Escrever na cama
Por Jenn Díaz
A poesia é feita na cama, como o amor.
— André Breton
Manuel Bandeira trabalhando na cama. Frame de O poeta no castelo (1959). |
Relaxe, existe um nome, e quando
uma doença tem nome e não é pura ociosidade e preguiça, descansa-se com mais
calma. Isso se chama clinofilia e é “um termo usado na medicina (especialmente na
psiquiatria e na psicologia) para designar a tendência de um paciente deitar-se
sem uma doença orgânica que o justifique”. Exatamente: deitado sem nenhuma
doença que o justifique, ou seja, sem desculpas. Aprendi o que é clinofilia
lendo O solitude (Ó Solidão, em tradução livre), de Catherine Millot.
Acreditava que a leitura levaria a
me aprofundar sobre a solidão como uma opção, como uma mulher que escolhe, como
uma mulher criativa que busca a solidão. E sim, aprendi, mas me deparei com
outro tópico que também me interessava, como aquelas personagens secundárias
dos romances que se desenvolvem mais adiante, o que lhes daria um papel de
protagonista. A clinofilia é típica de pacientes depressivos e esquizofrênicos,
mas também de escritores.
O bom mal do escritor
Catherine Millot é uma
clinofílica, e como uma boa clinofílica que não precisa se desculpar, ela
procura cúmplices, e que cúmplices, aí estão, para servi-la, Proust, Onetti ou
Aleixandre. Sim, a enfermidade de estar deitado afeta pacientes deprimidos e
esquizofrênicos, bem como escritores — e todas as combinações desses três grupos
de risco.
“E o que dizer de quem gosta de
ficar na cama? Não falemos da tia Leôncia, hipocondríaca, meio paranoica,
cuidada por Francisca, e modelo atávica do narrador de La recherche. O
próprio Proust escrevia na cama, isento, pela doença, de ficar sentado ou em pé”,
diz Catherine Millot.
É assim que começo a perceber que
tenho um tema: a questão da estreita relação entre a cama e a literatura. Isso
mesmo, assim é a clinofilia, não é que os escritores sejam uns preguiçosos.
Porque, segundo Carmen Martín Gaite em El cuento de nunca acabar (A
história sem fim, em tradução livre), no texto de “Las torres de marfil
quebradas” (As torres de marfim quebradas), existe uma certa relação entre quem
quer dormir e quem precisa de colocar seus pensamentos no papel: há algo de espera
e há impaciência e certa inquietação. Que a insônia e o bloqueio também têm
algo em comum, o sonho e a literatura estão intimamente ligados — e tudo, é
claro, é velado pelo importante instrumento que nos interessa: a cama.
“Encontro uma afinidade, no
entanto, entre a situação do indivíduo que deseja ansiosamente adormecer e
aquele que — atormentado por tantas coisas confusas e inexprimíveis — é consumido
por liberá-las repentinamente, rabiscando num papel. Em ambos os casos, a
impaciência interfere como obstáculo irreconciliável com o objetivo a ser
alcançado, e nisso reside a semelhança das situações. Ou seja, é necessária uma
plataforma prévia de sossego, sem partir da qual não conseguiremos, em um caso
ou outro, nada mais que nos deixar enganar repetidamente por nosso próprio
desejo desordenado”, de Carmen Martín Gaite.
O que veio antes: a literatura
ou a clinofilia?
Os cinofílicos são muitos e variados.
Por exemplo, Clarice Lispector parece inverter a ordem: não gostava de ficar na
cama enquanto escrevia, mas foi a leitura de O lobo da estepe que a levou para a cama num acesso de febre, o que a levou a escrever: “Fui ler, aos treze anos, Hermann
Hesse, [o romance] “O Lobo da Estepe”, e foi um choque. Aí comecei a escrever
um conto que não acabava nunca mais. Terminei rasgando e jogando fora.” A
partir daí, ela já estava ferida, e com ela, suas personagens.
No conto “Devaneio e embriaguez de
uma rapariga”, a protagonista fica na cama sem saber qual é o motivo, pois
antes da clinofilia, os acamados precisam encontrar uma desculpa. Então,
ela fica na cama e reflete, porque a posição de estar deitado facilita a
reflexão. Mas em um momento, a menina se levanta, e quando se coloca de pé, quase
com raiva, se sente fraca e diz para si mesma: “ó mulher, vê lá se me vais
mesmo adoecer!” Diz o conto:
“Ela ainda à cama, tranquila,
improvisada. Ela amava... Estava previamente a amar o homem que um dia ela ia
amar. Quem sabe lá, isso às vezes acontecia, e sem culpas nem danos para nenhum
dos dois. Na cama a pensar, a pensar, quase a rir como a uma bisbilhotice. A
pensar, a pensar. O quê? ora, lá ela sabia. Assim deixou-se a ficar.
Dum momento para outro, com raiva, estava de pé. Mas nas fraquezas do primeiro
instante parecia doida e delicada no quarto que rodava, que rodava até ela
conseguir às apalpadelas deitar-se de novo à cama, surpreendida de que talvez
fosse verdade: "ó mulher, vê lá se me vais mesmo adoecer!", disse
desconfiada. Levou a mão à testa para ver se lhe tinham vindo febres.”
Clarice vasculha seu corpo com a
escrita, a mesma coisa que procura quando se deita, fica esticada sem saber o
que está acontecendo. Esse desconhecido é válido para desvendar o que está em
seu ser interior e para se aproximar da enfermidade: não sabe o que está
acontecendo, por isso escreve, por isso se deita: pode ser febre, poderia ser
nada. Precisamente essa febre pode ter muito a ver com a escrita e com a falta
de febre também, e com a cura dessa febre: escrever é exatamente aquela febre
da qual se descansa na cama — antes, durante e depois.
Não saberia dizer se para escrever
precisam de uma cama ou se precisam de escrever da cama. Em todo caso, é uma
situação ideal de espera e recepção, e a literatura também tem um pouco disso.
Muitos artistas não têm escolha a não ser criar da cama, como a permanente
doente Frida Kahlo, mas também existem aqueles que optam por isso. Rossellini
ilustra em um filme como a cama é própria ao pensamento e se apoia em Pascal e
Descartes. Os pensamentos de Pascal iluminam sua própria doença, que o mantém à
margem, longe da vida pública, sem infectá-lo. Descartes não está doente, mas
se irrita se seu criado o interrompe, pois é aí, em seu isolamento, um
isolamento que lhe permite ficar na cama, onde está, embora não pareça,
trabalhando.
Voltemos a Catherine Millot: “Não
sair de casa corresponde ao exercício de uma liberdade. É por isso que é tão
desaprovado? Suspeita-se do refratário, daquele ou daquela que foge à lei da
reclusa, à lei comum. I would prefer not to..., como diz o Bartleby de
Melville. Não sair de casa é um pouco de secessão, como não ligar mais a
televisão.
A cama fez o poeta
Não só a poesia é feita na cama,
como o amor, mas a cama fez também o poeta. Soseki não era poeta, mas
descobriu, graças a uma internação hospitalar, o prazer de estar na cama,
aquele lugar de descanso que o impede de se misturar com a vida ativa e o
obriga a meditar. Aos 44 anos, começou a escrever haicais que de outra forma
não existiriam. Em japonês se chama fûryû, para fugir da imposição
diária, para uma certa paz interior, e foi isso que Soseki sentiu quando o apartaram
do mundo — e quase da vida — e ele ficou na cama. O novo poeta observava a vida
de sua janela, e era uma vida intacta, e ele próprio estava intacto como
pessoa, porque estava imóvel. Embora a princípio possa parecer uma
situação um tanto sufocante, quem tem tendência à clinofilia vê uma
oportunidade: a de não precisar de desculpa para ficar na cama e desfrutar.
Proust, Pascal, Descartes, Soseki,
Onetti, Aleixandre, Wilde, Twain, Unamuno e Valle-Inclán (que recebiam seus
amigos na cama), Simic… Catherine Millot. Todos precisavam da cama, com nome
para essa necessidade que sentiam ou não, por um motivo superior: por
comodidade alguns, é verdade, mas também para fugir das obrigações sociais,
para poder se dedicar a si próprios. Alguns precisam ir para outro lugar, e
outros precisam apenas se isolar em seu quarto e revolver todos os seus papéis
na cama, espalhá-los bem e observá-los para começar a trabalhar. Barthes, que
passava o tempo não na cama, mas na cadeira da escrivaninha, condiciona a
solidão: como controlar a vida em comunidade, como se relacionar e como se
isolar — como viver juntos. A clinofilia também não precisa de nome, porque até
agora o escritor trocava o encosto pelas almofadas sem perguntar o porquê: é
simplesmente que, como o amor, fazem poesia na cama.
Ligações a esta post:
* Este texto é a tradução de “Escribir
en la cama”, publicado aqui, em Jot Down.
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