Os contos de John Cheever: desejo, tragédia, redenção
Por João Arthur Macieira
Desejo e literatura
Porque
a literatura não é mera reprodução de sensações, mas uma experiência produtiva
que acontece tanto em quem escreve como em que lê, a obra de um autor como John
Cheever não está limitada ao próprio contexto cultural. A literatura também não
é uma expressão essencial da subjetividade do autor, mas acontece justamente
fora dela. Quando falamos de um autor como esse, é difícil não se deixar
capturar pela explicação psicologizante ou biográfica do texto. Quem por acaso
teve acesso aos seus diários intuirá porque toco nesse ponto: quando lemos
aquelas linhas, deparamo-nos com um sujeito fragmentado, lutando para dar forma
à própria subjetividade e sentido ao conjunto de sua vida. Ainda que essa seja
uma marca dos personagens de Cheever e faça parte dos elementos que mobilizam
suas narrativas, mas não de seu narrador. Seus diários parecem com uma tentativa
angustiada de compreender a própria constituição enquanto sujeito, mas seus
contos adotam uma postura mais objetiva e descritiva. O caminho dessa diferença
se dá através do narrador. Se o texto literário fosse a expressão direta da
subjetividade de quem escreve, seus contos seriam impossíveis, pois suas formas
se limitariam àquela fragmentariedade que encontramos nos diários. Essa linha
que demarca a diferença entre o diário e o conto, porosa ainda que demande
diferenças importantes é um dos aspectos mais interessantes da sua obra. Os
contos de John Cheever se situam num dos caminhos da literatura contemporânea, onde cresce
aquilo que chamamos de autoficção.
Bissexual,
John Cheever parece nunca ter feito as pazes com sua vida pulsional. Tema
incontornável nos diários, a sexualidade é pouco explorada nos seus contos. A
honestidade com que Cheever encara o tema do desejo em intimidade não encontra
par na sua ficção, apesar de encontrarmos nela a mesma impassividade diante do
assunto. “The Chase of Clarissa” é um conto exemplar: nele, o desejo captura o
personagem, mas aquela que é desejada termina por se tornar uma presa daquele
que a deseja. A beleza e as reações que elas provocam são descritas pelo
narrador com a mesma voz que reconhece sua ingenuidade e sua condição de vítima.
Nos diários, Cheever vê-se por vezes como vítima de uma esposa perversa, em
outras, ele reconhece em si mesmo o algoz.
Mas
isso não quer dizer que a literatura de Cheever deva ser lida como desvio
pulsional, como se fosse uma compensação dos desejos irrealizados no plano da
realidade concreta, pois isso seria dizer que a literatura não faz parte do
real. Pelo contrário, como nos são descritos nos diários, os casos que teve,
assim como o amor que sentira por si mesmo, pela família e pelas próprias
criações literárias mostram um sujeito plenamente capaz de desejar. É sensível
essa semelhança entre a escrita de intimidade e seus contos: a atmosfera que
circula nelas é a de uma profunda insatisfação e frustração com esses mesmos
desejos, realizados ou não. E se a literatura de fato não imita sensações, mas
é capaz de produzi-las, é nos contos que encontraremos essa atmosfera realmente
formada.
Sua
obra atravessa parte significativa da segunda metade do século XX, e parte
quase sempre dos mesmos lugares e figuras: o Nordeste dos Estados Unidos, a
classe média branca, o seio familiar, a vizinhança formada por habitantes dos subúrbios.
Nesses personagens, existem sonhos e expectativas que destoam por vezes daquilo
que se esperaria, como tornar-se dramaturgo em Nova York, treinar corrida com
saltos na meia-idade, nadar em todas as piscinas do condado num mesmo dia,
ficar rico (ou escapar à pobreza) do dia para noite, de encontrar amor
eterno... Todas essas reviravoltas são esperadas como frutos do mais puro acaso,
nunca como retorno daquela ética do trabalho capitalista que Weber acreditava
encontrar no mundo anglo-americano. Mas todos esses sonhos são rapidamente
esmagados pela realidade, às vezes de forma pouco justificável. É mérito seu
não tentar explicar esses motivos ou compensar as perdas que as tramas trazem
aos personagens. Eles são figuras que vivem sob o julgo do acaso, sua boa ou má
sorte está completamente fora de seus alcances. Não é à toa que nesses contos
existam crianças mortas em acidentes brutais e abundem as tentações do suicídio.
Mais uma vez, isso não parece justificável enquanto expressão de traumas
causados pela infância difícil do autor, mas pode ser visto como uma
intervenção produtiva no real a partir da literatura. Cheever aqui denuncia
realidades da situação econômica, cultural e moral das classes médias
estadunidenses que seria de difícil acesso sem os seus contos.
O
recurso repetido às mesmas figuras pode cansar o leitor, mas tem seus motivos e
garantiu que o escritor não se perdesse por mundos que não poderia descrever
naquela forma realista que buscou. Para ele, sua prosa seria sempre “trivial”
por esse motivo: ele escreveu sobre um mundo menor, mas é preciso fazer justiça
por essa “opção” de Cheever contra ele mesmo. O objeto trivial, que inegavelmente
foi o seu, não implica uma literatura trivial. Como diz Deleuze das literaturas
estadunidense e russa, um de seus maiores méritos foi fazer-se quase
inteiramente de linguagens e personagens menores.
Além
disso, a menoridade do mundo de Cheever opõe-se diretamente ao movimento que
ocorria em outros planos da realidade concreta em seu país, como o econômico e
político. Os Estados Unidos do pós-Segunda Guerra não apenas se estabeleceram
como a maior potência capitalista da história, como tornaram-se de fato um
império de proporções militares, tecnológicas incomparáveis na história
ocidental. De modo que sua recusa a extravasar os espaços daquele mundo menor e
“trivial” é ao mesmo tempo um movimento de resistência, de recusa à expansão,
mas também possibilita que uma crítica muito intensa apareça no coração no
sonho americano, a família nuclear do Nordeste. Cheever coloca em questão,
ainda de forma indireta, a centralidade da família e do sujeito como núcleos da
cultura e economia estadunidenses do período. Afinal, estão ambos esfarelados
pela realidade: a situação financeira da classe média está sempre à beira do
colapso e a integridade e unidade dos sujeitos, principalmente a do
“chefe-de-família” é ameaçada pela própria repressão necessária à sua
existência.
II
O narrador amargurado da
tragédia de classe média
O
narrador é o ponto de condensação dessas características. Para constituir sua
narração, o autor recorre a uma voz melancólica, que chega a um amargor por
vezes insuportável. O que interessa de fato é como Cheever encontra formas
objetivas para descrever sem qualquer sentimentalismo aquela determinada
atmosfera que comentamos; “The Enormous Radio” ou “O City of Broken Dreams” oferecem-na de forma exemplar: o desejo que se manifesta nos personagens
retorna sempre como frustração, as relações sociais estão absolutamente
dominadas pela lógica mercantil, do que decorre uma extrema perversidade
generalizada nas histórias que conta.
A
temporalidade e atmosfera de Cheever não é a da tragédia clássica. Seria
preciso recorrer à moderna noção do trágico, encontrada por exemplo no romance
realista francês, identificado por Eric Auerbach, no ensaio “Na Mansão de La
Mole”. Esse trágico não é mais, como era para a Poética de Aristóteles, uma
propriedade exclusiva das narrativas de conteúdos maiores (ou seja, as quedas
de heróis, reis ou deuses), mas serviria também para narrar a vida e declínio
de personagens menores, como a pequena-burguesia de Balzac.
Valeria
a pena nos perguntarmos o que significa a obra de Cheever sob esta perspectiva:
seriam suas histórias um conjunto de tragédias modernas sobre a classe média
branca estadunidense? Assim como os Estados Unidos na segunda metade do século
XX, a França do fim do século XIX era o centro do Ocidente, daí que não nos
pareça mera coincidência a menoridade dos personagens de Cheever, apesar deles
se inserirem no mundo da classe média mais rica de seu tempo. O que significa,
portanto, quando um escritor descreve com amargor e melancolia a vida daqueles
que vivem sob os padrões de vida que serviram de modelo para todo o Ocidente?
Essas perguntas, por mais que não sejam aqui respondidas, endereçam a leitura
de Cheever para além do seu público conterrâneo e mesmo de língua inglesa,
tornando-o um autor de interesse para qualquer um no século XXI.
III
Imagem e Redenção
A
vida de Cheever foi ela mesma marcada pelo abuso e vício e, como comentado
acima, seus diários mostram traços muito evidentes de uma busca pela autodestruição.
Mas não foram somente trevas que sua literatura conheceu. Por vezes, elas são
dispersadas pela luminosidade de certas imagens. Vale para Cheever o que
Benjamin disse da imagem dialética: há instantes em que a contemplação parece
redimir não apenas as contradições presentes, mas abrir um vórtice para a
redenção da própria sociedade na qual essas imagens emergem. Um conto que
parece dialogar com essa ideia é “The Day The Pig Feel Into The Well”, que narra
por alguns anos os dias de uma família de classe média em sua casa de verão. Em
meio àquela atmosfera da tragédia dos personagens menores, surgem algumas
linhas de redenção:
“Parecia que o verão era um
continente, harmonioso e autossuficiente, com um peculiar alcance de sensações
que incluíam o sentimento de dirigir descalço um velho Cadillac através de um
pasto esburacado e o gosto da água que saía da mangueira do jardim perto da
quadra de tênis, e o prazer de vestir um suéter de lã limpo numa cabana de
montanha ao entardecer, e sentar-se à varanda quando escuro, consciente e ainda
não ressentido de uma sensação de estar preso numa teia de coisas tão tangíveis
e frágeis como uma linha, e o sentimento límpido depois um longo nado”¹.
Podemos
nos perguntar se essas imagens de redenção – as imagens dialéticas – ainda são
possíveis na literatura de nosso século. Elas já davam sinal de seu esgotamento
no século XX, uma vez que algo como a “redenção” foi se tornando cada vez mais
improvável. A obra de Kafka parece ser uma expressão material desse
esgotamento. Diante do declínio dos Estados Unidos enquanto modelo
civilizacional, revisitar uma obra como a de John Cheever pode ajudar a
entender não apenas como a literatura se relacionava com esse processo de queda,
inegavelmente presente nos seus contos, mas também pode esclarecer os modos
pelos quais a atual literatura vai lidar com nosso contemporâneo, que é
marcadamente um tempo de espera. Mas se não há mais redenção – que viria de uma
revolução social que redimiria toda a história do homem – o que ainda há para
esperar?
Notas:
1 A tradução é minha e foi baseada
na edição de 2000 da Vintage International do volume The stories of John
Cheever. Para a tradução de Daniel Galera de alguns trechos dos diários de
Cheever, acessar aqui.
Também é de sua tradução o volume de 28 contos, publicado pela Companhia das
Letras, em 2010. Além disso, há traduções de alguns de seus romances em
português.
Comentários