García Márquez e Vargas Llosa, a conversa que acendeu o estopim do Boom

Por Nadal Suau

Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa, Agurto, Lima, setembro de 1967.


 
Com Dos soledades: un diálogo sobre la novela en América Latina (Duas solidões: um diálogo sobre o romance na América Latina, em tradução livre)  e com a reedição de García Márquez: historia de un deicídio (García Márquez: história de um deicídio, em tradução livre), a editora Alfaguara resgata uma peça fundamental da história literária do século XX. São dois livros objetivamente importantes que, relidos agora, mantêm intactas suas virtudes: o discurso detalhista, a tensão feliz de quem se reconhece ocupando um lugar excepcional no núcleo contemporâneo de sua disciplina e, no caso de Dos soledades, a fotografia de um momento muito específico.
 
Dos soledades reúne uma conversa pública que Mario Vargas Llosa (Arequipa, 1936) e Gabriel García Márquez (Aracataca, 1927 — México, 2014) mantiveram em Lima, em setembro de 1967, quando o sucesso imediato e massivo de Cem anos de solidão estava em seu apogeu. É um documento mítico que, como Juan Gabriel Vásquez explica em seu inteligente prólogo, foi fotocopiado durante décadas entre aspirantes a romancistas e estudantes. Dada a sua brevidade, o editor Luis Rodríguez Pastor pôde acompanhá-lo com uma série de depoimentos, entrevistas da época, fotografias e paratextos (com assinaturas como as de José Miguel Oviedo, Abelardo Sánchez León, Abelardo Oquendo ou Ricardo González Vigil); são acréscimos curiosos, embora não essenciais. O melhor continua sendo essas duas vozes principais definindo-se e tentando definir a outra enquanto encarnam a literatura das suas gerações.
 
Enquanto a História de um deicídio, trata-se da mal-disfarçada tese de doutorado de Mario Vargas Llosa, tão minuciosa e monumental como devem ser as teses acadêmicas, e tão vibrantes como agora nunca o são. Vargas Llosa estuda a arte narrativa do amigo a começar pelos primeiros contos amadores até alcançar a explosão do que então se suspeitava a obra-prima de 1967. Foi publicada em 1971, e recordo utilizá-la até 1999, quando era estudante do primeiro ou segundo ano de Filologia, para preparar um exame. Fiquei surpreso ao descobrir que os aspectos técnicos da escrita podiam ser tão obsessivamente estimulantes.
 
No entanto, devo confessar que em 2021 fui a ambos os volumes com algumas dúvidas sobre sua durabilidade, pois mais de cinco décadas se passaram desde a publicação de Cem anos de solidão, meia vida desde que este leitor o descobriu, e exatamente sete anos desde a morte de Gabriel García Márquez. Tempo mais do que suficiente para que uma obra que era sinônimo de modernidade se fixasse no passado mais estrito, aquele território de onde voltam alguns livros para continuar entre nós em forma de clássicos, mas sem que seja fácil discernir a priori o que serão essas presenças atualizáveis e quais serão diluídas.
 
Em Dos soledades, Vargas Llosa refere-se a este assunto com otimismo: “Cem anos de solidão ficará, pode ser que haja longos períodos em que o esqueçam, mas em algum momento esse trabalho ressuscitará e terá a vida que os leitores dão um livro literário. Essa obra é rica o suficiente para se conseguir essa segurança na afirmação. Esse é o segredo das obras-primas. Lá estão, podem ser enterradas, mas apenas temporariamente”.
 
Bem, o Prêmio Nobel estaria certo? Corrija-me se me engano, mas suspeito que a obra de García Márquez atravessa um certo purgatório neste momento: não é questionada, mas também não influencia as novas gerações. Além disso, os trinta milhões de imitadores de seu realismo mágico têm se lançado nesses cinquenta anos uma quantidade sem fim de retrospectos sobre a estética do mestre, gerando mal-entendidos sobre sua verdadeira natureza. Por tudo isso, e porque desde 1967 não existe “nenhuma palavra importante que não se tenha transformado dramaticamente” (como diz Vásquez no pórtico), despertou a minha curiosidade um pouco mórbida: será que estas páginas ainda viverão? Pois, claro que sim.
 
Dos soledades é um diálogo excepcional entre duas inteligências do romance. Interessa-me esclarecer isso: é verdade que, na distribuição dos arquétipos, Vargas Llosa nos aparece como um escritor “intelectual”, crítico, analítico; García Márquez é mais festivo, prefere a anedota à abstração, deixa-se tentar pelo anti-intelectualismo, foge do solene para abraçar os paradoxos do popular etc. São caracterizações conscientes, bastante exitosas, que na realidade convergem na obsessão pelo ofício. É muito bom que o colombiano seja fascinado pela cidade ou se alegre com sua infância; é muito bom que o peruano tenha lido Barthes e visto como um professor da Ivy League; mas aqui do que se trata é perguntar como diabos um grande romance é escrito, onde introduzir uma hipérbole, que decisões de linguagem darão vida à imaginação. Inteligências romanescas, insisto, que subordinam tudo o mais (a política, a leitura, a crítica, a família...) ao horizonte do romance perfeito.
 
Assim, História de um deicídio não contém tantas ideias nem tantas novidades quanto se poderia esperar de um gigante: funciona bem sua teoria de que o romancista é um usurpador do papel divino, um saqueador da realidade que levanta seu próprio mundo alternativo. Sua categorização dos demônios que sitiam e alimentam o escritor também é correta: os pessoais, os culturais, os históricos. Mas, em última análise, esses são quase clichês. Não, o que realmente é deslumbrante é a investigação microscópica do autor dos textos, a paixão desenfreada com que descobre os eixos vertebrais, detalhes enriquecedores ou vigas-mestras.
 
Vargas Llosa é um escritor tecnicamente inapelável, a tal ponto que tal domínio de instrumentos e estruturas às vezes me levava a suspeitar de uma certa frieza no âmago de suas motivações: seus demônios estavam realmente o queimando intimamente, suas ideias realmente mostravam uma profundidade íntima? Precisamente, a releitura da História de um deicídio me fez reconciliar com este aspecto do autor: a técnica é o seu demônio, a sua ideia profunda, o cerne da sua vocação. Tudo o que a História de um deicídio diz sobre García Márquez é valioso, mas o que revela sobre Vargas Llosa é ainda melhor.
 
Voltemos a Dos soledades, que também é um documento de época polêmico: ouvir García Márquez preocupado se a solidão é uma questão “reacionária”, observar seus ziguezagues desajeitados para evitar a questão da violência na revolução cubana, ou esbarrar com um jovem Mario Vargas Llosa afirmando que a literatura é sempre “progressista”... Tudo isso nos mergulha em um tempo de nossas próprias complexidades e agora históricas, embora reverberantes. Acrescente-se a isso a vontade de seduzir os envolvidos, a refundação da forma profissional de praticar a escrita, ou a evidência do caráter orgânico e enraizado do realismo do ciclo literário de Macondo (que se assemelha a tudo menos às cópias exóticas que viriam depois). E o resultado é uma leitura que deve ser celebrada, principalmente entre aqueles que continuam curiosos por um momento-chave da literatura na língua espanhola.


* Este texto é a tradução de “García Márquez y Vargas Llosa, la charla que prendió la mecha del ‘boom’”, publicado aqui, em El Cultural.

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