Cinco poemas de Adam Zagajewski
Por Pedro Belo Clara
OS TRÊS ANJOS
De súbito, três anjos apareceram
aqui ao pé da padaria na Rua de
São Jorge;
mais um inquérito sociológico,
suspirou um homem enfadado.
Não, começou por explicar, com
paciência, o primeiro anjo,
gostaríamos só de saber
em que é que se tornaram as vossas
vidas,
que sabor têm os dias e porque é
que as noites
estão marcadas pelo desassossego e
pelo medo.
É verdade, pelo medo, interveio
uma adorável mulher
de olhos de sonho; mas eu sei o
porquê.
As obras do pensamento humano
soçobraram
e precisam de ajuda e apoio,
que não conseguem encontrar.
Senhor, veja
– chamou «senhor» ao anjo! –
o exemplo do Wittgenstein¹. Os
nossos sábios
e líderes são tristes e loucos
e sabem ainda menos do que nós,
pessoas comuns (mas ela não era
comum).
E
também, disse um garoto
que andava a aprender a tocar
violino, as tardes
são apenas uma maleta oca,
uma caixa vazia de mistérios,
enquanto de madrugada o cosmos
parece completamente
alheio e seco, como o ecrã da
televisão.
E para além disto não há muitos
que amem a música pela música em
si.
Falaram também outros e as queixas
multiplicavam,
compondo uma crescente sonata de
raiva.
Se os senhores querem saber a
verdade
– gritou um estudante alto, que
há pouco perdera a mãe – nós já
estamos fartos
de morte e crueldade, doenças,
perseguições
e longos períodos de um tédio
imóvel
como o olho duma serpente. Temos
tão pouca terra,
e demasiado fogo. Não sabemos quem
somos.
Erramos pelo bosque e as estrelas
negras
movem-se preguiçosas por cima de
nós, como
se fossem apenas um sonho nosso.
E contudo, disse timidamente o
segundo anjo,
há sempre um pouco de alegria e
até a beleza
fica mesmo à mão, sob a casca
de cada hora, no coração calado da
meditação,
e em cada um de vós esconde-se um
homem
universal, forte, invencível.
As rosas bravas conservam por
vezes o cheiro
da infância e nos dias feriados as
raparigas
saem para dar um passeio como
sempre fizeram,
e na maneira como entrelaçam os
cachecóis coloridos
há algo de imortal.
A memória vive no mar, no galope
do sangue,
nas negras e queimadas pedras, nos
poemas
e em toda a conversa serena.
O mundo é o mesmo de sempre,
cheio de sombras e de expectativa.
Podia ter falado ainda mais, mas a
multidão crescia
e espalhavam-se
ondas de surda fúria,
até que por fim os enviados
levantaram suavemente
voo, e no ar, ao afastarem-se,
docemente repetiam: paz é o que
vos desejamos, paz
aos vivos e aos mortos e aos que
ainda estão por nascer.
Só o terceiro anjo é que não
proferiu palavra,
porque era o anjo do longo
silêncio.
A ÚLTIMA PARAGEM
O eléctrico passava ao longo das
casas vermelhas.
As rodas nas torres das minas
giravam
como carrosséis num parque de
diversões.
Nos pequenos jardins cresciam as
rosas sombreadas de fuligem,
nas pastelarias as vespas
encarniçavam-se
sobre a cobertura dourada de um pastel.
Tinha quinze anos, o eléctrico
deslocava-se
cada vez mais rápido por entre as
habitações,
nos prados via
malmequeres-dos-brejos amarelos.
Pensava que na última paragem
se desvendaria o sentido de tudo,
mas nada aconteceu, nada,
o condutor comia uma sandes com
queijo,
duas velhotas falavam em voz baixa
dos preços, das doenças.
PERDIDOS
Perdidos, perdidos em corredores
cinzentos.
Durante a noite as lâmpadas
silvam, como barcos que se afundam.
Lemos livros esquecidos pelos
próprios autores.
A verdade não existe, repetem os
sábios.
Noites de Verão: festival dos
andorinhões,
nos arrabaldes explodem as
peónias.
Parece que as ruas se tornam mais
curtas
com a canícula, pela facilidade de
visão.
Devagar, à socapa, aproxima-se o
Outono.
Contudo, às vezes, emergimos por
um momento
e acontece que o sol, ao pôr-se,
resplandece
e aparece uma efémera certeza,
quase fé.
AO LER MILOSZ²
Mais uma vez leio os seus poemas,
redigidos por um ricaço que
percebeu tudo
e por um pobretanas que foi
privado de casa,
por um emigrante e por um
solitário.
O senhor sempre quer dizer mais do
que é possível
– além da poesia, para cima, em
direcção às alturas,
mas também para baixo, onde começa
o nosso território, humilde e
timidamente.
O senhor fala às vezes com um tal
tom
que o leitor – a sério –
por um momento crê
que cada dia é sagrado
e que a poesia – como dizê-lo –
faz com que a vida seja mais
redonda,
cheia, orgulhosa, e não se
envergonhe
da fórmula perfeita.
Só à noite,
quando ponho de lado o livro,
é que regressa o vulgar ruído da
cidade –
alguém tosse, alguém chora, alguém
pragueja.
TENTA LOUVAR O MUNDO ESTROPIADO
Tenta louvar o mundo estropiado.
Recorda os longos dias de Junho
e os morangos silvestres, as gotas
de vinho rosé.
Recorda-te das urtigas, que
metodicamente invadiam
as herdades abandonadas dos
exilados.
Tens que louvar o mundo
estropiado.
Olhaste os iates e os navios
elegantes;
um deles preparava-se para uma
longa viagem,
aos outros esperava-os um salgado
nada.
Viste fugitivos que iam para lado
nenhum,
ouviste os carrascos a cantarem
alegremente.
Deverias louvar o mundo
estropiado.
Recorda os momentos em que vocês
estavam juntos
num quarto branco e as cortinas se
mexiam.
Regressa em pensamento ao
concerto, quando a música explodiu.
No Outono colheste bolotas no
parque
e o redemoinho das folhas cobria
as cicatrizes da terra.
Louva o mundo estropiado
e a pena cinzenta que um tordo
perdeu,
e a luz delicada que se afasta e
desaparece
e regressa de novo.
______
Adam
Zagajewski nasceu em 1945 na cidade de Lviv, na actual Ucrânia, à época um território
polaco. Formado
em Filosofia e Psicologia na cidade de Cracóvia, na Polónia, Zagajewski
tornou-se um membro proeminente da chamada “Geração de 68”, que levantou forte
crítica e oposição ao regime comunista de então, lutando pela liberdade da
expressão artística no país. Como consequência, viu alguns dos seus livros
proibidos no país.
Apenas
por estas breves linhas conseguimos depreender o teor dos primeiros trabalhos
de Zagajewski: o vincado cariz político, a voz sólida e bem projectada a
suplicar por mudança. Algo que, observando o contexto histórico, não levantará
obstáculos a uma fácil compreensão. Imaginemos, pois, uma Polónia saída da II.ª
Grande Guerra e consequente ocupação nazi, dos horrores vividos nesse negro
período e, num dealbar de esperança, a chegada dum regime de novas ideias e
promessas, iniciando no país a era do comunismo.
No entanto, mesmo que se aceite
ser este um tema significativo, alimentado pela proeminência das circunstâncias
de então, não foi para o autor um terreno de notável fertilidade, pois quando
sentiu que a justificação se esvaía logo mudou de direcção. Sobra, ainda assim,
o seu manifesto “O Mundo Sem Representação”, de 1974, trabalho que o colocou
sob os holofotes da polémica e do escrutínio público, como prova desse ímpeto
inicial. Um escritor seu conterrâneo, Stanislaw Baranczak, admitiria que tal
obra “instigou uma das maiores controvérsias na cultura polaca do pós-guerra,
por atacar a literatura descomprometida das décadas anteriores”. Contudo,
Zagajewski, como já revelámos, também acabaria por seguir a via desse
descomprometimento.
Qual
o factor de variação? De sobremaneira, o declínio do regime totalitário que se
havia imposto no país. Zagajewski entende, assim, que se torna necessário
abandonar a palavra dotada de força instigadora e renovadora, o ímpeto de
revolução social, de intervenção activa no palco público, para iniciar algo de
mais profundo e significativo, o que para o autor significou dar a vez às
modulações da sua voz interna. Começa, portanto, por abandonar o colectivo pelo
particular, o exterior pelo interior, a poesia política pela poesia do
quotidiano – palco aberto às indagações do homem comum, seus anseios e suas angústias,
suas deslumbramentos e terrores.
Esta
transformação ocorre sensivelmente no mesmo período em que se exila em Paris,
isto é, no princípio da década de oitenta. De certo modo, alguns dos preceitos
que mais tarde o afirmariam como uma espécie de poeta místico dos tempos
modernos, muito dado a iluminações súbitas, começam a criar neste momento fundações
mais sólidas. Elevando-se contra aquilo que chamou de “penetrante sentido de
comunidade”, num ensaio de nome “Duas Cidades”, clama a afirmação pessoal e a
necessidade de expressão própria. Afinal, “nem tudo pertence a toda a gente». É
de alguma forma o mote duma celebrada colectânea de ensaios publicada já em
1990: Solidariedade, Solidão – epígrafe que bem revela a dicotomia Colectivo
/ Individual.
Não
que o poeta, apesar dos sombreados místicos, acabe isolado numa caverna no alto
duma qualquer montanha em contemplação serena, mas sublinha essencialmente os
problemas duma poesia, ou até mesmo duma arte, criada sob a pressão pública, as
suas ânsias e expectativas. Há um espaço interior que, para o bem do criador, e
principalmente da sua obra, importa reclamar.
Este
misticismo que a fase mais madura do autor vai apresentando não é, porém, um
misticismo de sistema ou cultura, ou seja, não é algo que o poeta abraça por
escolher acreditar nos seus ditames. Há uma crença em algo, mas não se sabe bem
em quê. Uma eterna esperança, talvez, embora haja a quase definitiva certeza
que será algo fora da compreensão humana. O crítico e poeta norte-americano
Adam Kirsch, autor dum excelente ensaio sobre este poeta polaco, define
abertamente Zagajewski como um “místico da imaginação liberal”, defensor da
solidão e da liberdade individual.
Na
experiência mística da sua poesia denota-se a atracção pela sensação limpa, e a
clareza e completude por esta proporcionada, mas vive sempre de momentos, de
sensações cuja aparição rege-se pelas leis do tempo. É, por isso, também um
poeta de breve epifanias. A razão pela efemeridade da iluminação, enquanto experiência
real e como registo poético, parece clara ao próprio autor: “O mundo interior,
que é o reino absoluto da poesia, caracteriza-se pela sua inexpressibilidade.”
Não
é um místico exigente, de seguir o rigor dos ascetas, mas de apenas focar a sua
atenção no que se passa ao redor e, partir desse exercício, expressar o tal
mundo interior com a fiabilidade possível. Por tal linha sobressaem as
características mais notórias da sua poesia: a melancolia, o humor e,
sobretudo, a ironia: uma ironia que sabe ser mordaz na sua descontração
acutilante, a ironia de quem agita fundações e regimes pré-estabelecidos, de
quem leve e elegantemente manifesta gracejos sobre assuntos tidos sérios por tantos outros, numa
sadia atitude de relativização diante temas que, na verdade, representam tão
pouco – sem que, na sua vez mais obscura, se prive de deixar escapar um certo
desespero, uma dúvida aguda e desconcertante.
Na
envolvência deste cariz de expressão, comummente o poeta nos revela exercícios
de memória, esperanças tolas (muitas vezes manifestadas pela sua peculiar arte
de trazer o inusitado ao palco do quotidiano), conversas com personagens
proeminentes da história Humana, mesmo que já falecidos, a música e, claro, a
natureza.
Encontra-se
publicado na língua portuguesa apenas um volume que colecta um conjunto
significativo de poemas. O seu editor, Pedro Mexia, caracterizou este poeta
moderno, que importa descobrir, como “lúdico e grave, espiritual e céptico,
legível e enigmático”, como que justificando a eleição da bem-vinda tradução de
alguns dos seus trabalhos – ocorrida, curiosamente, no mesmo ano em que o poeta
foi laureado com o prémio Princesa das Astúrias (2017).
Em
março de 2021, Adam Zagajewski, contando setenta e cinco anos de idade, falece
na cidade de Cracóvia, onde residia desde o seu regresso ao país natal.
Notas
1 Ludwig Wittgenstein (1889 –
1951) foi um filósofo austríaco, naturalizado inglês. Para muitos um dos mais
importantes filósofos do século XX, notabilizou-se graças a importantes
contribuições no campo da lógica e da filosofia da linguagem, da matemática e
da mente. A sua obra mais proeminente, Tractatus Logico-Philosophicus, foi
editada em 1922 e lançou as fundações do positivismo lógico.
2 Czeslaw Milosz (1911 – 2004) foi
um dos mais importantes poetas, romancistas e ensaístas polacos, agraciado com
o Prémio Nobel da Literatura em 1980 – pelo seu pensamento humanista sobre a
liberdade, a consciência e o poder do totalitarismo sobre corpos e mentes.
* Traduções de Marco Bruno, com revisão de Jorge Sousa Braga, em Sombras de Sombras (Edições Tinta da China, Novembro de 2017). Notas adicionais de Pedro Belo Clara.
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