A nuvem escura de Roberto Bolaño
Por Guillermo Ortiz
A noite cai e Udo sai do seu hotel
de férias para procurar Quemado, resgata-o de um bar e leva-o de volta para o
quarto onde os dois se desafiam diante de um tabuleiro repleto de posições
militares, bases e conquistas. O jogo se chama “O Terceiro Reich” e recria a
Segunda Guerra Mundial à maneira de um Risk descomunal, uma costa mediterrânea
já abandonada, quase outubro, as tardes mais curtas e frias, um frio inesperado
para o turista.
Às vezes é o contrário, às vezes é
Quemado que acorda Udo. Principalmente porque ele decidiu que vai ganhar o
jogo. Aparece em Del Mar e espera em silêncio que seu rival desperte ou pelo
menos acorde, para não jogar com vantagem. Pode-se imaginar Quemado com óculos
frágeis, cabelos cacheados, meio sorriso e um cigarro nos lábios, mas não,
Roberto Bolaño prefere que seja um homem musculoso, cheio de cicatrizes, um
guerreiro valente e torturado num país estrangeiro que não sabemos qual.
Em todo caso, Quemado é a noite e
a noite é o universo do marginal. O inesperado. O temido. Quemado mantém guarda
na praia como Bolaño mantinha um acampamento em Casteldefels e Udo
simplesmente sente a paixão pelo abismo típica de qualquer bom rapaz, uma
namorada estável, um emprego fixo, alguns dias de praia em algum lugar do sul.
Estamos em 1989 e Bolaño não é
ninguém. Isso não é ruim, o ruim é que ele mesmo sabe que não é ninguém: mora
em Blanes com sua companheira, que está grávida de seu primeiro filho, Lautaro.
Ajuda numa loja de bijuterias e é um tipo relativamente carismático na cidade, sempre
dentro de sua aparente timidez. O encanto de quem sabe passar despercebido. Ele
está na Espanha há dez anos, cadernos e cadernos manchados de poemas e
passagens cheias de sexo, corcundas e policiais. Histórias recorrentes que se
repetem continuamente.
Se Bolaño não está preso por uma
nuvem escura, parece, mas na vida e no trabalho do chileno, as aparências
brincam com a realidade como Quemado brinca com o burguês Udo nas noites de setembro.
Ele escreve O terceiro Reich, mas ninguém o publica. Ainda quatro anos
depois, em 1993, já com os quarenta anos nas costas, escreveu o famoso poema
que resume sua carreira até aquele momento e que dá início ao formidável volume
intitulado A universidade desconhecida, publicado postumamente, como
tantas coisas, em 2007: “Rejeições da Anagrama, Grijalbo, Planeta, certamente
também da Alfaguara, Mondadori. Um não de Muchnik, Seix Barral, Destino… Todos as
editoras… Todos os leitores… Todos os gerentes de vendas”.
Mas aqueles que se lembram dele, se
lembram dele feliz. Como se, estar por cima, tal como dizia Rilke, fosse tudo.
A energia febril da
Universidade Desconhecida
Escolhi O terceiro Reich
para começar este texto sobre esses anos sombrios de Roberto Bolaño porque me
parece de longe sua obra mais subestimada, uma espécie de Freaks dos
anos oitenta vista de uma distância cada vez menor: o esplendor dos primeiros
dias de sol e calor e agosto que dão lugar à escuridão e à solidão da cidade
turística mas sem turistas, sem praia, sem trabalho. O hotel que continua
aberto sem saber bem por que, com Udo quase como único cliente, um cliente fora
de si, maluco, fugitivo...
No entanto, todos concordaremos
que é precisamente A universidade desconhecida que melhor simboliza este
período de Bolaño e as suas páginas são por vezes uma coleção de pinturas obscuras,
que vão desde um exultante vitalismo ao mais alto tom da nostalgia, a tristeza
do dia a dia , o marginal sem filtros, as ruas do Raval, as Ramblas dos anos
oitenta com os seus viciados em heroína, o próprio parque de campismo repetido
sem parar, a ruiva, a obsessão de um tipo febril e doente, com um fígado já a
claudicar. Uma espécie de Nietzsche que se recusa a desistir, que vê na própria
doença um sinal de saúde.
Bolaño como representante do
destino latino-americano. Ele gostava de se ver assim. Escritor chileno em
Barcelona, mas que escreve, não posa no bar Bocaccio, não compartilha festas
com Barral ou Balcells. Ele não é um boom, é uma implosão descontraída.
Bolaño na UNAM durante a repressão mexicana de 1968, Bolaño recém-chegado ao
Chile durante o estabelecimento do golpe de Pinochet. Bolaño, em suma, convertido num
fugitivo, um fugitivo selvagem que só precisa investigar nos livros e nas ruas
que fedem à urina.
De certa forma, A universidade
desconhecida é o complemento perfeito para Os detetives selvagens, e
eu tenho esta última como uma das melhores obras literárias do final do século.
O que nesse romance será ironia, noites mexicanas frenéticas, real-visceralismo
de encontros e lutas, perseguições a um velho Octavio Paz, aqui é realidade,
dureza, antecipação do que será a segunda parte do livro que o consagrou:
aquele pai Font encerrado em um manicômio e ao mesmo tempo perfeitamente são,
aquela beleza perdida, que foge da juventude dispersa por um continente, Ulises
Lima e Arturo Belano procuram no deserto de Sonora os vestígios de um poema.
Os detetives selvagens nos embala,
coloca a gente no banco de trás e se acaso a gente se perder eles nos desenham
um pequeno quadro. A universidade desconhecida, por outro lado, nos
acorda com um copo de água gelada. Porque não há outro, porque não há dias para
se esticar, pequeno Udo, esperando um milagre, brincando com o perigo,
cercando-se de más companhias. Não há nada para desistir. São poemas selvagens,
histórias selvagens, é vida, mas uma vida dos anos oitenta, Quinta del Sordo.
Nada que nos faça pensar que esse homem estava se apaixonando e começando uma
vida familiar. Nada que se refira à pequena vila de pescadores na costa de
Girona.
Se a pobreza de Os detetives
selvagens costuma ser uma pobreza estética, uma pobreza do café de La
colmena em que alguém se convida ou se deixa ser convidado, um prelúdio para
uma rodada noturna de descobertas, meia-noite na Cidade do México, na Universidade,
a solidão, as noites perdidas de acampamentos no inverno não dão pé à metáfora.
São o que são. E isso é apreciado. Sem heroísmos, por favor. Apenas
resistência, resistência, guarda-chuva sob a tempestade.
A fugaz vida feliz de Roberto
Bolaño
Pode-se dizer que a nuvem escura —
pelo menos a nuvem escura literária, o fígado continuou a fazer guerra, tanta
guerra que tirou sua vida em 2003, depois de cinquenta anos — se dissipava em
1994 com aquele Prêmio da Cidade de Irun que deu luz ao que estivera nas
sombras por quase vinte anos. Depois veio A literatura nazista na América,
um falso ensaio, irônico, engraçado que serviu para acertar algumas contas
pendentes — Bolaño sempre foi muito claro, em suas afiliações e em suas fobias,
eufemismos, os justos — e finalmente em 1998 a consagração com os Prêmio
Herralde para seus detetives selvagens.
Agora sim, agora já colunas em
revistas e jornais e seis de todas as editoras para onde gostaria de enviar os
seus manuscritos empilhados e datilografados com urgência ou guardados na memória
de computadores que de vez em quando ainda deixam algumas surpresas. Provavelmente,
muitos chegaram ao Bolaño atraídos por uma espécie de “mágico arrependimento” e
encontram um homem bonachão, bastante enfermo, obcecado pelo dinheiro que
poderia deixar para a família quando não mais existisse e convencido de que ia partir
mais cedo que tarde.
Recriou sua época no México em
romances duvidosos, às vezes repetidamente, compilou contos de mais ou menos
sucesso, foi francamente desigual em sua obra e embarcou naquele último desafio
que foi 2666, livro que tem origem em algumas notas sobre a personagem
de Amalfitano, que seria publicado em 2011 sob o título de As agruras do
verdadeiro tira, um livro genuinamente dispensável.
Muito se escreveu sobre 2666
e as mais variadas abordagens, embora seja curioso o fato de ser lembrado mais
pela contagem dos assassinatos em Santa Teresa (Ciudad Juárez) do que pela
história maluca do esquivo Benno von Archimboldi. Ele escreveu e terminou de
qualquer maneira, para que seus filhos tivessem dinheiro, para que não
passassem por sua própria nuvem escura, sua própria miséria exilada. Foi um
sucesso, é claro, mas não é fácil adivinhar por quê, o que nesse livro conectou
a um grande público enquanto outros livros, tão magníficos, mas talvez mais
sombrios, passaram despercebidos.
Como leitor, até mesmo como leitor
dedicado, fico feliz que Bolaño tenha tido aqueles cinco anos de sucesso em
massa. Se há algo que sinto pena, é que foram apenas cinco. Tantos anos lavando
pratos em restaurantes de Barcelona e apenas cinco anos de reconhecimento
mundial. Pouco antes de morrer, numa entrevista concedida quase como um cadáver
à revista Playboy e recolhida no volume Entre parênteses, afirma,
referindo-se aos seus anos sombrios: “Claro que pensei em suicidar-me. Em
alguma ocasião, sobrevivi exatamente porque sabia como me matar se as coisas
piorassem”.
É um diálogo maravilhoso, uma
espécie de epitáfio de dez páginas que, é claro, também apareceu após sua
morte. A certa altura, Mónica Maristáin pergunta-lhe: “Já experimentou a fome
feroz, o frio que penetra nos ossos, o calor que tira o fôlego?”, e ele
responde numa linha: “Cito Vitorio Gassman num filme: Modestamente, sim”. Às
vezes, admito, todo esse universo marginal me cansa... mas outras vezes, quando
ocorre o verdadeiro gênio, o gênio da tristeza sem nuances: esses dois homens
destruídos, suicidófilos, jogando de madrugada, essas cartas de rejeição, essa
angústia febril da madrugada catalã... a empatia é inevitável e esse é o mérito,
suponho, de todo grande escritor, que um sujeito de classe média alta do bairro
de Malasaña tenha empatia por uma vida que não conhece nem remotamente.
Apenas a observação das nuvens escuras,
que, sim, deixam qualquer terreno alagado sem a compreensão do dono.
* Este
texto é a tradução de “La nube negra de Roberto Bolaño”, publicado aqui, em Jot
Down.
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