José Donoso e o pássaro que devorou suas entranhas
Por Aurora Villaseñor
Nem a vocação para a medicina do
pai e dos irmãos, nem a aplicação à lei dos avós advogados conseguiram oferecer
a José Donoso um interesse genuíno pelas pessoas. Em entrevista concedida em
1989, aos 65 anos, declarou: “Não de estar comprometido, confesso, mas não sou
um homem político. A polis para mim é outra coisa, é um interesse. Sou muito
mais egoísta do que tudo isso, muito mais individual, muito mais focado em mim
mesmo. Estou muito mais interessado nas minhas doenças do que nas doenças da
sociedade”, disse o escritor.
A intensidade com que parava de
escrever era paralela a um sofrimento de úlceras que o faziam cair de cama, e
que o tornaram um doente focado em seu próprio desconforto. Mas muitos anos
antes de somatizar os contratempos da escrita, o chileno que fez parte do Boom
latino-americano foi um inconformista que deixou sua cidade natal Santiago e
fugiu para Magalhães, onde chegou resignado por não poder embarcar em um navio
para a Europa porque o fim da Segunda Guerra Mundial complicava a navegação em
alto mar.
Jovem aburguesado, sim, mas não
complacente diante das demandas de seus pais, Donoso decidira renunciar aos
privilégios que uma família abastada lhe garantia, já que os bolsos cheios de
uns pais controladores estavam longe de seduzi-lo, e a imposição de empregos com
os quais seu pai tentava domar seus impulsos rebeldes não provocaram a menor
inspiração.
Uma vez fora de casa, escreveu uma
carta ao pai para informá-lo de sua vadiagem como um menino incompreendido e
incidentalmente provocou sua rejeição, mas o que Donoso recebeu de um pai que
ele mesmo descreveu anos depois como um mau médico foi um insolente “compreendo-o”:
“Sinto-me orgulhoso por um filho meu ter conseguido sair desta vida frívola e
vã de Santiago.”
Um ano carregando ovelhas numa
fazenda foi o suficiente para que ele seguisse para Buenos Aires, onde a
inércia o manteve ativo por oito meses até que adoeceu e seus pais não tiveram
escolha a não ser procurá-lo e trazê-lo de volta. Em 1947 começou a estudar
letras inglesas na Universidade do Chile, mas onde sua própria natureza também
o fez sair pela porta da emergência depois de dois anos. “Sou uma pessoa cheia
de hesitações, nunca sei bem para onde vou, não tenho uma linha muito fixa”,
confessou em 1973 durante uma entrevista ao jornalista José Solar.
Donoso começou a aumentar seu amor
pela literatura inglesa ao receber uma bolsa de estudos na Universidade de
Princeton, nos Estados Unidos. “Eu via Einstein passar pela minha janela todos
os dias, Thomas Mann acabara de sair, todos os fins de semana as companhias de
teatro de Nova York iam. Foi muito emocionante para um menino como eu, que veio
do fim do mundo”, disse a Soler.
Aquele estímulo mais que
instantâneo foi o início de uma carreira de cataclismo tardio na literatura,
pois Donoso havia conseguido publicar seus dois primeiros contos escritos em
inglês “The blue Woman” e “The poisoned pastries” na MSS, revista
especializada da universidade, e embora esses contos fossem suficientes para
ele se proclamar escritor, a verdade é que não se convencia disso, assim
decidiu não passar dos 30 sem alguma publicação reveladora. Enquanto isso
viajava pelo México e pela América Central, queria ser jornalista, mas
asseguraria em entrevistas posteriores que não funcionava para ele, então não
teve escolha a não ser voltar a Santiago para se trancar em uma casa para
escrever; o resultado foi Veraneio e outras histórias¹ que apareceram em
1955.
Para alguém que teve problemas com
a matemática e a disciplina depois de ser expulso de dez escolas, a fórmula criada
para garantir o financiamento e a distribuição de sua primeira publicação foi
mais lucrativa. “Nenhuma editora quis apostar em mim, mas pedi a dez amigas que
vendessem dez vales antes da publicação, para pagar a quota do livro, fizemos
assim e saíram 100 exemplares que depois fomos vender nos bondes e por aí, nas
ruas”, lembrou.
Se não satisfez seus impulsos
criativos, Veraneio e outras histórias fizeram dele o ganhador do Prêmio
Municipal de Santiago, embora fosse apenas uma questão de tempo até que seu
primeiro romance Coroação fosse publicado em 1957, enquanto vivia com
uma família de pescadores em Isla Negra. “Digamos que este romance seja um
ponto de partida, é matematicamente estruturado. O problema e a estrutura foram
levantados antes de começar a escrever ... e agora sei que se busca estrutura e
significado por meio da escrita. Fala da burguesia e do lúmpen chilenos, com o
vínculo intermediário dos criados da casa grande ... É o retrato da minha avó
materna com quem vivemos, naturalmente a família ficou furiosa porque como era
possível que tivesse retratado a avó como uma louca, havia tornado pública a
vergonha da família ...”, disse durante a referida entrevista.
Depois de viajar pela Europa, onde
colocou sua veia jornalística à prova escrevendo reportagens, voltou ao Chile
em 1960, casou-se e começou a escrever e escrever sem saber para onde iam seus
manuscritos, logo começou a se sentir afogado no seu país outra vez e soube que
precisava de ar puro quando em 1964 foi convidado para um congresso literário
em Chichen Itza; assim, partiu para o México carregando uma pequena mala,
embora depois tivesse que passar 18 anos peregrinando por diferentes terras
para voltar à sua pátria. “O exílio é um mito, porque você nunca vai para o
exílio. Você nunca vai embora, você se acha cosmopolita e não é cosmopolita para
nada”, chegou a dizer.
No México, testemunhou que as
imagens profundas são aliadas da memória, já que não havia sido apagado de si a
tarde de 1959, quando em uma rua de Santiago viu um menino deformado vestido de
smoking no banco de trás de um carro de luxo que tinha ao volante um motorista
particular. Cena que dominaria o mais prolífico de seus romances, O obsceno
pássaro da noite, que não só levou anos para fermentar, mas literalmente o
levou ao delírio. Neste romance Donoso, que não gostava de absolutos, sugere a
degeneração e destruição da burguesia chilena que por sua vez lhe permitiu
conhecer de perto e que anos depois seria estimulado pela imagem de Humberto
Peñaloza, o “el mudito” , um homem que é secretário de Jerónimo de Azcoitía,
que construiu para o seu filho deformado um país habitado por criaturas
bizarras e monstros de feiras.
“Acredito que em todo escritor
existe, de fato, um marginal. Se um escritor não tem em si as possibilidades de
marginalização ou uma tendência marginal, se ele não tem uma cisão de algum
tipo, ele nunca pode se tornar um escritor. (…) Porque a marginalização tem que
buscar uma metáfora, que pode ser o desonesto, o velho, a criança, a bicha de
bordel, qualquer coisa”, disse Donoso na entrevista de 1989.
A loucura impressa em O obsceno
pássaro da noite não é acidental se contemplarmos o calvário que representou
sua escrita. Antes mesmo de resultar no romance exponencial que é hoje, Donoso
publicou outros dois títulos em 1966: Este domingo e O lugar sem
limites, adaptado ao cinema por Arturo Ripsetin. “Eram romances com melodia
fácil de seguir, mas o Obsceno era polifônico, com pretensões de ser
sinfônico. Passei anos sem saber para onde ir, tinha escritas coisas oníricas, modificações,
exageros. Estava afogado, levava seis anos e sempre tive úlceras, úlceras que
estão ligadas à minha literatura”, lembrou a Soler.
Farto até o fundo de suas
enfermidades, disse que não escreveria mais e que iria para os Estados Unidos
como professor. Ele estava no Colorado quando as doenças se tornaram violentas.
“O pássaro estava comendo minhas tripas”, escreveu. Internaram-no e na sala de
cirurgia não apenas removeram metade de seu estômago, mas aplicaram morfina sem
saber que ele era alérgico a ela. “Produziu em mim um episódio de esquizofrenia
de 15 dias, e durante esse tempo eu estava gritando, abrindo-me a ferida,
tirando a sonda, gritando com os pacientes do hospital que tínhamos que fugir
porque queriam nos deixar loucos, até que acabaram me pondo numa camisa de
força […] Depois voltei a Maiorca com uma barba branca, e nessa volta escrevi O
obsceno pássaro da noite, em oito meses, do começo ao fim… É na escrita que
geralmente são traduzidos os problemas dos escritores”.
Foi assim que aquele homem que estava
muito mais interessado em suas doenças do que as da sociedade se tornou
intransponível na época de sua própria agonia. “Sempre haverá pássaros e sempre
haverá entranhas, mas espero preservar minhas entranhas mesmo que os pássaros
as devorem”, chegou a dizer.
Nota da tradução
1 Exceto, O obsceno pássaro da
noite e O lugar sem limites os outros títulos são traduções livres a
partir do original em espanhol.
* Este texto é a tradução de “José
Donoso y el pájaro que lo devoro las entrañas”, publicado aqui, em Gatopardo.
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