Bom Crioulo, de Adolfo Caminha

Por Pedro Fernandes




 
“Era um misto de ódio, de amor e de ciúme, o que ele experimentava nesses momentos. Longe de apagar-se o desejo de tornar a possuir o grumete, esse desejo aumentava em seu coração ferido pelo desprezo do rapazinho. Aleixo era uma terra perdida que ele devia reconquistar fosse como fosse; ninguém tinha o direito de lhe roubar aquela amizade, aquele tesouro de gozos, aquela torre de marfim construída pelas suas próprias mãos. Aleixo era seu, pertencia-lhe de direito, como uma cousa inviolável. Daí também o ódio ao grumete, um ódio surdo, mastigado, brutal como as cóleras de Otelo...”
 
Bem sabemos que nenhuma referência visível ou claramente sugerida num texto deve ser desprezada. O excerto acima está situado muito próximo do episódio final de Bom Crioulo; trata-se de uma descrição oferecida pelo narrador que perscruta os volteios psicológicos da personagem principal da narrativa; nessa ocasião, Amaro encontra-se metido no interior da formação de uma angústia profunda depois do silêncio de Aleixo ao bilhete que mandara enviar dali onde se encontrava, no hospital da Marinha, à casa onde havia construído para si e Aleixo um ninho de repouso das necessidades carnais, na Rua da Misericórdia.
 
À angústia da espera junta-se outro sentimento cujos contornos se demonstram visíveis desde quando os dois homens se conhecem: Amaro se envolve numa rinha em defesa do rapazola de quinze anos e é por isso condenado, pela primeira vez, nos já muitos anos de bom comportamento na corporação, ao açoite público. Essa situação, aliás, estabelece qualquer coisa como um pacto entre os dois. Aleixo presencia os castigos a Amaro e desenvolve por este certo reconhecimento da atitude do zelo, o que, por sua vez, permite ao protetor a constituição de um enlace de posse muito semelhante ao trato invertido do senhor e servo; invertido porque Amaro é um negro fugido que consegue, por obra do acaso, ser recolhido pela Marinha e seu efebo um branco de olhos azuis.
 
E, porque falamos sobre o trato senhor-escravo, vale sublinhar o quanto as relações entre homens nesse romance de Adolfo Caminha guardam um trato sadomasoquista que parece imperar nos trânsitos de mando. O episódio de exposição do castigo imposto a Amaro reafirma-se noutras cenas dessa natureza, mesmo na segunda ocasião em que o Crioulo é castigado, ainda que nesta, prevaleça tão somente um prazer sádico, visto que o marinheiro não se reconhece açoitado por bel-prazer; ainda que busque repetir para si as primeiras artimanhas do corpo para aliviar a dor da pisa, o deleite é exclusivo do seu senhor e o resultado é sua decrepitude. É depois da segunda surra que Amaro é internado no hospital da ilha, situação que reportamos no início destas notas. Mas, no primeiro momento, isto é, no castigo a que é submetido logo à entrada da narrativa, o que se verifica é a determinação do prazer do Bom Crioulo por seu delicado grumete e o despertar deste por aquele, evidenciando uma indeterminação desses polos já naturalmente invertidos. Mais tarde, é Aleixo quem se satisfaz, mesmo que timidamente, aos mandos do seu protetor, tal como deve se satisfazer o capitão de Amaro responsável pela segunda pena, visto que, seu nome corre na boca dos da sua tripulação sobre suas preferências sexuais.
 
Futuramente até será possível estabelecer as feições do enlace erótico-sexual entre Amaro e Aleixo. Poderão até acusar que esse envolvimento se constitui pelo abuso, que a posse do corpo do adolescente foi um estupro. Mesmo assim, ninguém poderá acusar este romance do quanto foi precoce em tratar sobre um tema interdito nas discussões e mesmo na literatura, ainda que um ou outro romance do período não deixasse de sugeri-lo. Bom Crioulo, nada sugere, expõe; além disso, estabelece para a cena principal da trama a figura do negro. Tudo o que existe na sua narrativa está em relação com Amaro, o que, justifica-se pela própria escolha do escritor pelo título em questão: o apelido da sua personagem central.
 
O que parece inovador neste romance, portanto, é como as determinações são propositalmente violadas a fim de oferecer um desfazimento das dicotomias enquanto puras oposições. Ora, isso é, mais que o imbróglio romântico e erótico-sexual vivido pelos dois homens, Amaro e Aleixo, o traço que coloca o romance de Adolfo Caminha em choque com as matrizes deterministas de seu tempo. Embora não deixem se sobrar acusações sobre a maneira como o romancista engendra a imagem do negro, marcadamente estereotipada e articulada com o imaginário aberrante que a cultura de então atribuía à raça, nada em Bom Crioulo é obediente apenas a esta ou àquela concepção. Outra vez, parece ideal referir-se a este título que se constitui, tomando o contexto de publicação da obra, uma antítese; o segundo termo, crioulo, significa descendente de escravos não nascidos em África, mas que, no jogo discursivo da diferenciação se confundirá com a sorte de rebaixamentos empregados para com negro passando a guardar uma conotação pejorativa.
 
O tratamento inconstante em Bom Crioulo se deixa perceber em duas situações específicas: mesmo a estereotipia do negro não é responsável pela imagem total de Amaro, que é irascível (como a narrativa constata e mesmo o seu amante, numa das conversas com d. Carolina) apenas quando perde o controle devido a beberagem. Fora disso, sobram a presteza para com o próximo e toda a força palpável na sua estrutura selvagem serve exclusivamente ao bem das pessoas. Sexualmente, se essa personagem se define ativa apenas com outro homem, não é o caso do seu amante. Aleixo, depois de se dominar pelo peso do corpo e da força de seu protetor, torna-se o amante inveterado da portuguesa que dá abrigo ao casal de homens. Ou seja, nem mesmo os padrões sexuais de então sempre aparecidos como um dividendo entre homem e mulher, tal como demonstra o ponto de vista do narrador do romance, não estão presos a ditames; a saída naturalista é, aliás, outra percepção de mestre. Ao refletir sobre o interesse para com Aleixo, Amaro reconhece que se trata de uma pulsão natural do corpo, desfazendo a tese então dominante de uma opção comportamental.
 
Bom Crioulo, apesar de não avançar sobre os casos sexuais que rondam outras personagens auxiliares, tem outra contribuição de grande valia na história da homossexualidade no Brasil: oferece-se como uma viva crônica sobre as variações dos desejos, como estes eram vividos e como as diversas classes sociais as compreendiam. Enquanto na Marinha, corporação onde o narrador melhor constata o enovelamento sexual entre homens, é uma situação interdita, crime passível de punição, fora daí, e por alguns dos populares, caso corriqueiro e aceitável: apesar de d. Carolina se beneficiar da condena pública para justificar seu envolvimento com o bonitinho, à primeira vista, quando situação nem lhe é colocada pelo Bom Crioulo é logo reparada e alcovitada por ela. Isso pode não dizer muito se repararmos todo o jogo de interesses desenvolvidos pela caseira: o financeiro, a mola que lhe move, e o sexual.
 
O romance de Adolfo Caminha não é apenas uma crônica sobre a vida homossexual na Corte. É ainda um registro vivaz sobre as variadas formas de violência recorrentes então: das praticadas por corporações como a Marinha às desenvolvidas por razões variadas nas periferias urbanas do Brasil. Quando recebe o bilhete cuja resposta tarda a chegar a Amaro, uma das situações que o desinquieta profundamente, como observamos acima, d. Carolina tem o gesto de se desfazer do pequeno papel, o que lhe abre, pensando na traição que ajudava a construir, num fim trágico para ela própria ou o seu bonitinho, o narrador desfia alguns dos casos certamente catalogados da imprensa fluminense de então que não apenas antecipam o desfecho da trama como demonstram a corriqueirice dos feminicídios: “Assaltaram-lhe ideias horrorosas de crimes, de homicídios, de sangue; relembrava casos que tinham alvoroçado o Rio de Janeiro, casos de ciúme, de traições... Na rua do Senhor dos Passos um sargento esfaqueara uma pobre ‘mulher da vida’; encontrara-a com outro... A polícia correu ao lugar do sinistro, mas o assassino, como era noite, evadira-se, deixando do cadáver da rapariga crivado de golpes, rubro de sangue. Lembrava-se também de outro caso medonho; fora na rua dos Arcos: o assassino cortara a mulher em bocados como se esquarteja uma rês. O povo correra em massa para ver o espetáculo; dizia-se até que a vítima era uma espanhola de alto bordo chamada Lola.”
 
Robert Howes, em “Race and Transgressive Sexuality in Adolfo Caminha’s Bom-Crioulo”, ao buscar as fontes possíveis que fomentaram a origem do romance refere-se a dois episódios trágicos acontecidos perto do ano da escrita e certamente de conhecimento do escritor brasileiro: um escândalo português em que um cadete da Escola do Exército, também no imbróglio amoroso-sexual, assassina outro cadete numa rua próxima à escola e a morte de um grumete negro na rua da Misericórdia, cenário da constituição do enovelamento entre Amaro e Aleixo. Crônica de um crime e sobre as violências desse período, Bom Crioulo não é uma história de amor gay como algumas leituras têm, ridiculamente, reduzido o romance; este é um romance cuja matriz é, fundamentalmente trágica. E se não é um relato de amor, o trágico não se manifesta exclusivamente pela impossibilidade da realização amorosa.
 
Bom, parece ser a importante voltar ao início destas notas. Dizíamos, diante de um excerto cuja menção explícita a uma tragédia de Shakespeare, que nunca devemos deixar intocável quaisquer referências apresentadas publicamente ou não por um texto. Parece residir em Otelo, e, provavelmente essa é uma constatação que nada tem de nova, uma das chaves de acesso ao universo fabular de Bom Crioulo. Se as circunstâncias da tragédia inglesa não se repetem, todos os temas dominantes da cena shakespeariana são emulados no dilema periférico-tropical. Bom Crioulo é um romance sobre o ciúme com todas as cores de feitio do trágico: a traição, a inveja e a rivalidade entre as personagens. Bom Crioulo, nosso Otelo, como notamos, é carcomido pelo ciúme, sentimento que o arrasta à tessitura de uma narrativa de traição sobre a qual ele nunca vivenciou propriamente; dele, o romance vivencia, desde o início, a agonia que resulta no episódio trágico. Aleixo, nossa Desdêmona; d. Carolina, o alferes de Amaro, que, incapaz de aceitar a posição assumida pelo negro ante o efebo de penetrantes olhos azuis, rouba premeditadamente o posto do Bom Crioulo. Ora, essa síntese por simples que seja, está evidenciada no excerto mostrado no início destas notas.
 
Ao se interessar mais por aquilo que move suas personagens, Adolfo Caminha, consegue acrescentar à crônica um valor perene e universal ao seu romance. Sem se render ao puro estereótipo que foi moeda de uso corrente entre os naturalistas emuladores dos franceses — mas sem negá-lo totalmente — Bom Crioulo é uma obra situada dentro e fora de seu tempo. É possível que nem o jovem autor soubesse da façanha: mas sua eternidade nasceu quando trouxe à luz este romance, de enredo simples e questões nunca esgotáveis numa só leitura e impossíveis de se compreendê-las reduzidas entre um conceito ou outro; suas figuras são vivazes e transcendem tanto os seus próprios limites aos quais parecem reduzidos que dizem mais de nossas naturezas do que vemos à primeira vista.
 

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