Naufrágios, de Diego Kullmann

Por Marcelo Moraes Caetano
 



Temos diante de nós uma excelente obra nova de Diego Kullmann. Seu livro Naufrágios (Jaguatirica, 2021) revela um autor capaz de navegar linguagens, cenários e personagens tão marcantes quanto diferentes — e até díspares.
 
O livro desconcerta por sua anotação (seria advertência?) pré-textual: “Baseado em histórias reais”. Isso se dá porque o texto parece aproximar-se da literatura surrealista, de uma metáfora muito concreta, de obras como A jangada de pedra, de José Saramago, ou Incidente em Antares, de Érico Veríssimo. Em todos esses livros, incluído o de Diego Kullmann, o território geográfico parte de uma possível inércia e ruma em direção ao protagonismo subjacente, como verdadeiro personagem-espaço com vez e voz.
 
As histórias (sur)reais, assim, se trançam num emaranhado claustrofóbico, na agonia sufocante de uma cidade que o mar deixa de “costelas expostas”, corroendo e engolindo, com sua selvageria indócil, “doze quarteirões inteiros” de uma só tomada.
 
Trata-se de Atafona, a cidade brasileira, no litoral fluminense, que vem cedendo sua civilidade à ordenança do oceano. Sucumbindo engolfada pela cercania infinita do mar, a cidade é a única pessoa vidente de seu possível destino inexorável; enquanto seus habitantes, pessoas também, mas de outra forma, alienam-se e alheiam-se “nas casas encharcadas. (...) Nas alegrias impossíveis do Atafona Beach Club”. Essa fricção entre a crueza e a fantasia quase sonâmbula empresta ao livro certa ambiência de tropical noir, num território terrestre decrescente nublado pela mesma maresia que revela pequenas e risíveis resistências bandidas contra uma força sobre-humana em plenos trópicos.
 
Nesse embate entre a natureza rude e uma urbanidade frágil e imprevidente, os personagens tentam, com o sucesso ou o insucesso que o leitor interpretará, firmar-se num terreno alagadiço e malfadado a soçobrar num naufrágio insólito. Personagens constituídos, por sinal, com a rara artesania que Diego já demonstra em As esquecidas ermâncias de Destino, sua obra de estreia, que tive a alegria de também prefaciar. Personagens em cujo decurso afluem a altivez, a esperança, a “escassez”, a “esterilidade”, o “ego inflado”, a frustração, a crueldade, a pertinácia, a teimosia. E, certamente, uma das muitas formas da loucura.
 
Acompanhando a corrosão notória, embora recalcada e reprimida, de uma cidade inteira, alguns de seus habitantes comparecem neste livro para expor suas próprias entranhas psíquicas à apreciação estupefata de nossas leituras. A força com que negam — num recalcamento mesmo — a avidez furiosa da água salgada alcança até um tom de lirismo que angaria nossa cumplicidade, como ocorre naqueles personagens de Shakespeare que não desistem de si mesmos à medida que a loucura lhes avança sobre a alma — estão aí Hamlet, Lady Macbeth, Ofélia e Miranda para nos oferecer uma degustação desse patético entrevero.
 
Naufrágios é uma aventura entre o imponderável e o previsível. Faz-nos refletir sobre até que momento é fruto da sanidade resistir contra o fato. Dá-nos uma dimensão nutrida de como a vida e a finitude se entrelaçam, buscando uma síntese que só a obra literária, no mais das vezes, logra atingir e ancorar.
 

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