Recordações do escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto
Por Pedro Fernandes
Lima Barreto publicou Recordações
do escrivão Isaías Caminha primeiro em folhetim numa revista criada por ele
próprio e que só teve quatro números conhecidos. O primeiro saiu num sábado, 25
de outubro de 1907; o autor de Floreal era um jovem de 26 anos e este
empreendimento, subtitulado “Publicação bimensal de crítica e literatura”, foi
para ele, certamente, a realização de um sonho. Havia pouco tempo que uma série
de acontecimentos penosos se colocara no seu caminho, entre eles, a necessidade
de abandonar os estudos na Escola Politécnica do Rio de Janeiro devido a necessidade
de sustentar a família depois da loucura do pai. Nesse breve intervalo de
tempo, que cobre os anos de 1903 e o de aparecimento do folhetim, o iniciante
escritor trabalhou em várias frentes: como amanuense na Secretaria da Guerra,
como colaborador no semanário O Diabo, como jornalista no jornal Correio
da Manhã, na escrita de Clara dos Anjos ― romance cujo primeiro
capítulo só chegou ao público no ano da sua morte ―, e na escrita do livro em
questão. Recordações é editado primeiramente em Lisboa, dois anos depois
do folhetim.
Tudo isso, mais que informações
contextuais, ajudaram a compor o tratamento criativo desse romance; a
proximidade entre alguns episódios, sobretudo as fabulações sobre a vida íntima
na redação de jornal, e mesmo o drama do homem apartado do mundo por sua
condição periférica, favoreceu a leitura imediata e contínua dos registros pela
chave autobiográfica, o que é, apesar de limitante, nada descartável. Esse trânsito
entre o fato e a ficção é tão recorrente que, edições como a publicada pela Penguin
/ Companhia das Letras, reproduz ao longo do texto um conjunto de notas (no
caso em questão, preparadas por Isabel Lustosa) que esclarecem documentalmente episódios
e personagens referidos. Se por um lado esse tratamento soa cansativo aos
leitores que estão primeiramente interessados no conteúdo ficcional, por outro
justifica não a autobiografia, como pensarão os amantes da forma, mas a natureza
satírica do romance. Nesse sentido, as notas sugerem o tratamento criativo de
Lima Barreto; como o escritor propôs por sobre um texto outras camadas que
visavam ora embaçar o real imediato ou ora estabelecer o necessário impasse entre
este e o conteúdo ficcional.
O estabelecimento dessas camadas
não envolveu numa total modificação entre o texto original, apresentado no
folhetim, e o que chegou até nós. Foi apenas uma pequena manipulação, carregada
de uma viva ironia, ainda no que mais tarde passou a funcionar como um prólogo.
No folhetim, esse texto inaugural segue um tratamento bastante recorrente na
literatura da época: um mentor, geralmente situado fora do tecido narrativo,
que recebeu, muitas vezes ao acaso, determinado material que agora lê,
investiga, transcreve. Este agora funciona como o eterno presente da leitura,
o que, na teoria da recepção se identifica o instante de quando os
acontecimentos tomam forma pela imaginação criativa do leitor. Trata-se de um
recurso que participa ativamente na constituição da verossimilhança.
No caso das Recordações,
quem encontra o manuscrito é a própria personagem principal da narrativa; mesmo
depois de reconhecer as simplicidades do seu texto, escrito como resposta a uma
série de considerações levantadas por um artigo de opinião desfavoráveis às suas
gentes; a nota explicativa é modesta porque cumpre o interesse, entre linhas,
de Isaías Caminha em questionar o que parece ser a tese original segundo a qual
a inteligência e o lugar social são favorecidos por uma predisposição biológica.
Ainda nas primeiras páginas da narrativa notamos que seu autor substitui esse
entendimento pela defesa acerca do papel das relações entre o homem e o meio.
Voltemos ao texto-prólogo. No livro,
este é intitulado “Breve notícia” e Lima Barreto se coloca como o leitor da
obra de Isaías Caminha. Essa manipulação tolda as referências entre fato e
ficção, enquanto, propositalmente, o escritor se ri tanto dos leram simplificadamente
o romance como um relato biográfico seu. Isto é, o estatuto do escrito agora é
aquele da figura que primeiro teve acesso ao material narrativo, porque Isaías
não é apenas uma personagem, mas o amigo de Lima Barreto e todas as referências
deste são descritas factualmente: a publicação do folhetim em Floreal, as
intervenções de Antônio Noronha, João Pereira Barreto e Albino Forjaz de
Sampaio para a publicação das Recordações em Portugal, bem como as primeiras
reações da crítica em torno do romance: o prefácio só aparece na segunda edição
do livro, publicada uma década depois. A notícia de Lima Barreto é que a
revolta do amigo amainou e na altura é uma figura social qualquer, de vida
simples depois de transitar pelos escalões que em algum momento sonhou
transitar, em parte envolta pelos mesmos atavios ideológicos que a condenou, e
integrada aos mesmos limites sociais que, pouco ou nada variaram desde sua
juventude.
Mas as Recordações firmam-se
como uma sátira social sobre nossa capenga República que então ensaiava os
primeiros passos, uma vez acompanhar com risível interesse nossas misérias
políticas, e como registro dos complexos impasses individuais desenvolvidos
entre sujeito e sociedade, uma vez se interessar em nos oferecer um sério e
bastante singular retrato dessas circunstâncias. Embora muitas vezes tomado ora
por um senso limpo de revolta ora por um questionável sentido sentimental ora
ainda pela observação aguda do seu entorno, Isaías Caminha singulariza algo
muito caro para nossa identidade: nosso fatalismo para o acomodatício. Não que
essa seja uma condição favorecida pela natureza do indivíduo, mas por uma ordem
social opressora que se estabelece entre a imposição do silêncio de acomodação e
o desinteresse dos revoltosos depois de conquistar seu próprio quinhão. É
notável como Lima Barreto esclarece o funcionamento dessa dinâmica que nunca se
pautou no ideal coletivo mas do indivíduo e da classe em favorecimento.
O que causa incômodo na feitura do
romance se manifesta numa discrepância da narrativa: primeiramente, parece que
acompanharemos, à maneira de um Bildungsroman, a formação de Isaías
Caminha. Prevalecem nesse instante, a inteireza de um sonho de grandeza estimulado
desde o berço: o pai prevê boa determinação para o filho nascido quando Napoleão
havia ganhado a batalha de Marengo e os professores o estimulam porque acreditam
numa farta inteligência do menino. Todos esses elementos o empurram para o instante
que se faz cisão e mudança definitiva da vida do adolescente incapaz de ler os
sinais do destino porque envolto no açodar da glória. Enquanto o tempo demonstra
pelas nuvens negras ou pela intempérie pluvial o fim dos coloridos sonhos,
Caminha apenas entende que esses obstáculos são os incentivos para que deixe
sua terra natal e vá buscar a continuidade dos estudos na capital do Brasil. E,
antes mesmo de chegar ao Rio de Janeiro, começará a perceber que os sinais do
tempo eram de sentidos opostos à leitura que fez.
Percebemos que esta é, se podemos
dividir o romance, a melhor parte das Recordações; a dissociação do
homem do seu destino sonhado, o contato com um mundo hostil e embrutecido, totalmente
alheio ao mundo de origem, isto é, a renovação daqueles sentidos simbólicos da
perda da inocência do homem ou sua queda depois de saído do paraíso original. Daí,
o surgimento do revoltado, que desconhece as forças que coordenam os passos do
povo para um lado e dos sistemas que o rege para outro. O embate entre sonho e
realidade, indivíduo e coletividade e todo remanejamento do ideal para outro
possível favorece uma densidade à narrativa que ao invés de se acentuar num
conflito psicológico de espessa camada ou até mesmo alcançar a explosão,
arrefece e mesmo se perde totalmente num segundo instante.
É quando deixamos de reviver com o
narrador suas agruras de jovem e passamos a acompanhá-lo no seu estabelecimento
na mesma redoma que se não lhe oferece privilégios também não o entregam definitivamente
para a roda dos enjeitados. O romance se reveste de outro tom: passa a se
constituir nas mesmas linhas do relato cronístico os meandros de funcionamento do
jornal. É verdade que essa instituição se oferece ora como uma espécie de sismógrafo
ora como cérebro da organização da sociedade. De maneira que esse
acompanhamento favorece o lugar do narrador como olho no interior do poder.
Ocupando-se de uma função anódina na hierarquia da sua classe mas fundamental
no exercício dos da esfera superior este olhar de Isaías Caminha permite detalhar
das rinhas da política, entre colegas de profissão, aos subterfúgios da
imprensa escrita numa era muito semelhante a que agora vivemos com as redes
sociais. O jornal se revela ora uma quase-metonímia da sociedade ora o lugar
onde se realiza de maneira privilegiada todos os demonstrativos da hipocrisia que
a determina. A revelação para o hipócrita não é dada em exclusivo aqui; mas é
quando isso deixa de ser uma tomada de consciência e passa a ser a notável
força que rege todas as relações. A revelação, notará o leitor, se observa
ainda no primeiro instante da narrativa, quando o protagonista se inteira do funcionamento
do coração da República.
Se atento a estas observações, o
leitor notará que as duas linhas formativas do romance correspondem, respectivamente,
o que descrevemos antes como um senso limpo de revolta e questionável sentido
sentimental e observação aguda do seu entorno. Nesse sentido, a discrepância da
narrativa, antevista como uma fragilidade do romance, parece ser proposital quanto
ao trabalho argumentativo de Isaías; marcado pelo propósito de “dizer aquilo
que os simples fatos não dizem”, sua linha de raciocínio é, primeiro oferecer
uma leitura do menino e jovem idealista e sua transformação à contragosto dos
seus princípios, e depois, esclarecer como o aparelho social favorece à
salvação ou condena do homem. Ou melhor, como o homem uma vez integrado ao rebanho
dos silenciosos constitui pura peça de engrenagem e sua vida se torna a parte
desenxabida da existência. E isso, além de uma constatação meio ingênua meio
romântica de que o sonho é o impulso para o sentido pleno da vida, é uma
cobrança sobre a necessidade da revolta como força transformativa das ordens que
nos impedem para fora dos sonhos.
O que essas Recordações oferecem,
no pequeno descompasso entre o eu e o mundo, entre as vontades individuais e a
força coercitiva dos sistemas de ordem formados de processos colonizatórios
como o nosso, é uma triste mas verdadeira constatação: raramente o ideal é o
real. E numa sociedade feita de privilégios mesquinhos, muito deles conseguidos
ao custo da boa vontade alheia e mantida pelo favor e pelo poder capital, essa condição
forja toda uma classe entregue à resignação ― amargurada ou não ―
porque incapaz de se reconhecer no lugar para o qual foi imposto. Nessa mesma
sociedade, a saída possível para não perecer na miséria não é puramente a
inteligência, o esforço e a dedicação, mas a esperteza, o interesse particular,
o conchavo, a submissão. Se não por essas maneiras, pelo ajustamento do
indivíduo, direta ou indiretamente, a essas forças. Obviamente, que algumas
aberturas foram conseguidas a duras penas, mas na prática, o que vivemos hoje
ainda é puramente um prolongamento desses vícios denunciados por Isaías
Caminha.
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