das forças indefinidas, disfarçadas de coisas casuais, que influíram
decisivamente em sua vida.
Diz Paulo Rónai em seu “Itinerario
de João Guimarães Rosa”,7 falando de Tutameia (mas em
referência precisa a praticamente qualquer narrativa sua): “Nas estórias
propriamente ditas, o tamanho reduzido (imposto pelas revistas em que foram
publicados primeiro) obrigou o escritor à excessiva concentração. São episódios
cheios de carga explosiva, retratos que fazem adivinhar os dramas que moldaram
as feições dos modelos, romances em potencial comprimidos ao máximo. Fiel ainda
aos cenários das obras anteriores, isto é, aos de sua infância, coloca em seu
interior a angústia existencial dos personagens e a sua própria. Naquele
ambiente de agreste e dramática beleza, o inexistente entremostra a vontade de
se materializar e o que não é passa a influir no que é, e o que poderia haver
sido modifica o sentido do que foi. E isso em um estilo que alimenta seus
processos com a fala ‘sertaneja’, propensa ao lacônico e ao sibilismo, ao
pedante e ao sentencioso, ao subentendido e ao elíptico, ao tautológico e ao
eloquente, que vai buscar seus vocábulos em meio a um enorme contingente de
regionalismos, arcaísmos, latinismos, plebeísmos e brasileirismos,
completando-o com criações de cunho individualíssimo e inovando-o com ousadias
sintáticas dotadas de um sentido excedente pelo que não dizem, num jogo de
anacolutos, reticências e omissões.”
Em 1967, Rosa falece em razão de
um ataque cardíaco, poucos dias após sua posse na Academia Brasileira de
Letras. Três dias antes de sua morte, na Academia, pronunciara um discurso
sobre outro acadêmico já falecido, João Neves da Fontoura. Mas para quem lê
suas palavras não há dúvidas. Guimarães Rosa, talvez no estado “mediúnico” em
que alegava ter escrito alguns de seus contos, falava (escrevia) sobre ele
mesmo. Premonitoriamente, e de maneira incomparável, pensava em Guimarães Rosa
morto: “De repente, morreu: que é quando um homem vem inteiro pronto de suas
próprias profundezas [...] Se passou para o lado claro. [...] A gente morre é
para provar que viveu [...]. Mas — o que é um pormenor de ausência? [...]
As pessoas não morrem, ficam encantadas.”8
Após sua morte, a José Olympio
publicou Estas estórias (1969), assim apresentadas na nota introdutória de
Paulo Rónai9:
“Estas estórias são um
caleidoscópio do Grande Sertão que o escritor mineiro desvendou para a
literatura brasileira e para o mundo: um caleidoscópio que mostra várias de
suas fascinantes veredas. No “Vaqueiro Mariano” a captação épica, viril, da
natureza selvagem do Pantanal mato-grossense, aliada à compreensão profunda dos
seus heróis anônimos, os vaqueiros que encontram em Mariano seu arquétipo
definitivo. Em “Os chapéus transeuntes”, a criação matizada, risonha e
filosófica de figuras que lembram uma commedia dell’arte mineira, como
Vovô Barão e Ratapulgo. Em “Meu tio o Iauaretê”, a pesquisa estilística
realizada no monólogo do índio semiagregado à civilização tecnológica que
encerra, de forma inquietante, este esplêndido mural. Mas para decifrar todo o
fascínio do seu texto, Guimarães Rosa pede unicamente a colaboração ativa do
leitor. Como todo artista moderno, a partir de Baudelaire, ele faz como T.S.
Eliot, com Joyce, Pound, Gadda, Cortázar e Benn proclamando: a arte — no século
XX — tem uma linguagem própria, como a astronáutica, a música dodecafônica, a
arte cinética. Se o leitor aceita o desafio inicial do esforço para penetrar
nesse maravilhoso Reino da Linguagem que Guimarães Rosa criou — inclusive
recorrendo ao dicionário para elucidar termos de uso não diário — ele
vislumbrará um reino vasto, majestoso, que o acompanhará para sempre.
A linguagem é o ponto de partida:
ao recolher em caderninhos surrados a maneira de falar do povo brasileiro, o
escritor leva o leitor a constatar que a expressão verbal popular está muito
mais perto da metáfora poética dos grandes poetas universais do que a linguagem
funcional da burguesia que só comunica, sem fantasia, no esclerosamento da
convenção mecânica. Mais ainda: poderá verificar que o povo e o grande artista
são dois aspectos do mesmo princípio criador: arrojado, vivaz, colorido, uma
perpétua invenção de termos e ditos saborosos, elegantes, filosóficos, que
refletem uma visão profunda das paixões humanas, que registram de forma concisa
um fato irônico, ou malicioso, um encantamento ou uma decepção, um ideal ou um
consolo: ‘aprendiz do que não quis’, ‘tropeçar também ajuda a
caminhar!’, ‘vida-coisa que o tempo remenda, depois rasga.’
Fixando a linguagem de um povo em
transformação acelerada de uma estrutura agrícola para uma urbanização
industrial, cosmopolita, moderna, Guimarães Rosa capta entre seus valores
espirituais, humanos, culturais, raras expressões arcaicas dos séculos XVII e
XVIII, garimpadas ainda vivas nos arraiais, sertões e aldeias perdidos no
interior de Minas, guardados por suas montanhas ou esparsos na imensidão do
País do Boi, o Pantanal de Mato Grosso. São palavras elegantes — aluir,
infanda, embelêco, nuga — tão atuais nos quistos sociais do nosso interior
quanto nos textos empoeirados, em bibliotecas de Lisboa, de Fernão Mendes
Pinto, Antônio Vieira, Camões, Sá de Miranda.
Não contente, Guimarães Rosa
adiciona novas pedras, próprias, à construção dessa gigantesca Brasília verbal —
uma Brasília que incluísse Ouro Preto e Cuiabá, o Rio Grande e a Bahia,
Amazonas e São Paulo —: os neologismos. Às vezes são disposições diferentes de
raízes portuguesas que surgem de forma expressiva e nova: ‘solsombreávamos’,
‘pluripompas’, ‘performar’. Outras, são elementos estrangeiros
naturalizados brasileiros, imigrantes verbais vindos da Inglaterra, da França,
da Itália, da Espanha, da Rússia, até da Hungria!
Guimarães Rosa é a confluência de
grandes escritores europeus: tem de Joyce e de Gadda a invenção poderosa de
palavras; de Goethe o simbolismo religioso (Fausto e Riobaldo, o Diabo e o Amor
por Diadorim, Mefistófeles e o Poder da Alquimia ou dos Jagunços em Guerra),
além da precisão científica dos termos tirados da medicina, das ciências
naturais, da botânica, da óptica, da geologia; de Cervantes a mistura de
linguajar erudito e popular, como se o tom elevado de Dom Quixote se misturasse
aos provérbios e ditos de Sancho Pança espraiados nas expressões coloridas dos
vaqueiros, garimpeiros, prostitutas, jagunços, padres e mendigos do seu vasto
Sertão brasileiro; de Proust a fixação, na literatura, de um mundo perdido: o
do interior brasileiro em célebre transformação socioeconômica e cultural.”
A longa citação valia a pena.
Acrescentemos, por fim, uma última
seção: a poesia na prosa de João Guimarães Rosa.
Em outro lugar, falamos da
poesia-poesia de Guimarães Rosa (“João Guimarães Rosa, poeta”, revista Imágenes
n. 10, ago.-set. 1978, Montevidéu), preocupação constante do narrador-diplomata,
que, ao longo de muitos anos de labor narrativo, destilava, em revistas e
jornais de seu país (O Globo, 1961, ou inéditos presentes em Ave,
palavra) poemas semidisfarçados sob a assinatura de autores anagramáticos:
Soares Guiamar, Romaguari Sães etc.
No entanto, de uma maneira mais
extensa, em toda a sua produção narrativa, de Sagarana aos livros
póstumos — Estas estórias (1969) e Ave, palavra (1970) —,
Guimarães Rosa entremeia suas estórias com as alegrias de um lirismo nada
forçado, natural, embora o criador esteja inventando palavras, atando-as
eroticamente, como as trepadeiras às grandes árvores da floresta. Poderia me
estender imensamente com exemplos dessa “Brasília verbal” sugerida por Paulo
Rónai,10 mas, como devemos ser concisos neste prefácio, falaremos
apenas de alguns exemplos tirados das narrativas aqui presentes, “Com o
vaqueiro Mariano” e “São Marcos”. Ouso dizer que qualquer passagem, uma vez
extraída, revelaria seu miolo poético, mas fiquemos com estas passagens. A
primeira, de “Com o vaqueiro Mariano”, é a descrição de um rodeio: “os animais —
touros, bois, bezerros, vacas, — trazidos grupo a grupo e ajuntados num só
rebanho, redondo, no meio do campo plano, oscilando e girando com ondas de fora
a dentro e do centro à periferia, e os vaqueiros estacionados à distância ou
cavalgando em círculos, ou cruzando galopes, como oficiais de uma batalha
antiga, procurando, separando, conduzindo; mas sempre a vigiarem a imensa bomba
viva, que ameaça estilhar-se e explodir a hora qualquer, e que persevera na
estringência de mugidos: fino, grosso, longe, perto, forte, fraco, fino,
grosso...”
Ou esta perfeita definição de um
incêndio no campo: “Um fogo onça, alto e barbado, que até se via o capim ainda
são dobrar o corpo p’ra fugir dele”
E uma das mais belas contemplações
da noite do Pantanal: “O céu estava extenso. Longe, os carandás eram blocos
mais pretos, de um só contorno. As estrelas rodeavam: estrelas grandes,
próximas, desengastadas. Um cavalo relinchou, rasgado à distância, repetindo.
Os grilos, mil, mil, se telegrafavam: que o Pantanal não dorme, que o Pantanal
é enorme, que as estrelas vão chover... José Mariano caminhava embora, no andar
bamboleado, cabeça baixa, ruminando seu cansaço. Se abria e unia, com ele, —
vaca negra — a noite, vaca.”
E do egípcio “São Marcos”, estas
observações da natureza traduzida em pura poesia, poesia humanizada e
humorística, poesia: “Somente o trambolho da espingarda pesava e empalhava. Mas
cumpria com a lista, porque eu não podia deixar o povo saber que eu entrava no
mato, e lá passava o dia inteiro, só para ver uma mudinha de cambuí a medrar da
terra de-dentro de um buraco no tronco de um camboatã; para assistir à carga
frontal das formigas-cabaças contra a pelugem farpada e eletrificada de uma
tatarana lança-chamas; para namorar o namoro dos guaxes, pousados nos ramos
compridos da aroeira; para saber ao certo se o meu xará joão-de-barro fecharia
mesmo a sua olaria, guardando o descanso domingueiro; para apostar sozinho, no
concurso de salto-à-vara entre os gafanhotos verdes e os gafanhões cinzentos;
para estudar o treino de concentração do jaburu acromegálico; e para rir-me, à
glória das aranhas-d’água, que vão corre-correndo, pernilongando sobre a casca
de água do poço, pensando que aquilo é mesmo chão para se andar em cima.”
O que exemplificamos, em
descrições extensas, por vezes se concentra em um neologismo que faz um haicai
japonês parecer demasiado longo. Em “Com o vaqueiro Mariano”, pintando a
aurora, termina a descrição com esta palavra enigmática: “Obluz”. Nesse
vocábulo, o narrador-poeta reuniu a preposição inseparável OB (que significa:
por causa, ou em virtude, ou em força de) com o vocábulo LUZ, e o neologismo
“obluz” concentra a majestade e o sentido da aurora.
Um último exemplo. Em “São Marcos”
o personagem enfrenta uma competição poética com um desconhecido, escrevendo
dísticos ou versos nos verdes cilindros dos bambus, mas, na primeira vez, o que
lhe vem à mente é enumerar reis persas, como explica: “E era para mim um poema
esse rol de reis leoninos, agora despojados da vontade sanhuda e só
representados na poesia. Não pelos cilindros de ouro e pedras, postos sobre as
reais comas riçadas, nem pelas alargadas barbas, entremeadas de fios de ouro.
Só, só por causa dos nomes.
Sim, que, à parte o sentido
prisco, valia o ileso gume do vocábulo pouco visto e menos ainda ouvido,
raramente usado, melhor fora se jamais usado. Porque, diante de um gravatá, selva
moldada em jarro jônico, dizer-se apenas drimirim ou amor-meuzinho
é justo; e, ao descobrir, no meio da mata, um angelim que atira para cima cinquenta
metros de tronco e fronde, quem não terá ímpeto de criar um vocativo absurdo e
bradá-lo — Ó colossalidade! na direção da altura?”
Comedido homem da diplomacia, que
jamais trabalhou para erigir seu próprio monumento; afável e simples, muito
amigo de seus amigos, o maior narrador latino-americano, João Guimarães Rosa,
pode te oferecer, a partir de seu mundo narrativo, a surpresa feliz ou a
urticante surpresa; ele te dará “veredas” autênticas, para que adentre sua
“Brasília verbal”, mas também, como em todo grande bosque, há caminhos
enganosos, com unhas-de-gato e trepadeiras a barrar sua passagem.
Como toda arte total, como toda
tentativa de arte total, seus leitores se dividiram em tírios e troianos. O
escritor Paulo Mendes Campos escreveu vinte e três razões porque todos devem
ler e admirar Grande sertão: veredas, razões que ampliamos para qualquer
narrativa do escritor mineiro, transcrevendo algumas aqui: “Porque este livro
conta uma história que ainda não ouvíramos, que precisávamos ouvir, uma
história que agora se torna impossível imaginar não existindo”. “Porque sempre,
acima da sintaxe estruturada, há de soprar o vento do espírito – a fim de que
as contradições do nosso destino se realizem”. “E ainda porque nesse livro se
repetem a perplexidade das lendas mais antigas, o bem e o mal dos mais velhos
humanismos”.11 E ainda um pouco mais.
A tradução que empreendemos com
Eduardo Milán também foi soprada pelo vento do espírito, e sua razão foi uma
razão de amor. Que ela salve, ou ao menos ampare, nosso esforço.
Notas da tradução:
1 Como não foi possível ter acesso
ao texto de Milton Vargas, o excerto foi retraduzido para o português a partir
da tradução espanhola de Benavides.
2 O livro foi enfim publicado em
1997 pela editora Nova Fronteira.
3 Na verdade, Rosa eliminou três:
“Bicho Mau”, “História de amor” e “Questões de família”. O primeiro foi
republicado, com alterações, no póstumo Estas estórias (1969), enquanto
os dois últimos foram abandonados pelo autor.
4 Nessa ocasião, Rosa atuou na verdade
como primeiro-secretário da delegação brasileira na Conferência de Paz,
ocorrida em Paris em 1946. Na sequência, passará por Alemanha, França, Bélgica
e Holanda ao lado do chanceler João Neves da Fontoura. (Ver: Cronologia. In:
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. São Paulo: Companhia das
Letras, 2019, p. 524-5.)
5 Assim como se deu com alguns
outros críticos, Benavides se equivoca ao datar a ida de Rosa ao Mato Grosso
como ocorrida em 1952. A viagem de fato aconteceu entre junho e julho de 1947,
e a primeira versão de “Com o vaqueiro Mariano” foi publicada em três partes,
entre outubro de 1947 e março de 1948, no Correio da Manhã. É provável
que alguns leitores tenham conhecido a narrativa apenas em 1952, com a edição
em livro, e como ela começa por “Em julho, na Nhecolândia”, devem ter assumido
que a referência só poderia ser o ano de publicação da obra. Curiosamente, o
prefaciador não indica a ocorrência de duas importantes viagens feitas por Rosa
em 1952: a viagem ao sertão mineiro, acompanhando a boiada de Manuelzão —
viagem de suma importância para elaboração dos livros de 1956 —, e a ida à
cidade baiana de Caldas-do-Cipó no São João daquele ano, em razão de uma grande
vaquejada organizada por Assis Chateaubriand e que contou com a presença do
então presidente Getúlio Vargas. A partir desta última viagem, Rosa compôs o
instigante “Pé-duro, chapéu-de-couro” (1952, republicado, com sutis alterações
em Ave, palavra). Remeto os leitores interessados na composição e recepção de
“Mariano” e “Pé-duro”, bem como sua importância na obra rosiana, aos capítulos
3 e 4 de minha dissertação de mestrado, disponível aqui.
6 Trata-se da tradução de O mundo
movente de Guimarães Rosa (São Paulo, Ática, 1972).
7 “Itinerario de João Guimarães
Rosa” foi publicado na Espanha em maio de 1973 na Revista de Cultura
Brasileña. Com base no excerto presente no prefácio de Benavides, o texto
de Rónai parece ter sido composto a partir de excertos de outros textos seus
(no caso em questão, “Especulações sobre Tutameia”). Sempre que foi
possível localizar a presença de determinada frase no texto precedente, busquei
mantê-la na tradução do trecho do “Itinerário” citado por Benavides.
8 Apesar de não haver qualquer
indicação, este trecho apresenta certo grau de edição (que busquei indicar por
[...]), além do deslocamento da frase “A gente morre é para provar que viveu”,
que, no discurso original, se encontra antes do trecho que a sucede na citação
feita por Benavides. A versão completa do discurso pode ser acessada aqui.
9 Na verdade, trata-se de uma nota
crítica da autoria de Leo Gilson Ribeiro e que aparece na orelha da primeira
edição de Estas estórias (José Olympio, 1969) e mais tarde, de forma
parcial, nas edições da Nova Fronteira (ver, por exemplo, a 5.ª edição, de 2001).
A “Nota introdutória” de Paulo Rónai acompanha todas as edições do livro.
10 Ver nota anterior.
11 O texto de Paulo Mendes Campos
pode ser lido neste artigo, que também traz informações sobre as diversas
mudanças que o mesmo sofreu quando incorporado à quarta capa de Ave, palavra.
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