Lazarilho de Tormes ou a astúcia do anti-herói
Por Joaquim Serra
Lázaro de Tormes, um pícaro –
palavra que remete a ajudante de cozinha –, é o astuto, o sagaz, o velhaco. Na
novela espanhola, não há como desassociar o pícaro de suas características. Lazarilho
de Tormes, o protótipo do gênero picaresco, é a novela que daria origem a
várias outras que viriam depois como Guzmán de Alfarache, de Mateo Alemán e El
Buscón, de Francisco de Quevedo. Mas Lazarilho de Tormes teria um
reconhecimento além por conta de suas estruturas narrativas próprias; segundo
Mario González, “sem dúvida, o que mais importa para a história da literatura
com relação a Lazarillo de Tormes é a profunda inovação que a obra apresenta em
termos de modalidade narrativa: o texto anônimo é uma das raízes do romance” (p.
194). Para Lázaro, anti-herói do protótipo da novela picaresca, escrever em uma
carta sua biografia para “Vossa Mercê”, carta em que tenta justificar sua vida
e suas ações, parece um ato tão descompromissado a ponto de contar ao leitor as
diversas peripécias de sua vida. Mario González insiste: “Lazarillo de Tormes é
bem mais do que uma carta, sem dúvida” (p. 195).
Lázaro é o contraponto do herói da
novela de cavalaria – os heróis essencialmente positivos, os virtuosos que
povoariam os pensamentos do Quixote. Em Dom Quixote, o passado lido em tantas
aventuras daqueles bravos cavaleiros é o presente vivenciado pelo também
cavaleiro, mas da triste figura num mundo também desfigurado. Lázaro é o
contrário do confuso homem de La Mancha, sua virtude é a trapaça num mundo às
avessas, representado também com total compatibilidade com o anti-herói, no
estilo baixo, cômico; mas como Lázaro seria nobre diante daquele mundo? O
primeiro amo, a quem é dado pela mãe pobre, é um cego; “– Aprenda a valer-se
por si mesmo”, diz a mãe de Lázaro como que prefigurando o destino – tão
praguejado – do filho. Lázaro deve mesmo valer-se por si já que a primeira
lição do mestre cego é bater fortemente sua cabeça contra um touro de pedra: “–
Ignorante! Aprenda que o guia do cego tem que saber um ponto mais que o diabo.”
Lázaro aprende a lição e desperta da infância: “O que ele diz é verdade. Devo
abrir bem os olhos e ficar esperto, pois sou sozinho e tenho que aprender a
cuidar de mim”. A tomada de consciência é crucial para o pícaro, e o amo cego
ainda pontua: “nem ouro nem prata posso lhe dar, mas conselhos para viver lhe
darei muitos” (p. 37). Os conselhos serviam para o mundo da trapaça, para uma
formação muito aquém daquela esperada.
A partir dessas lições, o que se
vê é a vida de um burlador tentando sobreviver à fome, aos maus-tratos, um
gatuno em que “todas suas ações se destinam a seu próprio proveito” (p. 199). Sobre
o amo cego, Lázaro o reconhece como alguém plenamente adaptado àquela
sociedade: “desde que Deus criou o mundo, ninguém Ele fez mais astuto e sagaz”
(p. 39). Vale apontar essa leitura do amo feita por Lázaro, uma vez que Lázaro,
nas várias peripécias inseparáveis à sua existência – características também desse
gênero narrativo –, comete uma série de excessos; já o mestre, mesmo sendo um
enganador, estava plenamente formado e sabia como haurir seus ganhos sem se
comprometer.
Um dos excessos de Lázaro é quando
ele não se detém e quer dar uma lição ao próprio mestre, o que gera a separação
dos dois. À procura de um outro mestre, Lázaro encontra um clérigo sovina,
pintado como muito pior que o primeiro amo. O clérigo tinha o triste hábito de
contar os pães que comia e delegar a outros o voto de pobreza e de forme. A
pobreza que nunca se separava de Lázaro, e a fome que o perseguia feito um cão
de rua. Talvez essa aventura em sua vida seja a passagem mais cômica. Sim, há
um riso nas ações do pícaro, esse característico do distanciamento de uma figura
baixa, o riso dos vícios; mas há também um certo desespero que precede as
surras: quando o amo o descobre roubando os pães, não há nada a ser feito por
ele.
O terceiro amo é diferente de
todos: um escudeiro falido e faminto que será sustentado pelo criado. Aqui
Lázaro inverte os papéis, é o primeiro amo por quem sente compaixão e decide
ajudar, mostrando que no interior do pícaro, por mais que o diabo conduza suas
ligeiras mãos, ainda há um dedo que ele não toca. O escudeiro é um tipo
interessante e vale um comentário; orgulhoso das propriedades que dizia ter, o
escudeiro fugia dos credores, mudava-se de casa em casa até o vencimento do
aluguel, dizia ter dinheiro, posses, roupas, mas era tão pobre-diabo quanto
Lázaro.
Enquanto Lázaro, o pícaro, o
protagonista das novelas picarescas, é um tipo social do século XVI, alguém que
vivia nas ruas e que vivia da venda de favores aos amos – que desejavam, por
sua vez, ter inúmeros criados como símbolo de poder –, vale notarmos a figura
interessante desse escudeiro, que não deixa de guardar algumas semelhanças com
Lázaro. Segundo a nota de Mario M. González: “este terceiro amo de Lázaro é uma
das mais célebres caricaturas da classe dos fidalgos que, sem ter agora a
oportunidade de atuar, como seus antecessores, na luta contra os mouros,
encontram-se sem meios para sobreviver, pois o fato de pertencerem à nobreza os
faz se sentirem impedidos de trabalhar. Veem-se forçados, no entanto, a
preservar as aparências de uma riqueza que não possuem” (p. 113).
O destino de Lázaro não poderia
ser muito distante daquele já preconizado por suas ações em todo relato. Desse
lugar entre o cômico e o satírico, que distancia Lázaro significativamente da
representação dos heróis da época, pode-se pensar o seguinte: “Esse sentido
deliberadamente anti-heroico do protagonista está não apenas no caráter
paródico do texto com relação aos livros de cavalaria, mas também na sua
frontal oposição ao valor fundamental da sociedade da época: a honra” (p. 199).
O sentido irônico e satírico da honra que o autor evoca no texto é muito
parecido com o que aconteceria muitos anos depois com os heróis nada honrosos
que tiveram de ir para a frente de batalha, como o anti-herói Ivan Tchônkin, de
A vida e as extraordinárias aventuras do soldado Ivan Tchônkin, e de quem já
falamos aqui neste blog. Certamente, se deixarmos todas as questões críticas que
essas obras picarescas evocam sobre a sociedade – se deixarmos de lado também a
percepção de que nada mudou tanto assim –, o herói picaresco é sempre fonte do
riso garantido e de horas de distração.
______
Lazarilho de Tormes
Mario M. González (Org. do texto em espanhol, notas e estudo crítico)
Heloísa Costa Milton e Antonio R. Esteves (Trads.)
224p.
Editora 34.
Bibliografia:
GONZÁLEZ, Mario M. A saga do
anti-herói. São Paulo: Nova Alexandria, 1994.
Comentários