A ausência, de Peter Handke
Por Pedro Fernandes
A convencionada literatura de
invenção, constituída das alternativas de fuga dos protocolos realistas,
alberga uma lista de criadores que, centrados na dinâmica da linguagem e da
enunciação, almejam quase sempre justificar seus objetos não como extensões dialogantes
com o mundo exterior, mas mundos autênticos. Uma dessas maneiras criativas é a
de se apropriar de recursos possíveis noutras expressões que lidam com a
mimesis, tais como o teatro e o cinema. No caso do Peter Handke autor de A
ausência, romance que se situa entre os últimos da sua primeira fase literária,
o que verificamos é o contínuo exercício de adiamento do enredo e o acurado interesse
pela imagem, duas técnicas, podemos assim dizer, derivadas dos modos ficcionais
dramáticos. O resultado é uma sintaxe narrativa bastante específica voltada não
para o interesse de contar uma história mas propor histórias possíveis.
Se comumente se associa um recurso
dessa natureza às linguagens do teatro e do cinema, é bom esclarecer que não se
considera para tanto os modelos dramáticos que se valham ou sejam favorecidos
pela organização de método realista. No caso específico do escritor austríaco é
público os seus gostos pelo cinema de Robert Bresson, Friedrich Murnau,
Jean-Luc Godard, François Truffaut, entre outros. Para ele, esses cineastas preferem
uma narrativa — se ainda possível utilizar esse termo — destituída do simbólico,
quase sempre ausentes de enredo e interessadas em oferecer aos espectadores
outro caminho de acesso ao que se conta, pela via do encadeamento disperso
da imagem e das sensações por ela produzidas.
O romance de 1987 que se tornaria
filme anos mais tarde é um bom exemplo do que sempre chamamos, na mesma linha
do conceito de literatura de invenção, de obra experimental. Mas há um detalhe
aqui que não permite tratar este livro produto de meras emulações apropriativas
entre uma forma ficcional e outra. Isso acontece porque o escritor se apropria
dos procedimentos da ficção romanesca e neles atua sem o vazio interesse da
desconstrução, mas na tentativa de pelo elastecimento das práticas oferecer possibilidades
mais autênticas de representação. A ausência demonstra claramente
o tratamento de reapropriação da técnica naturalista, a de descrever
minuciosamente as coisas, tratamento que, se no seu tempo cumpriu de alguma
maneira com a tarefa de retrato das coisas, contemporaneamente perdeu
forças. Mas, ao invés de apagar o recurso, o romancista dele se apropria e modifica-o.
É possível compreender que Peter
Handke ativa a descrição, desfazendo-se da forma estática. Ou seja, o que se
faz desfronteiriço aqui são as fronteiras com a narração. Mas, o apelo
cinematográfico, pela sua natureza de imagem em movimento é a expressão a qual
logo recorremos no intuito de sintetizar sua criação. O que é favorecido pelo
cinema reside então na dimensão como se porta a narrativa. Vale citar o ensaio “Prosa”,
também do escritor: “O fluxo do filme é claramente antecipado: a história não é
inventada, ela é encontrada; ou seja, é pelo filme que ela se torna conhecida
ao espectador. Aqui não há uma criação prévia da história do filme: os
procedimentos formais são previamente estabelecidos de modo que uma variação
não é mais possível.”
Em A ausência, um narrador
desencardo que se institui como a própria manifestação do que o título do romance
sugere, apresenta em lenta câmera quatro personagens (mais tarde perceberemos
que são apenas três), oferecendo apenas o acompanhamento pelos lugares ou as
circunstâncias onde estão metidas. Ou seja, não se oferece nenhum contorno ou
elemento caracterizador. Cada uma está separada em seu próprio mundo e são os
designativos — o Velho, a Mulher, o Soldado e o Jogador — bem como suas
atitudes que sugerem quem são. Assim, a primeira, por exemplo, se articula com
várias significações: por certa atenção para com a palavra, há um caderno de
notas que o acompanha e onde repousam vez ou outra um termo solto, antes, pelas
próprias paredes e móveis do minúsculo quarto de onde está de partida. Sua
posição e interesses sugerem ao leitor alguns papéis: parte igual no conjunto
de personagens; guia das demais, quando se formam em grupo para exploração
aleatória do mundo; líder a quem os demais seguem sem questionar seus destinos
para depois se descobrirem sozinhas; manifestação metaficcional, o escritor em
duelo com suas criações.
Isoladas, essas personagens constroem
algum indício de vínculo quando se percebem envolvidas em vagar fora de seus
mundos particulares. Notáveis (como a Mulher) ou não, são propriamente ausências.
Chama atenção o longo monólogo praticado pela mãe do Soldado, num episódio
aleatório que irrompe na superfície da narrativa — mesmo em convívio, os laços pela
comunicação praticamente inexistem, praticam um diálogo surdo. A mãe do Soldado
reclama da invisibilidade do filho; enquanto todos os homens de corporação
naturalmente são presenças vivas, ele é o inexpressivo, o apagado, o destituído
de atitude, o que passa desapercebido seja qual for a situação, um
transparente, mesmo que plenamente bem-ajustado ao seu meio e autor de bons
serviços prestados. De alguma maneira, essa única caracterização indireta dessa
personagem — note que por um recurso puramente teatral em que um caractere designa
o outro — se articula, de alguma maneira, para uma compreensão acerca das demais
figuras do romance.
O Velho, a Mulher, o Soldado e o
Jogador se encontram — e a razão obriga que estabeleçamos qualquer diretriz
prévia — no vagão de um trem. Já aqui, o leitor poderá entender que a narrativa
enfim se estabelecerá pela integração ao topos da viagem; esta deve ser a
milésima alternativa que se propõe desde a introdução da primeira imagem no
romance e não será última que utilizamos como alternativa para encadeamento
lógico-linear dos episódios. As quatro figuras decidem ir até o fim do destino
e depois se integram numa variedade de outras viagens — num trailer de acampamento,
numa árdua caminhada, num ônibus —, cada uma delas num vertiginoso
aprofundamento no dessentido, favorecendo a repetição junto com as tentativas
de sentido da pergunta: o que buscam os viajantes, qual o sentido da busca, o que
encontrarão quando alcançarem chegar ou mesmo se chegarão.
Se as tentativas de ordenação são
quase infinitas, as respostas se igualam em proporção. Podemos inferir que
fogem de si próprias, do passado indecoroso que as atormentam (caso visível no Jogador,
marcado pelo vício da jogatina), fogem do lugar-comum, da vida inexpressiva que
levam num cotidiano feito de isolamento, buscam o lugar possível em que possam
ser outros ou o que são, a terra prometida (tal como se sugere em certa
passagem, ainda que ao avesso do modelo hebraico), buscam se descobrir, querem
uma vida de valor estoico, fogem das circunstâncias históricas, dos seus
fantasmas, das suas ausências, ou buscam do que fogem. A cada passagem, os viajantes
não deixam de encontrar, afinal, não existe percurso que mesmo sem destino não
revele alguma coisa — mas, o que encontram se integra à nossa comum
insatisfação e nada os preenchem ou esvaziam, tudo não deixa de intervir e
corromper as pequenas certezas que não buscam.
De todas as evidências, coloquemos
à parte as existencialistas para observar melhor as da história — e aqui
encontraremos mesmo uma resposta acerca de uma crise da linguagem como elemento
essencial para o que se designa nova linguagem em Peter Handke. Ora, o contexto
desse romance é assinalado pelos resquícios do trauma da Segunda Guerra Mundial,
sejam a queda, a integração do Império Austro-húngaro ao nazismo, a divisão
territorial ao modo do que se passou na Alemanha e a devolução da identidade à nação
em 1955, sejam os conflitos ideológicos daí instaurados. Dessas circunstâncias,
fiquemos com o episódio mais duro para toda a Europa do século XX.
Reiteradamente o tema aflora em A ausência. Nos monólogos de
apresentação das personagens ainda no vagão do trem, o discurso do Velho se
constitui de uma pequena reflexão filosófica sobre as geografias do
desconhecido, as que homem galgou na história vigente e as ainda intocadas pela
sua presença. Noutra passagem é esta mesma personagem quem diz da
impossibilidade dos lugares de plenitude, ao compreender que são neles onde
melhor residem a certeza de que a melhor maneira de estar no mundo reside na
transitoriedade.
Mas é depois desses instantes que
o grupo encontra os primeiros resquícios da história não tão distante: num dos
campos de pouso, eles percebem uma construção com resquícios da guerra a partir
de uma larga banheira deixada à beira de um rio. Vale a leitura do que enuncia
a voz descarnada do narrador: “A banheira arruinada ali na margem, grande o
bastante para uma família inteira, não é o resto de uma moradia. Durante a
guerra serviu como balsa para os combatentes da Resistência. À noite eles
remavam para cima sobre o rio. A toda hora soçobravam, e muitos deles
afogaram-se; normalmente eram camponeses e não sabiam nadar; precisava-se
diariamente de um reforço dessas bacias, de uma oficina secreta. Não há um
monumento para esses mortos. Nem se sabe mais que outrora a ruína foi a usina
elétrica de toda a região; até a propriedade rural na fronteira das árvores a
torrente elétrica irregular dava uma luz bruxuleante.” Fiquemos com passagem
que propositalmente colocamos em destaque, reprovada pela Mulher, interessada
que o Jogador não fale de lugares, mas do amor.
Na viagem a pé, encontramos outro instante
de irrupção dos sinais da guerra; os viandantes se deparam com “um cemitério de
soldados, da largura e profundidade de várias pedreiras, organizado em fileiras
de mármore que sobem de leve, maiores que um homem, mais ou menos do mesmo
número que as letras do alfabeto, cada bloco de pedra esculpido até as beiradas
com colunas de nomes, e por cima de cada coluna, ao contrário dos nomes,
legível também a distância, saltando imediatamente aos olhos, a mesma palavra:
PRESENTE, em letras negras das quais algo cintila pelo imenso território dos caídos,
e parece reboar de gargantas emudecidas.” Contraposta a esta imagem é outra,
também de um cemitério de mortos da Segunda Guerra. “É diferente com o memorial
aos mortos das forças derrotadas, anexo ao primeiro, logo atrás do muro, do
tamanho de um de cemitério de aldeia, cruzes marcadas com letras
insignificantes, os poucos nomes em geral incompletos, cheios de pontos de
interrogação, ou tão mutilados que lembram apelidos.”
Atravessado os vales dos mortos,
designados por dicotomia, os andantes alcançam uma terra feita de prodígios, mas
sem encontrar repouso, embora, “Por algum tempo ainda imaginamos estar numa região
onde se pudesse fugir da história, que fosse também uma terra nova, algo para
se recomeçar.” Ora o que aqui se vislumbra é o tema do homem desterrado, do que
incansavelmente busca o lugar de repouso, onde seja possível habitar em
harmonia. Não é de utopia o que aqui se fala, mas de recomeço depois do trauma
— este que aflora continuamente pela presença dos consumidos pela morte na guerra.
Quer dizer, uma das possibilidades de leitura sobre o périplo dessas quatro
personagens é a de reintegração do homem num lugar fora da história, onde seja
capaz de outra vez experienciar o mundo enquanto totalidade. Obviamente que
tudo é ilusão. O curso da viagem encontrará rumos que ao invés de apontar para
a paz possível os integram na grande roldana dos horrores, de modo, que a pouca
certeza deles (e por conseguinte nossa) é que são habitantes fantasmas num mundo
desfeito.
É notável, nesse sentido, o desaparecimento
do Velho, algo que não vivido pelas demais personagens do grupo, mas se imiscui
numa série de imagens reiterativas desse fim: sua aparição enquanto miragem, ora
tornado criança, ora camponês, ora a consciência perversa que arrastou todos
para o mundo de ilusões, reativando outra vez o estilema da história, ao
integrar essa personagem ao papel do líder popular, aquele que por mais de uma
década arrastou toda a Europa para um abismo e que continua a servir de modelo
para certas ideologias em pleno vigor nos tempos correntes. Quer dizer, se o
Velho tematiza a ausência enunciada no título do romance, esta não é feita do
vazio, mas de uma presença excruciante.
Impõe-se a essa altura três
possibilidades de leitura para A ausência: enquanto dimensão
psicológica, o que falta aos sujeitos e os impelem para a busca, para a
condição de libertos e desimpedidos das amarras impostas por todas as linhas que
formam a ordem ou o aparelho social; enquanto dimensão histórica, notável, como
percebemos, nas várias referências ao aparecimento das marcas do pós-guerra e
seus impactos nos silêncios e silenciamentos praticados pelas personagens;
enquanto condição do indivíduo subsumido nas dimensões de um novo mundo que,
pelo trauma ou não, quer negar a todo custo o passado como alternativa de serem
outros. Nesse sentido, o que parece buscar Peter Handke é construir um ensaio capaz
de evidenciar esses impasses do homem do pós-guerra e se vale para isso, dos
materiais da ficção romanesca, estabelecendo uma obra de fronteira.
Peter Handke refere-se a este
romance como um conto de fadas — emprega estes termos como subtítulo. Apesar
de não se deter na construção do simbólico, as consistências são sempre frágeis,
pode-se ler toda a obra como uma parábola acerca dos conflitos de busca do
homem desterrado — do seu tempo, da sua história, da sua condição, do
seu lar — por uma redenção de si, esta fundada não na utopia, mas na construção
material do possível; vale repetir o excerto que ilumina o instante de desfecho
do livro, trazida aqui com o sentido original de uma epígrafe ao contrário: “A
vida do homem na terra passa mais depressa do que o brilho de um cavalo branco
que cai por uma fenda... Tenta peregrinar comigo para o castelo do não ser,
onde tudo é um.”
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