Itinerário do tempo, de Jonas Leite
Por Pedro Fernandes
O nascimento de um poeta deveria
ser um motivo de celebração. Mesmo num país feito de um poeta a cada esquina e
um leitor em cada estado; mesmo num país que muitos dos seus poetas não se leem
ou apenas os de um reduto se contemplam, se acarinham e se autoconsideram os
senhores poetas do país, os continuadores de uma estirpe ou os seus negadores.
Tudo isso mais o espalhamento dos tentáculos que constituem o estamento dos
desumanos reforçam que, sim, o nascimento de um poeta deve ser celebrado.
Como é recorrente na maioria dos
casos, isso que encontramos como o livro de estreia e que sempre tratamos como
o ponto de nascimento do seu autor, é sempre uma pequena ilusão. Afinal, é quase
sempre impossível determinar precisamente o começo de tudo. A criação poética
não é pura revelação. Embora alguma vez se tenha acreditado nisso,
contemporaneamente quando entendemos a escrita como um ofício e seu produto
como uma parte desse esforço, não nos resta qualquer dúvida de que é no tempo
de preparação até culminar nesse objeto que nunca nos deixará de fascinar, o
livro, que nasce o autor.
Há muito que a lida de Jonas Leite
com a palavra o mobiliza; primeiro, como o leitor perspicaz da poesia
portuguesa e brasileira; depois, como o criador que agora se mostra
publicamente, uma vez que antes seus poemas já passavam pelos sentidos quando oferecidos
à leitura íntima dos seus ou publicados em revistas. Em Itinerário do tempo,
seu livro de estreia, estão alguns desses exercícios com as modificações sempre
esperadas entre o conhecido e o tornado público, feito recorrente em todo
trabalho de um poeta consciente. Isto é, o poeta sabedor que o poema é um
objeto moldado para a poesia — sua força de significação.
Mesmo o leitor geral, que não vivenciou
os pequenos instantes de maturação do poeta, poderá encontrar neste livro de
Jonas Leite alguns indícios dessa oficina. Isso é parte essencial na literatura
vigente, o ato criativo como expediente textual, não como pura exibição da sua
máquina interior, mas como instante pelo qual podemos perscrutar outro nascimento:
o do objeto artístico, talvez, a melhor das expressões poéticas. Primeiramente
citemos três poemas de Itinerário do tempo; intitulam-se “Poética”, “Primeira
tentativa” e “Última tentativa”, respectivamente e são apresentados a seguir,
propositalmente sem os títulos:
Busco as palavras
Na tentativa das frases
Num jogo de perceber o que virá
Mas a ideia movediça, amorfa
Desintegra-se à concretude do
verbo
E sempre perco.
*
Penetro nas fendas das Palavras
Para tentar entrever o oculto
delas
Mas insondáveis são os caminhos do
verbo.
*
Sempre tento
A precisão.
Mas não há palavras para tudo.
Lidos na sequência bem escolhida
pelo poeta, os poemas oferecem pelo menos três diretrizes interessantes: a do
criador ante o desafio da criação — isso que dizíamos acima, o testemunho pelo
próprio poema sobre o ato criativo; a do aplicado aluno que perfaz alguns dos passos
solicitados pelo mestre maior — há qualquer coisa de “Procura da poesia”, de
Carlos Drummond de Andrade; e a constatação sobre a impossibilidade de alcançar
o mundo pela palavra. Esta última aponta pelo menos duas interrogações. Se não
podemos alcançar o mundo pela palavra, qual é, então o ofício da linguagem e
por conseguinte do poeta? É sobre o quê, o conteúdo que preenche as centenas de
páginas de Itinerário do tempo?
Como não faz sentido falarmos
sobre o poema como o efeito de uma revelação, também não é suficiente acreditar
na palavra como um simples objeto moldado num repositório feito de linguagem. O
papel da linguagem é mediar o homem e as coisas e da palavra corporificar essa mediação.
Mas, na literatura, a linguagem e a palavra estão noutra dimensão: a de
transfiguração. Oferecem-se, pois, não como pacientes elementos da enunciação,
mas como instrumentos ora modificadores ora capazes de ampliar as estreitas
limitações pragmáticas dos dizeres. É por isso que nunca a vida do poeta, por
mais que ultrapassar para o interior do poema e em alguns casos até justifique
sua existência desta e não de outra maneira, é, no poema, a vida do poeta. Nem
mundo tocado o mundo visto. Principalmente porque quando a palavra se alarga da
sua função pragmática — como é caso para o poeta — logo se perde a dimensão de
justeza ilusoriamente acreditada no nosso cotidiano.
Assim, o conteúdo de Itinerário
do tempo é o de todo livro de poemas: as variadas tentativas de dizer o mundo,
o eu, o outro e os diálogos que essas três dimensões. E como jamais
alcançaremos o propósito final, se “insondáveis são os caminhos do verbo” e
“não há palavras para tudo”, nunca a busca ou itinerário encontrará o ponto
final. Ora, já aqui encontramos uma chave capaz de abrir uma das muitas portas
possíveis quando entramos num labirinto feito de poemas: Jonas Leite articula a
dimensão inapreensível do mundo pela palavra com outra dimensão igualmente
inalcançável, o tempo.
O que se organiza nesse fio
ilusoriamente fabricado, porque é impossível acessar em sua inteireza, é uma simulatio
do tempo. E aqui tecemos considerações sobre o segundo resquício visível da
mão do poeta na feitura da sua obra, desta como um produto da criação e não um
acontecimento imprevisto. Há um princípio de organização do livro que se
oferece como a tentativa de domínio do poeta sobre a palavra e o tempo. Ora é a
cadeia cronológica que forma três instantes com atmosfera própria (a manhã, a
tarde e a noite), oferecendo-nos alguma alternativa de uma onipotência do
criador; ora é o instante final, que poderíamos encontrar uma síntese ou o
fechamento de unidade do tempo, corroborando com a alijada crença que forjamos
junto com o poeta, mas que, se afasta da certeza para nos dizer que seus princípios
determinantes são apenas ilusão.
É preciso atravessar o itinerário
por completo a fim de capturar o que aqui estamos designando como a tessitura
desse livro — e mesmo para compreender as variações propositalmente assumidas
pelo poeta no interior das unidades temporais que formam o tempo do livro. Isso
porque a manhã, a tarde e a noite, como dizíamos, obedecem aos seus próprios
regimes, mas o que nelas se contêm são manhãs, tardes e noites; falemos sobre o
último expediente temporal que, às mãos do poeta, se oferece, estruturalmente,
como o segundo instante de itinerário do tempo.
No livro, o poeta elege a tarde
como o instante de preparação — com uma paisagem em contínua modificação, feita
de lugares interiores e exteriores; no fim está a manhã, repleta de
ambiguidades, de circunstâncias em por vir, entretempo para a tarde e a
noite. E é a noite, o tempo essencial, o momento que pela chave de leitura que
elegemos esclarece outra vez o ponto de interseção palavra-tempo; “À noite,
ébrios / Tudo parecia / Sublime” — é a sentença oferecida na abertura desse
percurso. Note que parecer não é de nenhuma maneira ser sublime,
amparando-se o conteúdo poético nos sentidos da inapreensibilidade das
formas, o que de alguma maneira também se determina pelo próprio conteúdo da simbologia
da noite. Propositalmente ou não esta é a parte mais longa do livro e é ainda
aquela que podemos considerar o instante essencial do itinerário.
O que encontramos nessa dimensão
da noite é um corpo em movência — não pela paisagem física, expectante e
reveladora muitas vezes, como se demonstra na primeira dimensão e sim pelas
múltiplas possibilidades oferecidas entre interior e exterior. Move-se o
eu-poético entre a latência do desejo e todos os seus efeitos — medo,
ansiedade, expectativa, curiosidade, imaginação — e suas realizações. Toda a
cumulação de vazios se deixa preencher por uma entrega feita da sedução do
amante também em busca da satisfação de seus sentidos. Mas nada disso é
permanente. “Tantas vezes nunca mais / Tantas vezes o último. / Mas sempre
volto com gosto de arrependimento” — diz. Ou se novela outra vez em expectativa
pelo eterno, afinal é disso que somos feitos.
Deram-se as mãos
E já não se deixaram mais.
Deram-se as bocas
E permaneceram.
Deram-se. E são.
Através de qual outro tempo, que não
o do poético, se é possível oferecer tamanha certeza, a da permanência? Num
passo atrás, no mesmo poema citado no parágrafo acima, a concordância vem pela
voz do próprio eu-poético: “— Escrevo para poder sentir que estou vivo.” Mesmo
que a vida comum se faça das ficções que escolhemos oferecer para os outros, e
talvez para nós mesmos como se uma redenção, estas só alcançam e oferecem sentido
no campo da literatura. A verdade comum para o poeta ou o leitor assíduo ainda
não foi descoberta por todos que continuam apostar no literário com o adjetivo
que se justapõe a qualquer coisa.
E por isso aqui se fala do
impossível feito e dos sentimentos que movem todos em qualquer parte: um deles,
tecer temporalidades num só tempo, porque cada manhã, tarde ou noite é feita de
pedaços do agora e de outras manhãs, tardes ou noites; outro, que esses pedaços
são feitos de acontecidos, vividos ou imaginados, e estes são capturados pelo
pulso do poeta — ao menos no caso de Jonas Leite — não como o acontecido, o
experienciado, mas o fixado pelos sentidos. Assim é que, ao encontro dos corpos,
por exemplo, se chama pelo amor, que na sua melhor dimensão se mostra não como
convenção, nem idealidade. É coisa natural na poesia — dirão uns — mas ainda é
o que nos diz se estamos diante de um poeta verdadeiro ou de algumas das muitas
emulações.
Este Itinerário do tempo é
produto de um poeta bem-nascido. Se há predominância da exploração das
movências do corpo, entregue ao estupor do amor, ansioso do gozo ou nele
realizado, não é esta a única diretriz que mostra como o plano de um projeto a
se acompanhar de perto sua desenvoltura; também o cotidiano íntimo, ou a vida aberta
para a grande paisagem, as perquirições do fazer poético, o duelo entre o eu e
o tempo em suas plurais dimensões, os estreitamentos com o mito, formam pelo
menos cinco das linhas evidenciadas aqui e possíveis de desenvolvimento. Talvez
um poeta nunca nasça com o primeiro livro, mas toda vez com o livro por vir.
Comentários