José Manuel Caballero Bonald
A literatura salva de muitas
coisas, do remorso de não escrever, do tédio da vida, do silêncio não
criativo... É muito comum que se não fazemos algo que realmente nos recompense,
entremos de uma forma perniciosa num tédio. E disso literatura me
salvou. Disso e de estar vagando por aí, sem ofício ou
benefício. Escrever me justifica, me alivia. Minha energia é liberada
por meio da escrita e isso me tranquiliza.
— José Manuel Caballero Bonald, Letras
Libres
O leitor de poesia não tem por
que ler exatamente o que o escritor escreve. Pode ir mais longe ou não. O que
importa é que linguagem o proporcione uma versão desconhecida da realidade, o
leve a desaprender certas coisas para voltar aprendê-las de outra maneira.
— José Manuel Caballero Bonald, El
Cultural
A literatura sempre contém uma boa
dose de invenção, é coisa dela. A invenção é algo que está ligado à própria dinâmica
da escrita.
— José Manuel Caballero Bonald,
Zenda
Os excertos expõem como José
Manuel Caballero Bonald compreendia a literatura, como se relacionava com essa
forma artística, destacando a poesia, expressão na qual mais se destacou e
ficou reconhecido, ainda que também tenha sido exímio prosador, autor de
ensaios, romances, novelas. Sua morte no dia 9 de maio de 2021 significou o fim
quase definitivo da chamada Geração de 50, uma das mais prolíficas da
literatura de língua espanhola no século XX; geração composta por nomes como
Jaime Gil de Biedma, José Agustín Goytsolo, Ángel González, José Hierro, Carlos
Barral, Claudio Rodríguez.
É verdade que desde a publicação
de Entreguerras (2012), livro constituído por um longo poema
autobiográfico, ele próprio já havia declarado que não escreveria mais nada,
mas ainda voltou a demonstrar a força de sua criatividade com o livro Desaprendizagens
(2015), com o qual ganhou o Prêmio Francisco Umbral. Na ocasião admitiu que
“escrever poesia, permanecer no entrecho, rejuvenesce.” Depois, em 2017, voltou
a público para apresentar o último volume de sua obra memorialística — Teste
de raciocínio. Esta circunstância coincidiu com uma homenagem da Residência
de Estudantes pelos seus noventa anos, onde se perguntava: “Escrevo uma vez
mais a grande pergunta incontestável: isso que se adivinha muito além do último
confim é ainda a vida?”*
A partir disso, a vida pública estava
terminada. E muito antes da pandemia de Covid-19. Um câncer de pele, dizia,
havia lhe produzido umas avarias e não se permitia fazer exibições
delas. Nascido a 11 de novembro de 1926, na rua Caballeros, local onde funciona
uma fundação com seu nome, foi um homem de sete vidas, cem profissões —
professor de literatura, lexicógrafo, editor, produtor musical. Quando recebeu
o Prêmio Cervantes, lhe concederam as chaves de uma adega em Jerez, sua cidade
natal, para usar a qualquer hora e com quem quisesse; contava isso com a
satisfação de uma criança, com se toda sua carreira literária tivesse
alcançado, enfim, algum sentido e o discurso em Alcalá de Henares diante do Rei
fosse parte na conquista dessas chaves mágicas.
O pai era um cubano e a mãe era de
origem francesa, ramo da família do visconde de Bonald, filósofo
tradicionalista, fixada na Andaluzia desde meados do século XIX. Depois de
sobreviver à Guerra Civil entre Jerez e Sanlúcar, inicia os estudos em Náutica
e Astronomia em Cádiz, áreas que o fizeram logo mudar para Filosofia e Letras
em Sevilha e Madri, cidade onde se instalou em 1951. É do período em Cádiz que
escreve seus primeiros poemas e daí que engata relação com os integrantes do
grupo da revista Platero: Fernando
Quiñones, Pilar Paz Pasamar, Felipe Sordo Lamadrid, Serafín Pro Hesles, Julio
Mariscal, José Luis Tejada, Francisco Pleguezuelo, Pedro Ardoy, entre outros.
Em Sevilha, associa-se a outro grupo, o da revista Cántico, quando obtém
o primeiro de uma extensa lista de prêmios: era o Prêmio de Poesia Platero pelo
poema “Mendigo”.
O primeiro livro não demora a
chegar; sai em 1951, e com ele consegue outro galardão, o Prêmio Adonáis, que
consagrou sua geração, os jovens sobreviventes da guerra que começam a ganhar
algum reconhecido a partir dessa década. As adivinhações expunham o
desejo de que as palavras nunca o deixassem e inauguravam sete décadas de
dedicação ao ofício do poema. Três anos mais tarde edita Memórias de pouco
tempo e, em 1956, Anteo; período quando assume funções variadas na
revista Papeles de Son Armadans, dirigida por outro gigante das letras
espanholas, Camilo José Cela, sobre quem mais tarde disse ser “uma pessoa muito
complexa”, capaz de “ir da delicadeza à grosseria como se nada tivesse
acontecido”, ou “da excelência linguística ao tradicional disparate”. Tem
início aqui as atividades clandestinas que o obrigaram a se refugiar em Paris
durante seis meses.
Data deste período uma fotografia
que se tornou célebre: em fevereiro de 1959 durante uma homenagem no túmulo de
Antonio Machado. em Collioure, aparece junto a alguns dos nomes mais
importantes da sua geração: Jaime Gil de Biedma, Carlos Barral, Blas de Otero,
José Agustín Goytisolo, José Ángel Valente ou seu grande amigo Ángel González. Foi
neste ano que publicou As horas mortas, livro que o leva ao Prêmio
Boscán e o Prêmio da Crítica. Meses depois viveria outro ano-chave.
Casa-se com Pepa Ramis e muda-se
para Bogotá, onde trabalha como professor de Literatura Espanhola e Humanidades
na Universidade Nacional da Colômbia. “Se a pátria é o que se vê da janela de
casa onde alguém gosta de viver, tenho várias pátrias; umas mais duradouras que
outras: Coto de Doñana, Jerez, Mallorca, Madri, Bogotá... Na Colômbia fiquei
três anos e aí escrevi meu primeiro romance, fui pai pela primeira vez. Lembro
muito dessa pátria minha. A que não gosto nada é da pátria dos patriotas
espanhóis.” — dizia.
Na Colômbia Caballero Bonald
estabelece vínculos com o grupo da revista Mito, formado por Eduardo
Cote, Jorge Gaitán Durán, Pedro Gómez Valderrama e Fernando Charry Lara, entre
outros, além Gabriel García Márquez, figura de sua grande estima, embora
tivesse outra imagem acerca do chamado Boom Latino-Americano: “mesmo existindo
entre eles excelentes artífices da língua literária espanhola do século XX que
souberam explorar com liberdade uma poética atraente, os verdadeiros fundadores
[do movimento] pertencem à geração anterior: Onetti, Rulfo, Carpentier, Borges...
e a poetas como César Vallejo, Neruda, Octávio Paz...”
Consagrado entre os jovens poetas,
Dois dias de setembro, o romance escrito em Bogotá o converteu definitivamente
também em romancista. Com o livro recebeu o Prêmio Biblioteca Breve da editora
Seix Barral em 1961, galardão que foi sucedido por Mario Vargas Llosa com A
cidade e os cachorros. Centrada na sociedade estamental e classista de onde
veio de Jerez, o escritor findou repudiando este trabalho porque “muito devedor”
da estética social recorrente na literatura do pós-guerra. Sobre isso, que
considerava fruto das “devastações do realismo” chegou a afirmar que não
guardava mais quaisquer interesses: “A maioria dos livros por aí é escrita em prosa
informativa, sem o menor interesse estético. Tudo isso não me interessa em absoluto.”
Conceituado o autor mais barroco de sua geração, preferia as audácias
expressivas dos títulos seguintes como Ágata olho de gato (1974) ou Campo
de Agramante (1992).
O regresso à Espanha data de 1963.
Pouco depois é preso e multado por motivos políticos. Intensifica sua atividade
literária publicando dois livros no mesmo ano de retorno: Folhas de cordel
(poesia, 1963) e Cádiz, Jerez e os Portos (viagens, 1963). Entre 1965 e
1968 passa uma temporada em Cuba chegando a descrever os anos da revolução em Narrativa
cubana da revolução. Além do livro de 1974, escreve nesta década Descrédito
do herói, voltando a receber o mesmo prêmio de há três anos. Inicia a
década seguinte com o romance Toda a noite ouviram passar pássaros
(1981), Prêmio Ateneo de Sevilha.
José Manuel Caballero Bonald. |
A publicação de Campo de Agramante
com a qual recebe o Prêmio Andaluzia das Letras é seu último incurso na
prosa romanesca. Nos anos seguintes passa a se dedicar ao trabalho de cunho memorialista:
sai em 1995 Tempo de guerras perdidas, que continua em 2001 com O
costume de viver. Nesse intervalo edita o livro de poesia Diário de
Argónida (1997); depois do corpus memorialístico, seguem trabalhos
que misturam indignação cívica e depuração estética — são os livros da
maturidade: Manual de infratores (2005), A noite não tem paredes
(2009) e os já citados Entreguerras (2012) e Desaprendizagens
(2015).
Descrente da separação entre fundo
e forma, torna-se um autor rigoroso com seus versos, sempre trabalhando na
reescrita contínua: “Num poema as palavras precisam ter um significado mais
rico que o do dicionário. Às vezes você coloca juntas duas palavras que nunca
assim estiveram e se abre o mundo, rompe-se um segredo” — dizia. “A poesia é
uma mistura de música e matemática: tonalidade e rigor”. Seguindo certa ordem
do que escreveu sobre Jorge Guillén em Teste de raciocínio — “A poesia é
o contrapeso matemático do caos”, Caballero Bonald completa seu pensamento
dizendo que: “A música é harmonia, a entonação das palavras, e a matemática, a
ordem, o rigor da estrutura do poema. Se essa combinação for alcançada, o poema
começa a funcionar.”
E, por falar em música, eis aqui
outra das mil faces do homem: em 1969 assinou outra obra-prima, Arquivo do
cante flamenco, um álbum composto por seis discursos e um estudo preliminar
gravado para a companhia Vergara. À maneira de um folclorista, Caballero Bonald
viaja por dois anos em busca do cante, com a ideia de resgatar as vozes
de mestres em vias de desaparecimento. Nos anos seguintes passou a trabalhar
como filólogo para o Seminário de Lexicografia da Real Academia Espanhola e
como produtor em Ariola, uma gravadora que se ocupou dos trabalhos de uma nova
geração de cantantes — Luis Eduardo Aute, Joan Manuel Serrat, María del Mar
Bonet, Lluís Llach, Paco Ibáñez e Vainica Doble. Desse rico e extenso trabalho,
escreveu ainda Luzes e sombras do flamenco (1975).
O Prêmio Cervantes, o maior
galardão das letras espanholas, chega às suas mãos em 2012, quando definiu como
“um bom final” para sua trajetória literária. “Comecei a escrever há seis
décadas e estou muito contente, satisfeito e honrado que um júri tenha
concedido este prêmio, o maior, a toda minha obra literária”.
José Manuel Caballero Bonald dizia
de si que nunca esteve “nem quieto nem calado”. Portou outra qualidade rara de
sua geração: ser o mesmo publicamente e na vida íntima. Não foi de concessões:
podia defender com entusiasmo a excelência literária de companheiros de criação
como Juan Goytisolo e José Ángel Valente enquanto criticava seus egos e vaidades.
Ou, como reparado, ponderar em Camilo José Cela uma generosidade só comparável
na proporão e medida à sua gigantesca vaidade. O amigo e também escritor Felipe
Benítez Reyes afirmava que ele “apostou por novas buscas, morais e
estilísticas: que as palavras não apenas dissessem mais o que diziam mas também
pudessem calar para fortalecer seu enigma, para estimular o leitor na exploração
dessa região de sombra que existe sempre ao fundo de todo bom poema.”
De alguma maneira o que o próprio
poeta dizia em seu livro Ofício de leitor (2012): “o leitor justifica a
literatura, a completa, e colabora na criação propriamente dita. Ou, como dizia
Conrad, o autor apenas escreve a metade do livro, da outra mede deve se ocupar
o leitor. Sempre chego à conclusão de que os melhores leitores são aqueles que
em teoria são também, embora não o manifestem, bons escritores. Digamos que
quando leem é como se os rescrevessem de alguma maneira na imaginação.”
“Quase todos os poetas, os grandes
inclusive, desfrutam de uma época de plenitude — do esplendor nos casos de
sorte — e caem logo numa honrosa rotina tanto expressiva como temática que, sem
desmerecer a antecedente, acrescenta pouco aos seus logros maiores: o eco de
algo. Há, no entanto, alguns poetas privilegiados que mantêm a excelência ao
longo de toda sua obra, sustentada numa indagação indescritível quanto aos
recursos retóricos e às variações temáticas essenciais. Entre esses poetas
privilegiados está José Manuel Caballero Bonald, que em seus últimos livros de
poesia manteve o ímpeto criativo próprio de um jovem autor: essa compulsão por
testemunhar a partir de uma posição de rebeldia ante as suspeitas convenções,
esse inconformismo de fundo ante a vida por puras ânsias de mais vida...” —
afirma Felipe Benítez Reyes. Parece ser uma boa ponte de passagem para o leitor
ir do princípio ao fim da rica obra desse escritor.
Nota
* Todos os títulos de obras
citados neste texto são traduções livres.
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