Escritoras do Sul selvagem
Por Bárbara Ayuso
© Jesse McCloskey |
Os pântanos. Os trailer parks.
As mansões do algodão. Os banjos. As bocas podres. As sílabas rastejando como
lama. O white trash, a escória racista. Crianças sujas amontoadas em pick-ups,
peles de animais selvagens secando ao sol, macacões jeans e bonés engordurados.
Rifles, sucata enferrujada, destilarias em celeiros. Bandeiras confederadas. Rednecks,
senhoras do sul, suadas vendedoras de bíblias. Tudo imundo que enxameia do
Atlântico ao Golfo do México: o Sul, o gêmeo do malvado dos Estados Unidos.
Fascinante e repulsivo ao mesmo tempo. Que lindo o Sul quando fica feio, quanto
dura da peste até a derrota. Não existe lei que o dobre, mas é assim:
decadência, quanto mais furiosa, mais bela.
Com tudo isso vocês devem ter
pensado em William Faulkner, é claro. Na calamidade de O som e a fúria,
na obscuridade do Santuário. Ou talvez no velho Sul de Tennessee
Williams, na aspereza do Truman Capote menos novaiorquino, no empoeirado Cormac
McCarthy, nas selvagerias etílicas de Jim Thompson. Todos eles e alguns outros
moldaram amplamente a ideia que temos do Sul estadunidense que transcende os
limites geográficos. Contaram-nos os detalhes de sua esplendorosa miséria,
participantes de várias correntes literárias que iluminaram um território
artisticamente muito fértil: do gótico sulista à literatura de fronteira.
Escritores com Prêmio Nobel e lugar merecido no panteão das letras de
Dixieland.
Mas talvez não tenham reparado em
algo: “Dixie” é nome de mulher. Não é por acaso que, de todos aqueles que
tentaram apreender o Sul, condensar seus mitos, foi uma senhora, Florence King,
quem esteve mais perto de sintetizá-lo numa frase: “Ponha um muro em volta do
Sul e terá um grande manicômio”.
A paternidade literária do Sul é
ostentada pelo rio Mississippi, mas a maternidade é compartilhada, talvez isso
explique sua bastardia. As sulistas não apenas pariam, ordenhavam, atormentavam
escravos ou espantavam moscas dos ensopados. Escreviam e escrevem. E têm sido —
alerta de ousadia — muito superiores quando se trata de desvendar o que é e por
que nos fascina o que acontece nesse território sufocante e indômito.
Fiquemos ao redor desse muro, olhemos
essa maravilhosa camisa de força dos seus adoráveis malucos. Não se trata de
acertar contas: as suas são obras-primas erguidas acima do mais tenebroso dos
abismos.
Não foi a primeira, mas é a mais
proeminente: Flannery O’Connor (1925-1964). A que é “a grande escritora
estadunidense do século XX” é bem pequena. Com seus óculos fundo-de-garrafa,
seu férreo celibato e seu lúpus, passou a vida criando pavões reais e contos de
pessoas realmente feias. De pouco serviu que sua mãe, tão piedosa quanto ela,
implorasse ao editor que a persuadisse a escrever sobre “boa gente”. O’Connor
publicou o romance Sangue sábio quando tinha vinte e poucos anos e nunca
mais abandonou a sordidez. Ou o grotesco¹, termo do qual se apropriou apenas pela
metade: personagens violentas, desajustadas, cruéis, malandras, aleijadas. Em
seus contos, os que realmente lhe renderam o estrelato, o Sul sufoca
fisicamente. É um território distorcido e implacável, um cenário de conto de horror.
“Sou branca, católica e sulista, não poderia escrever nada além de horror”, dizia.
O’Connor destripa o mal da humanidade como ninguém, até deixar a bondade parecer
pouco mais que um sarcasmo. Não se deixem enganar pelos títulos: nem “Um homem
bom é difícil de encontrar”, nem “Gente boa da roça” cumpriram os desejos de
sua mãe. O’Connor é implacável e preenche as lacunas para que nem uma gota de
ar fresco entre nesta paisagem repleta de conflitos raciais, pobreza ancestral
e primitivismo religioso. Como algo parecido com a beleza pode emanar de semelhante
lodaçal só se é percebido pela leitura, por exemplo, nos Contos completos.
Antes de morrer tomada de agonia,
a boa Flannery deixou para a posteridade um vídeo em que ensina galinhas a
andarem de ré² — “Depois disso, o resto da minha vida foi um anticlímax” — e uma
obra literária em que radiografou a identidade insular de uma região, seus
terrores e um saco de sagacidades impagáveis: “A narrativa trata de tudo o que
é humano, e nós somos feitos de pó, e se você despreza se cobrir de pó, então
não deve tentar escrever uma obra narrativa.” Esqueçam Raymond Carver, Sam
Shepard, Cormac McCarthy ou O mensageiro do Diabo. Sem ela, eles nunca
teriam existido.
Flannery O’Connor, aliás, se
matava com outra das maiores expoentes do gótico sulista, sua contemporânea
Carson McCullers (1917-1967). Em sua correspondência pessoal não perdeu a
oportunidade de fazê-la cair de um burro, e McCullers acusava a outra de plágio
à boca rota. Suas biografias têm muitos pontos de conexão: ambas apagaram o “Mary”
de seu nome para brincar com a aparência masculina, nasceram na Geórgia,
visitaram a colônia artística de Yaddo, foram adaptadas para o cinema por John
Huston e viveram marcadas por doenças implacáveis. Estrearam, triunfaram e
morreram jovens. O’Connor não chegou aos quarenta e McCullers chegou se arrastando
aos cinquenta. Isso sim: que vida. Impossível condensar tudo em poucas linhas.
McCullers seria uma criança
prodígio do piano — compunha desde os cinco anos de idade — e acabou sendo uma
escritora precoce. Contraiu febre reumática, foi hospitalizada dezessete vezes
e a parte esquerda do corpo ficou completamente imobilizada por uma embolia.
Escreveu com uma só mão grande parte de sua obra, que inaugurou com O
coração é um caçador solitário, que é muitas coisas ao mesmo tempo. Um dos começos
mais formidáveis da história da literatura — “Havia dois mudos na cidade, e
eles sempre estavam juntos” —, a dádiva de uma personagem memorável (John
Singer) e uma estreia de sucesso colossal. McCullers criou seu próprio gótico
sulista, que combinava com os clássicos russos: “Tanto na Rússia dos czares
como até agora no Sul, uma característica dominante tem sido o valor
extremamente baixo da vida humana”, dizia.
Em sua literatura há sempre bêbados
— reflexo de seu próprio vício —, negros que chamam seus filhos de Karl Marx,
homossexuais, anões, corcundas... E outra coisa: ternura e compaixão. Retorcidas,
mas lá estão. McCullers não se aproxima dos seres andróginos, dos deformados ou
dos doentes mentais com curiosidade, nem mesmo com um interesse voyeurístico.
Ela mergulha em suas misérias, em seu sexo atormentado e seu pavor da solidão
para mostrar humanidade, até mesmo com uma franqueza de tipo muito específico.
De desejar ser amado. Talvez o que nunca teve, talvez o que sempre buscou. Casou-se
aos dezoito anos com um oficial aspirante a escritor, Reeves McCullers, um gay,
de quem se divorciaria e se casaria novamente depois de cinco anos. Juntos,
naufragaram no álcool e numa incompatibilidade que os fizeram inseparáveis,
algo que ela capta no romance Reflexos num olho dourado, cuja versão
cinematográfica foi estrelada por Marlon Brando e Elizabeth Taylor. McCullers
dedicou o livro à escritora suíça Annemarie Schwarzenbach, com quem teve um
caso de amor tempestuoso sua morte num acidente de bicicleta. Depois de ser
operada de câncer de mama, Reeves, consumido pelo declínio físico de sua esposa
e pela repressão sexual, a propôs que os dois cometessem suicídio juntos. Ela recusou
o plano; ele fez isso de qualquer maneira.
E no meio de toda a turbulência, o
triunfo. Praticamente todas as obras de McCullers foram aclamadas: A balada
do café triste é uma antologia de contos magistrais e, embora o romance A
convidada do casamento tenha recebido uma recepção mais tímida, se
converteu num sucesso da Broadway pelas mãos do amigo Tennessee Williams.
McCullers morreu no crepúsculo,
não existia outra maneira. Seis semanas em coma e desapareceu. Moça esquisita,
alcoólatra, escritora maneta, ameaçada pela Ku Klux Klan, em guerra contra
todos os arquétipos da beleza sulista e orgulhosamente convencida do valor de
suas obras: “Tenho mais a dizer do que Hemingway, e Deus sabe que eu disse
melhor que Faulkner”. Com uma ressalva: Illumination and Night Glare,
sua autobiografia, ficou inacabada.
Assim como O’Connor e McCullers
personificam o par de escritoras do sul rivais, Katherine Anne Porter
(1890-1980) e Eudora Welty (1909-2001) são seu adorável reverso. Porter, já
famosa, apaixonou-se por Árvore florida, um volume de contos escritos
por uma desconhecida estreante chamada Eudora Welty, a quem patrocinou
artisticamente ao escrever o prefácio.
Naquela época, Welty não era
escritora, mas fotógrafa. Um feito importante que marcaria sua maneira precisa
e nítida de narrar. Durante a década de 1930, percorreu todo o Sul registrando
a paisagem desolada que a Grande Depressão havia trazido para um território que
ainda não havia superado a derrota. Quando anos depois, já merecedora dos
condescendentes cumprimentos de Faulkner e Capote, foi questionada sobre a chave
de sua genialidade narrativa e o pleno domínio com os diálogos; ela não
hesitou: “Muito antes de começar a escrever, ouvia atentamente as histórias de
pessoas”, respondeu.
Gente sem um centavo, sem-teto, empregados
negros, meninas e famílias opressoras mas nucleares. Welty sempre foi contra o
épico para contar o pequeno, o que acabava levando ao absurdo e ao grotesco. E
circunscrita à sua pátria, aquele Sul do qual raramente saiu. Embora seus
contos sejam os mais celebrados — “Por que vivo no Posto dos Correios” batizou
o software de e-mail Eudora, em sua homenagem — os romances de Welty são joias
por direito próprio. A filha do otimista lhe rendeu o Pulitzer e calou a
boca daqueles que “apenas” a consideravam uma excelente contista possuidora de uma
sobrenatural agilidade oral. Quando, na casa dos setenta, Eudora Welty publicou
uma espécie de autobiografia, One Writer’s Beginnings,
ninguém se surpreendeu que ela se tornaria imediatamente um Best-seller. Porque
há algo indefinível e sugestivo em sua prosa, em sua maneira de olhar, que faz
com que o Sul não seja apenas lido, mas capturado pelos sentidos, testemunhado,
vivido. Ela publicou ensaios, livros de fotografia e foi coberta de prêmios,
mas nunca foi cegada pelos holofotes. Morreu na mesma casa em Jackson
(Mississippi) onde havia nascido, a mesma em que recebeu Henry Miller para
mostrar sua admiração por ele.
Katherine Anne Porter conseguiu
cruzar a soleira daquela casa em estilo Tudor. Quem sabe onde ela arranjou
tempo para ser mentora de Welty: Porter foi jornalista, atriz de segunda
categoria, cantava baladas escocesas pelo Texas e Louisiana, passou pela
tuberculose (no fim era uma bronquite), a gripe espanhola a deixou careca,
casou-se quatro vezes, fugiu para o México para estudar arte asteca e maia e
acabou envolvida na Revolução Mexicana e em inúmeras outras coisas: quase cem
anos de experiências extravagantes e lendas picantes, como ter um caso com
Carson McCullers e um divórcio quando um dos seus maridos descobriu sua
verdadeira idade.
E, claro, escreveu. No início,
como uma desconhecida, até que seu editor se cansou de sua tagarelice e sugeriu
que ela assinasse algo com seu nome. Foi o conto “María Concepción”, de 1920,
que mostrou ao mundo o seu olhar penetrante e inflexível. Katherine Anne Porter
se desenvolve num ambiente hostil, mais próximo da violência de O’Connor, no
qual suas personagens têm que sobreviver a todo custo. Seu Sul é delimitado
pelo rio Bravo, e é racista, abusivo, fechado. Existem revolucionários, rancheiras,
mamis negras e monstros, com os quais sobrevoa um leve sabor de realismo
mágico. Seu único romance, A nau dos insensatos, foi transformado em
filme por Stanley Kramer, e ela só gostou do dinheiro que embolsou. Seu
verdadeiro legado sempre será seus contos, pelos quais figurou algumas vezes
nas listas de favoritas ao Prêmio Nobel e ganhou o Pulitzer. Seu cabelo voltou
a crescer, mas de um branco pomposo.
Embora Porter tenda a ser visto como
a iniciadora do gótico sulista de O’Connor, McCullers e Welty, isso não é
inteiramente verdade. Primeiro existiu o século XIX, antes existiu Kate Chopin
(1850-1904), e as quatro senhoras do renascimento literário do Sul são suas
devedoras.
Kate Chopin veio parar na
literatura buscando sobreviver, e isso diz muito em 1899. Quando seu marido,
dono de uma plantação na Louisiana, morreu, ela foi esmagada por dívidas, cinco
filhos e a depressão. Escreveu como terapia. Primeiro contos, depois um
escândalo chamado O despertar. Nenhuma surpresa: não era uma história
que retratasse o Sul racista e opressor: era um desafio frontal e uma
condenação de cada um dos valores atávicos dessa sociedade. Sua protagonista, a
icônica Edna Pontellier — considerada uma espécie de Madame Bovary crioula — decide
romper com toda submissão. “Daria meu dinheiro, daria minha vida pelos meus
filhos, mas não me entregaria”, diz. E o fez, agarrando-se aos machos. Foi tão
revolucionária, tão feroz e contundente seu desafio ao DNA sulista que até hoje
as pessoas vivem com desejos lascivos de profanar o cadáver de Kate Chopin. Por
abolicionista, por herege e por feminazi.
E por falar em heresias, aqui está
outra: mencionaremos nesta caótica revisão Harper Lee e Margaret Mitchell, mas
apenas para isso: mencioná-las. É óbvio que a marca de O sol é para todos
e O vento levou³, suas respectivas e icônicas obras, contribuíram para
moldar a ideia literária do Sul como poucas. E aqui vem o mas: restou
alguém sem saber? Elas já não receberam atenção suficiente?
Em vez disso, vamos olhar para
outro gênio que tem recebido pouca — quase nenhuma — atenção: Florence King
(1936-2016), a ideóloga por trás desse muro. Seu nome geralmente não é incluído
em nenhuma antologia de escritoras sulistas, para começar, porque ela era uma durona
a se tomar cuidado. Os rótulos atribuídos são um cacao maravillao:
lésbica conservadora, monárquica, antipopulista, episcopaliana, misantrópica até
dar uma dor. “Estou um pouco à direita de Vlad, o Empalador”, dizia. Não a
apelidaram de “Rainha do Mal” por gentileza, não. Em sua coluna na National
Review, “The Misanthrope’s Corner”, se dedicava a zombar de todos com
sátiras venenosas. Duvidam? “As feministas não ficarão satisfeitas até que cada
aborto seja realizado por um médico negro gay sob uma árvore ameaçada de
extinção numa reserva para índios deficientes”, escreveu.
Mas não é como uma polemista
incendiária que a ressuscitamos aqui. Maldades e atrevimentos à parte, Florence
King foi uma cronista magnífica de como era o Sul nos últimos estertores do
século XX sobre sua crônica miséria. Descendente da elite colonial da Virginia,
King foi educada sob os padrões estritos e obsoletos do que uma mulher do sul
tinha que ser. Crescida — e abandonado seu papel como uma escritora de histórias
sujas —, dedicou uma grande parte de sua produção para retratar aquela
atmosfera de cavalheiros sentados em suas varandas com rifles nos joelhos. Seu ponto
alto é a biografia Confessions of a Failed Southern Lady; uma obra desbragada
e honesta que expõe claramente por que o Sul fica melhor na TV do que na pele
das pessoas. “O culto à feminilidade dotou a beleza sulista de pelo menos cinco
imagens totalmente diferentes e pediu que fôssemos boas o suficiente para
adotar todas. Exige-se que seja frígida, apaixonada, doce, maliciosa e perdida,
tudo ao mesmo tempo. Seus problemas decorrem do fato de que nisso somos
bem-sucedidas.” É um livro com maldade suficiente para abastecer um continente
por décadas, crivado de excessos retóricos e comentários que causariam úlceras
sangrentas em tempos como os de hoje. Mas, não queriam o Sul? Bem, aí está: nu,
cru e sujo.
E sobre ele se continua a escrever,
ele continua a iluminar novas correntes literárias, como a chamada grit lit,
hillbilly noir, country noir ou rural noir. Para nos
entendermos: literatura redneck, realismo sujo. Tão sujo que sua maior
expoente feminina nem precisa ser uma sulista: Bonnie Jo Campbell (1962), de
Michigan. “A única beneficiária de uma bolsa Guggenheim que sabe como castrar
um porco”, é como geralmente se apresenta. Uma escritora com uma maldade superdotada
para o conto, como evidenciado por American Salvage, um catálogo obscuro
cheio de cervos esfolados, caminhoneiros desdentados, gravidez na adolescência
e muito — muitíssima — vulgaridade. Que contém, aliás, o elogio mais white
trash nunca escrito antes: “Estava muito bonita com aquele fundo de
montanhas arborizadas e dois caminhões enormes com os motores incendiados.” A
biografia de Campbell mostra que viveu numa fazenda, entrou para um circo,
vendeu raspadinhas e pedalou pelos Alpes. E, além disso, deixou claro que sabe
fazer romances sobre os lumpem: Once Upon a River é muito parecido com
uma viagem de speed. Margo Crane, com seu filho de quinze anos, sua
espingarda e seu barco, parte rio Stark acima, com pouco para sobreviver. Não
revelaremos se consegue, basta dizer que o livro propõe uma releitura dos
romances de aventura e da nossa ideia do que é o perigo.
“Cresci no meio de tudo isto. A
ansiedade, a obsessão, o medo, as brigas: a fazenda, o dinheiro, a família, o
passado”. Poderia ser Jo Campbell, mas é outra contemporânea que também segue o
caminho da grit lit: Ann Pancake, “a Steinbeck dos Apalaches”. Em sua
antologia de contos Given Ground está o melhor e o pior da Virginia.
Personagens que arrastam um vazio transbordando de Jack Daniel’s, desgraçadas
que queimam suas casas para receber o seguro, que têm muitos filhos cedo
demais; bisavós aos quarenta, fantasmas confederados... Gente que quer fugir,
mas fica por aí, na sua imundície hostil. Sem fazer muitas perguntas sobre sua
decepção.
Não resistimos, mesmo que seja
recebida com alfinetes, em citar a imensurável Mary Karr (1955). Sulista quanto
texana, poderia se dizer — e com razão — que seu trabalho se encaixa um pouco
na tradição sulista, dado sua prolífica obra poética. Mas quem já tenha desfrutado
à vontade de The Liars’s Club ou Lit sabe que quem cresceu entre
cobras, furacões, plataformas de petróleo e bastardos pode figurar onde quiser.
E são muitas, sua história e sua vida, sulista e gótica, ao mesmo tempo.
Dois perfis rápidos para concluir:
Jesmyn Ward (1977) e April Ayers Lawson (1979), não sei se as duas se conhecem,
mas deveriam. Ward já recebeu vários prêmios como o National Book Award, mas
devemos insistir: Sing, Unburied, Sing é uma atualização suculenta do
gótico sulista que ressoa com Welty, O’Connor e o melhor de tudo: com Jesmyn
Ward. Uma narradora que escava entre órfãos, racismo, solidão e a miséria
moral. Drogas, câncer, fumo de mascar, uma estrada — tem tudo para doer como um
soco na mandíbula. Mais delicada — o que não é quer dizer sutil — é a estreia
de April Ayers Lawson, Virgin and Other Stories, uma antologia de contos
que é introduzida na tradição sulista por seu aspecto menos óbvio: sexo, Deus e
repressão. É diferente, fresco, é gótico do sul com smartphones.
Por agora é suficiente essa
mistura impossível de vivas e mortas, loucas e neuróticas, escritoras com o Sul
embutido em suas entranhas e esperamos que sirva para que da próxima vez que pensar
em uma senhora sulista, não resmungue “Srta. Scarlet”, nem muito menos apelar
ao ideal daquelas “magnólias de aço” que parecem frágeis. Elas, como disse o
próprio Faulkner, “são capazes de enfrentar tudo porque têm o sentido
suficiente para saber que o que se deve fazer com as tristezas e as
preocupações é considerá-las até a saciedade, percorrê-las de uma parte a
outra, até chegar ao outro lado delas e perdê-las de vista”. Também escrevê-las,
Faulkner.
Notas
1 Sobre o costume de chamar sua
literatura de “grotesca”, O’Connor escreveu um ensaio extremamente
interessante: “Some Aspects of the Grotesque in Southern Fiction”. Um trecho: “Sempre
que me perguntam por que escritores sulistas em particular tendem a escrever
sobre freaks, digo que é porque ainda temos a capacidade de
reconhecê-los.”
2 O vídeo está disponível aqui.
Chama-se “Do You Reverse?” Flannery O’Connor tinha seis anos e a produtora de
cinema mudo Pathé News foi à sua fazenda para filmar a galinha.
* Este texto é a tradução de “Narradoras del Sur salvaje”, publicado aqui, em Jot Down.
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