As migrações na experiência e na imaginação de José Marques Sarmento

Por Fábio Roberto Ferreira Barreto

José Marques Sarmento. Foto: Arquivo do escritor.



O Brasil em movimento...

Os fins que me movimentam, neste meio de ano, a fixar palavras, nesta coluna, sobre um autor nordestino contemporâneo... O texto, após alguns esboços, não fluía, nem deixava de ser turvo, mas o pensamento “avoava”, tentando clarear as ideias. Fiquei matutando que se não é fácil escrever sobre uma temática tão delicada como as migrações e a literatura, não consigo imaginar o que seria tornar-se migrante (ou, quiçá, em casos mais extremos, um refugiado) como alternativa última à manutenção da vida. 
 
São os deslocamentos humanos – diga-se de passagem – que, mais do que em diversos lugares do mundo, colocam as identidades nos documentos de brasileiros – e nem me refiro a nomes, o que renderia muitas discussões, mas às fotos. Como se diz popularmente, “está na cara” que somos um povo mestiço; também no jeito de falar, nas comidas, nos hábitos, nós, no Brasil, somos o mundo todo e um único povo! E tem gente pobre de espírito que não gosta dessa riqueza multifacetada...
 
O Brasil sempre teve movimentação populacional. Os povos indígenas eram nômades antes de 1500. A chegada (ainda que por meio da escravização) de distintos povos africanos, a imigração de diversos grupos populacionais do mundo e, não se pode ignorar,  os vários fluxos internos de migração pelo país (especialmente do século XX) tornaram diversificada a composição étnica brasileira. Somos um país hoje singular resultado da confluência de outrora de povos plurais.
 
Tratando do assunto acerca das migrações, aliás, é junho, já! O ano já não é novo, nem tampouco velho: está na mocidade! Aqui no Brasil¹, é o mês de celebração às pessoas que enfrentaram adversidades e, ao se deslocarem em busca da sobrevivência, trouxeram para as novas cidades os sonhos e suas vivências: 19 – Dia Nacional do Migrante; 20 – Dia do Refugiado; 25 – Dia do Imigrante.  Mês festivo também em bandeirolas e quermesses, sobretudo no Nordeste do país!

Dentre as linguagens da Arte, a Literatura
 
Confesso que senão pela arte teria mais dificuldades para compreender as questões atinentes aos fluxos migratórios. Umberto Eco, em A estrutura do ausente, lembra que “somos falados pela linguagem”. Graciliano “fala” pela prosa em Vidas secas. Portinari “fala” pela pintura em Retirantes. Luiz Gonzaga “fala” pela música em “Asa Branca”. João Cabral de Melo Neto “fala” pelos versos em Morte e vida Severina. Glauber Rocha “fala” pelo cinema em Deus e o Diabo na Terra do Sol.
 
A literatura – motivo de existir esta coluna –, por meio de sua capacidade de representar os sentimentos mais humanos, possibilita a compreensão das transitividades (e por que não transitoriedades?) humanas envolvendo nosso país,  nossa gente e outros povos. É a literatura que permite que a fusão cultural do país não me deixe confuso sobre o Brasil. Estou lendo entusiasticamente, inclusive, Literatura e imigração: sonhos em movimento e  Migrantes nordestinos na literatura brasileira.
 
Mas o assunto de hoje é Zito, José Marques Sarmento, Zé Sarmento... Sua literatura
 
A efetiva motivação para escrever aqui (agora vai) é um autor nordestino contemporâneo que “fala”, dentre outros dramas e sentimentos humanos, acerca de pessoas que, partindo corações e/ou de corações partidos, partiram rumo a outras terras. Não dançar quadrilha, nem beber quentão e comer pamonha  na Paróquia São Sebastião, aqui no meu bairro, nesse mês de junho, é um distanciamento atenuado, ao menos, por  José Marques Sarmento, que, por acaso, veio de outro estado para ser meu vizinho.
 
O nordestino Zito, erradicado em São Paulo desde 1977, primeiro na região central, depois no Parque Sônia, periferia paulistana, nasceu em São Gonçalo, município de Sousa, na Paraíba. A profissão gaffer, no cinema iluminação cinematográfica, é o ofício que aproximou o Zé Sarmento de enredos ficcionais, mas como literato foi na artesania de romances que, efetivamente, José Marques Sarmento encontrou a ficção!
 
José Marques Sarmento estreou como autor em 1993. De lá para cá, foram nove romances publicados; além de mais um sob o pseudônimo Débora Paim: dez no total! Alfabetizado aos catorze anos, Zé Sarmento lançou recentemente Os miseráveis da seca, que fecha “a tetralogia e suas pesquisas sobre retirantes nordestinos” (orelha do livro), iniciada em Paraisópolis, caminhos de vida e morte, continuada em Bixiga, um cortiço dos infernos e em Ângela, um jardim no vermelho.
 
Os miseráveis da seca é narrado pela voz de José Divino Silva, o caçula da família Silva, “homem fenomenal da natureza sertaneja” (p.309).  No transcorrer da obra, cem anos da História brasileira se passam. “Padim Ciço” aparece na romaria que faz com a mãe. O protagonista narra passagens de sua família em meio aos contextos históricos: Coluna Prestes, Lampião, Getúlio Vargas, Revolução Constitucionalista, Olga Benário, Pracinhas da Segunda Guerra, Copa do Mundo 1958, Golpe de 64, Diretas Já... Vale a leitura!
 
Migrantes nordestinos
 
É recorrente, na obra de José Marques Sarmento, a experiência do migrante nordestino nos grandes centros urbanos, como um sujeito de sua história e não como um ser estereotipado. Em Os miseráveis da seca, o narrador diz que “é o sonho de todo nordestino retirante: voltar para sua terra e morrer em paz no seio de sua humilde origem” (p. 201); inclusive, de seus entes da “Grande Família Silva, que desde que deixaram a terra Natal, sonhavam voltar para morrer no lugar de origem” (p.201).
 
Zé Sarmento narra experiências pessoais, discorre sobre seus processos de criação literária e faz suas “prosias” – como intitula seus poemas –, nos saraus paulistanos e nas escolas periféricas da Grande São Paulo. Em suas falas e em seus textos, se imbricam as leituras do mundo e  da palavra: autobiografia e literatura. É impossível dissociar a vida do autor Zito da obra do escritor José Marques Sarmento; mesmo quando a voz narradora é feminina como em Ângela ou em Guerreira (este com pseudônimo).
 
Apesar de seu lugar de fala como migrante nordestino, Zé Sarmento não abre mão de pesquisas para ampliar suas obras realistas; às vezes, na linha do  fantástico/maravilhoso, como em Paraisópolis ou em seu recém-lançado livro (que lhe demandou anos de labor artístico). Além desses romances, em  Bixiga e Ângela sobressaltam dados de um pesquisador interessado em valorizar as quebradas periféricas, sem a ausência do escritor compromissado com as mudanças.
 
Aliás, a faceta pesquisadora de Zé Sarmento o levou a prestar o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), obter bolsa do Programa Universidade para Todos (PROUNI), cursar História e diplomar-se na casa dos 50 anos (outra vitória dos migrantes nas cidades grandes: prosseguir nos estudos). É uma apreciação estética ler os livros de José Marques Sarmento, mas também uma emoção escutá-lo a falar com os estudantes de escolas públicas, sobretudo de Educação de Jovens e Adultos (EJA). Encorajam-me suas escritas e suas falas a acreditar em mundo melhor. 
 
Para encerrar, incluiria Urbanoides entre os clássicos do autor (sua tetralogia), por se ocupar das imposições da brutalidade urbana aos menos favorecidos, bem como A revolução dos corvos, pelas preocupações com o cenário político brasileiro. Não deixaria de recomendar  outras três obras (menos potentes, a meu ver, quando comparadas com as demais): Um homem quase perfeito, Só falando muito eu consegui a Madonna e Sequestro do negativo exposto.
 
Em tempo: já provoquei Zé Sarmento, mais de uma vez, sobre a necessidade de o autor também publicar seus poemas (ou “prosias”). Um dia, quem sabe?
 
Nota:
1 A Assembleia Geral das Nações Unidas celebra o Dia do Migrante em 18 de dezembro, data instituída em 2000.
 

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