Dois ensaios de Louise Glück e um comentário
Por João Arthur Macieira
A persistência da poesia
estadunidense
Como coloca Gilles Deleuze, há uma
espécie de sonho traído na literatura estadunidense. Sua definição é de uma
“sociedade dos camaradas” e seu sentido é a produção de uma linha de fuga para
fora dos horizontes europeus constituídos até o século XIX. Quando pensamos
numa poesia como a de Walt Whitman, principalmente na construção do narrador de
Folhas de Relva, isso é bastante evidente. Também a literatura e o
cinema do século XX — os romances de Jack Kerouac ou os filmes de Jim Jamusch —
revisitam os temas que essencialmente já estavam lá em Whitman.
Mas o que dizer do século XXI ou
mesmo das últimas décadas do século XX? Ainda é possível, depois da tomada de
consciência dos Estados Unidos como um império capitalista em franco declínio
diante do presente, ler aquelas ideias a sério? Não só as “massas” — se é que
ainda pode-se usar esse termo pouco razoável sociologicamente falando —
estiveram desde a segunda metade do século XX consumindo a cultura
estadunidense (ou seja, o caldeirão de culturas que borbulhava naquelas
terras), mas também as camadas intelectuais e artísticas foram profundamente
tocadas pelos sonhos e expectativas dessa literatura. Para ficarmos no século
XIX, pensemos em autores que fizeram marca profunda nas mais importantes
manifestações da literatura francesa, como Edgar Allan Poe ou Herman Melville.
No XX, segundo Sartre, não foi diferente, com Hemingway, Dos Passos e Fitzgerald.
Mas é justo nos perguntarmos, diante da atual falta de horizontes de
expectativa — conceito historiográfico originariamente político, mas que se
aplica muito bem nesse caso para o que acontece na literatura contemporânea —
como é possível lidar com essa tradição?
Há tanto um desejo de afirmação
quanto um ceticismo quanto à resposta nos ensaios de Louise Glück sobre a
poesia estadunidense. Aqui, seguem duas traduções de ensaios sobre aspectos
gerais de poesia e cultura contemporânea que podem ajudar quem quer que esteja
interessado em se aproximar do problema no tempo presente.
O primeiro o faz de forma direta,
sem medo de questionar, ainda que não critique de forma significativa, ideias
caras à história literária estadunidense, como “originalidade” e “genialidade”.
O segundo ensaio tem como tema a relação entre sofrimento e poesia, relação
abordada de forma bastante sincera e pouco sentimental. Nesses pequenos textos,
Glück nos releva uma posição bastante interessante, destacando-se sua
sinceridade em relação a temas que ela própria visita em sua poesia. Diante da
tradução de um volume significativo de sua obra literária pela Companhia das
Letras nesse ano, o leitor poderá aproveitar aqui para tirar algum gosto da poeta
vencedora do Nobel em sua versão ensaísta. Alguns de seus poemas já estão
disponíveis em português aqui mesmo no Letras, na tradução de Frederico
Pedreira. Além disso, há aqui também a tradução do ensaio sobre sua poesia, de
autoria de Frederico Díaz-Granados.
Segue aqui, em tradução livre, os
ensaios “American Originality” e “The Culture of Healing”.
ORIGINALIDADE AMERICANA
Somos, famosamente, uma nação de
condenados, caçulas, minorias perseguidas e oportunistas. Essa fama é local e
racial: o mito da América branca sobre si mesma. Ele não descreve, obviamente,
os povos nativos e afro-americanos: apesar deles estarem teoricamente livres
para participar das míticas noções americanas de vigor e autocriação, para
fazê-lo se envolvem em atos de traição ou deslealdade contra origens das quais
eles não possuíam quaisquer desejos comunais de escapar. Opressão, para esses
grupos, não definia o passado; ela substituiu o passado, que foi transformado
num ímã de nostalgia.
O mito se elabora em imagens e
narrativas de auto-invenção — direção, ousadia e ganho sendo valorizados acima
da estamina e da fortitude. Se o inglês se imaginou como herdeiro de uma grande
tradição, o americano se imaginou como o pai fundador. Essa diferença ressoa na
retórica política: a forte agressividade americana (usualmente chamada de defesa)
e a aquisitividade (às vezes chamada auto-aperfeiçoamento) como opostas à
linguagem apelativa que liga Churchill a Henrique V, a linguagem sugere que o
inglês precisa apenas manifestar virtudes de sua tradição para prevalecer.
Esses apelos eram particularmente poderosos em tempos de guerra, nas ocasiões
em que as classes inferiores, normalmente excluídas, foram convidadas a
participar das tradições fundadas na sua própria exclusão.
Como muitos mitos, esse possui
alguma base em fatos. Houve tais voos. E populações imigrantes, cujas
realocações são, em sua maioria, fugas ao encarceramento, confinamento, perigo
ou exclusão vão dificilmente cultivar resistência estoica acima da iniciativa.
As virtudes cardinais desse novo mundo dependem de repudiações, de corte de
laços, de invenção e asserção. Mas os imperativos de autocriação não podem
esperar formar uma sociedade tão efetivamente quanto a invocação de uma
tradição compartilhada. O melhor que pode ser dito é que esses imperativos
podem constituir uma ambição compartilhada ou uma prática comum; de fato, eles
são o oposto da coesão. Distinção individual se expressa enquanto distinção do
passado, dos limites preestabelecidos do que é possível, assim como dos
contemporâneos. Ainda, os triunfos da autocriação requerem confirmação,
corroboração. Eles postulam, pelo menos imaginativamente, uma sociedade ou
audiência coerente o suficiente para reconhecer e retribuir o novo. As
novidades fazem um tipo de adesivo, colando juntos (provisoriamente) seus
diversos precursores numa rede ou num sistema: uma fantasia ou projeções de
valores comuns. Como isso ocorre e com que restrições contam como os atributos
peculiares do que os americanos chamam de originalidade, seu termo de mais alto
louvor.
O trabalho original em nossa
literatura deve parecer sair dos trilhos de alguma forma, fundar dinastias.
Isso é, ele deve ser capaz de replicação. O que nós chamamos “original” deve
servir como modelo, condensando o futuro numa coerência e, simultaneamente,
apesar de menos crucial, afirmando a coerência do passado deixado para trás.
Ele não rejeita a tradição tanto quanto a projeta no futuro, consigo mesmo como
progenitor. Originalidade, a impressão de um si-mesmo (self) inventado
depende da criação de efeitos repetíveis. Enquanto isso, muito do que é
profundamente original mas improvável, por uma variedade de motivos, de
garantir larga imitação, fica deixado de lado ou é chamado de coisa menor,
único — valioso, sem dúvidas, mas um fim de linha. O original é visto com
intensidade esfomeada; todos os cartazes de louvor são levantados para
recebê-lo. Mas para bem recebê-lo dentro de certos limites, com inovação formal
de quase qualquer tipo valorizada acima da mente idiossincrática.
Isso não é dizer que outros dons
não atraem admiração. Maestria técnica continua a ser aplaudida, apesar de
prioritariamente naqueles nascidos em outros lugares. Um Heaney americano,
penso eu, não seria tão prontamente e apaixonadamente reconhecido. Assim como
Szymborska, cuja arte (em tradução) aparenta um brilhante exemplo de
inteligência inimitável. Alguma coisa, seja uma nostalgia atavística ou o
reconhecimento do desamparo, mantém esses e alguns outros seguros aqui.
Americanos não se saem tão bem. Particularmente o único, o inimitável.
O lado sombrio da autocriação é a
seu senso de fraude subjacente e permanente. Um terror recíproco de déficit
intrínseco ao si-mesmo conta para a prontidão da audiência americana a ser
derrubada, excluída, a chamar de grande arte aquilo que ela não entende.
Enquanto poetas americanos se posicionam de forma crescente contra a lógica e a
observação, a audiência americana (regularmente uma audiência de outros
escritores) aquiesce pungentemente.
Por baixo do brasão “Eu inventei
um si-mesmo” (“I made up a self”) do mito americano, um sinistro sotto voce
“Eu sou uma mentira”. E o mentiroso deseja iludir: iludir julgamento e censura,
para evitar ser pego. A arte literária de nosso tempo espelha a ansiedade do
homem inventado; também a afirma. Você é uma fraude, parece dizer. Você não
sabe nem ler. E, para escritores, essa curiosa incompreensão, esse estar à
frente do tempo, ligado como está à afirmação, parece superficialmente
encorajador, como se “entender” significasse “exaurir”.
Sem limites, liberdade sem limites
tem entre seus custos um tipo de paranoia: o si-mesmo não construído por
dentro, acumulando como fazem as árvores, mas postulando ou improvisando,
movendo-se para trás e para frente ao mesmo tempo — esse si-mesmo é
curiosamente instável, inseguro. Quando a imaginação é imensa (como no caso da
genialidade ou da mania), a sensação incômoda de falsidade provavelmente
dissolve. Quando não, o ponto fraco é ferozmente defendido.
Parte dessa defesa é a convicção
de que todos os outros são inautênticos. Ou, alternativamente, localizar a
autenticidade, a verdade de um momento histórico, no inescrutável. Individual,
a voz humana insubstituível é duplamente desvantajosa. Ela não pode, enquanto
invenção formal ou artifício, ser imitada, perpetuada. Segundo, enquanto ela
incansavelmente manifesta um si-mesmo, um ser humano não é nem construído
intelectualmente nem inventado, perigosamente reativo a um mundo como o que
vivemos, ela reapropria implicitamente as estratégias e poses desejadas.
É central para o mito americano a
imagem de um mundo melhor, a tradução de uma visão teológica para a pragmática
e terrena. Essa ideia não é única da democracia americana, nem tem o fracasso —
ao menos a ingenuidade — de suas muitas imitações, obrigando um reexame da premissa
subentendida. No nosso tempo, esses vários estoques de mundos melhores dividem
um conjunto de promessas ao indivíduo, cuja vida deverá ser aliviada da
opressão. A ideia da independência individual — a possibilidade de que qualquer
um possa ascender à proeminência ou riqueza ou glória — esse sonho de distinção
individual se tornou um atributo definitivo da democracia. Parece às vezes que
assim que a democracia aparece mais defeituosa, essa promessa de um si-mesmo
sem precedentes cresce mais fervente, mais necessária.
Mas o homem que faz a si mesmo
(“the self-made man”), como qualquer outra figura de poder, depende de um
acordo abrangente; seus pares devem aquiescer às suas conquistas. Num tempo em
que o futuro pareceu uma teoria esperançosa mais do que um fato certo, esse
risco no presente se intensificou. As qualidades que continuamos a prezar,
imediatidade e escala, devem se manifestar imediatamente. A hipérbole crítica
confirma essa pressão; ela não a cria. Nossa cultura e nosso tempo combinam suporte
ao arquétipo americano: o artista deve parecer um renegado e ao mesmo tempo
produzir, seja por acidente ou vontade, uma mercadoria estética, um conjunto de
gestos instantaneamente apreendidos como novos e também como capazes de
replicação.
O custo dessa pressão tem sido
imenso, tanto para os negligenciados (em quem fomenta uma independência ferida
que facilmente se torna rigidez entrincheirada) como para os admirados, como
Lowell no passado recente, que sentiu suas verdadeiras descobertas como diluídas,
imediatas e frequentemente como imitações astutas. Diferenciar o original da
cópia torna-se crescentemente mais difícil.
Gradualmente, através desse
processo, revela-se que o genial novo artista tem limitações. Assim como o novo
mundo persistentemente falha em se sustentar, e o mundo conhecido se
reconfigura através da variedade cultural e mudanças históricas. Nada disso tem
qualquer impacto no vigor do mito.
Penso que o contrário é
verdadeiro. Como todos os mitos do possível, a fantasia compensatória de que
alguém possa fazer novos si-mesmos sobrevive não apesar, mas por causa de suas
falhas. Para artistas, porque apela à imaginação, ela tem grande durabilidade e
utilidade. Ela alimenta a esperança: que tenha falhado no passado abre espaço
para nós mesmos e nosso gênio.
2001
A CULTURA DA CURA
No que concerne ao poder
restorativo da arte, uma distinção deve ser feita entre a experiência do leitor
e a do escritor. Para o leitor, uma obra de arte pode fazer tipo de mantra: ao
dar forma à devastação, o poema recupera o leitor da escuridão sem forma ou
gravidade; da ilha em queda-livre; ela torna-se sua companhia no sofrimento,
seu salvador, uma prova de que o sofrimento pode ser dobrado de alguma forma
para dar algum sentido.
Mas a relação do poeta com a sua
composição me parece outra.
Nós vivemos numa cultura quase
fascista na sua coação de otimismo. Uma grande vergonha junta-se à ideia e ao
espetáculo do ordeiro: o incentivo à supressão ou negação ou truncar “ordeal”
manifesta-se em dois extremos — o culto da saúde perfeita (ambas física e
psicológica) e, do outro lado, o que poderia ser chamado de pornografia das
cicatrizes, a aparente inundação sem fim de memórias, poemas e romances
calcados na assunção de que a exibição do sofrimento deve produzir arte
autêntica e potente. Mas se o sofrimento é tão difícil, porque sua expressão
deveria ser fácil? Trauma e perda não são, em si mesmas, arte: elas são como
meia metáfora. De fato, o tipo de obra a qual me refiro — qualquer que seja sua
fonte pessoal — está pintada por um tipo de avidez preventiva. Ela parece
pronta demais para habitar o mais dramático dos extremos; pronta demais para
negar a perda enquanto continuidade, enquanto fato imutável. Ela propõe no
lugar da narrativa do triunfo pessoal, uma narrativa cheia de marcações como
“crescimento”, “cura” e “autorrealização”, culminando na alma desqualificada ou
na declaração compreensiva de uma “inteiridade” (wholeness), como se a
perda fosse um mero catalisador para o auto-engrandecimento. Mas, como o poder da perda é diminuído ou
negado, assim também o falante torna-se inteiramente construído, inumano.
Minha experiência própria de
sofrimento agudo, seja na vida ou numa obra, é que nesses períodos eu não faço
nada além de tentar sobreviver, sendo a premissa a de que se eu permanecer
viva, vou ao menos estar presente no caso de que algo mude. Eu não tenho um
senso de mim mesma tentando mudar. Nem acredito que a resiliência peculiar do
artista é uma função do poder restorativo da arte. A experiência do artista de
seu próprio trabalho alterna entre o pânico e a gratidão. O que é constante, o
que me parece uma fonte de resiliência (ou força), é a capacidade de absorção
guiada e intensa. Tal absorção faz um tipo de intermissão a partir do si-mesmo
(self); ela deriva, no artista, de uma profunda crença na importância da
arte, no sonho de articulação, projeta ele (o artista) constantemente no futuro
— o momento hipotético em que a escuridão compreensiva adquire limites e forma.
Para a nostalgia, ela substitui o terror e a fome; para a ideia de restauração
ela substitui um ideal de descoberta. Em direção a esse fim, o artista, como o
analisa, cultiva uma recusa disciplinada à decepção consigo mesmo, o que é
menos uma posição moral do que um ato pragmático, já que a única vantagem
possível do sofrimento é que ele talvez ofereça um insight.
O grande escritor de crime Ross
Macdonald diz que ele, “como muitos escritores”, “não poderia trabalhar
diretamente com suas próprias experiências ou sentimentos”. Para Macdonald, o
narrador “tem que ser interposto, como uma frente protetora, ente [ele mesmo] e
o material radioativo”. Para o poeta, o tempo basta e nisso introduz uma
perspectiva alterada. Mas essas obras de arte podem ser traçadas até eventos
específicos — qualquer seja a distância do fato que as criou — envolve o
artista numa relação particular com esses eventos. O poema é uma revanche
contra a perda, que foi forçada expressar uma nova forma, algo que não existia
no mundo de antes. A perda em si mesma torna-se ambas adição e subtração: sem
ela, não haveria esse poema, esse romance, essa obra em pedra. E uma estranha
sensação de perda do passado pode ocorrer assim que o absoluto da perda se
torna ambíguo, sendo o mutilador o beneficiário. E o agente da transformação,
em qualquer caso, é o tempo, que não pode ser forçado ou apressado.
1999
* Os textos aparecem originalmente
em GLÜCK, Louise. American Originality: essays on poetry. New York:
Farrar, Straus and Giroux, 2017.
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