Diferenças pontuais entre Marginais e Marginais-Periféricos

 Por Fábio Roberto Ferreira Barreto
 
Apesar de convergirem no que concerne à promoção de literatura paralela ao grande mercado editorial, a Literatura Marginal dos anos de 1970 e a Literatura Marginal / Periférica1 dos anos de 1990 / 2000 em diante divergem em, ao menos, três eixos: 1) autoria de excluídos pelo regime militar versus autoria de excluídos de todo o sistema democrático; 2) ausência de programa nos anos de 1970 versus existência de eixo programático e temáticas nos anos de 1990 / 2000; 3) poemas de temáticas e tons dissonantes com sistema de exceção versus poemas de temáticas e tons dissonantes com sistema pseudodemocrático.

Autoria

Chacal em performance na Livraria Muro, Rio de Janeiro, c. 1970.

 
Inicialmente, destaque-se a diferença atinente à autoria. Nos anos de 1970, “a marginalidade era utilizada no cenário cultural como categoria que representava setores sociais desviantes ou não pertencentes aos grupos beneficiados pelo regime militar pós-64.” (PATROCÍNIO, 2005, p. 6). Todavia, a voz dos “não beneficiados” era restrita a um segmento da sociedade carioca. “Embora seja possível encontrar grupos e poetas individuais na Zona Norte e mesmo nos subúrbios cariocas, acho que o centro do fenômeno da poesia marginal está localizado, fundamentalmente, na Zona Sul” (PEREIRA, 1981, p. 37); isto é, majoritariamente classe média2 e universitária. Segundo Patrocínio,
 
“O marginal, que poderia designar tanto os moradores de favelas, desempregados, retirantes nordestinos e bandidos, simbolizada para estes artistas o não pertencimento às estruturas sociais hegemônicas e autoritárias, representando a não integração ao modelo de modernização conservadora perpetrado pelo Estado de forma autoritária e excludente”. (PATROCÍNIO, 2005, p. 6, grifo nosso)

Sérgio Vaz em performance. Reprodução / Facebook


               
No movimento da Literatura Marginal Periférica, a autoria é diversa daquela. “O público atual não é apenas ouvinte do poema, mas produtor, autor e personagem dele” (MARINHO, 2016, 20). A voz é dada a um grupo excluído: “dos becos e vielas há de vir a voz que grita contra o silêncio que nos pune. Eis que surge das ladeiras um povo lindo e inteligente galopando contra o passado” (VAZ, 2011, p. 50-52). Trata-se de uma literatura “feita à margem dos núcleos centrais do saber e da grande cultura nacional, ou seja, os de grande poder aquisitivo” (FÉRREZ, 2005, p. 12); noutras palavras, na periferia.
 
Eixo programático
 
Mas também diferem essas duas estéticas literárias no tange eixo programático. “O que hoje chamamos de poesia marginal foi, digamos, um acontecimento cultural ou, melhor, um ‘surto’ poético” (HOLLANDA, 2018, sem página), pois (os poetas dessa geração) “marcavam sua posição ao não explicitar qualquer projeto literário ou político e ao apresentar-se claramente como não-programática, mostrando-se avessa a escolas e a enquadramento formal” (HOLLANDA, 2018, sem página), ao passo que Literatura Marginal Periférica designa “a condição social de origem dos escritores, a temática privilegiada nos textos ou a combinação de ambos” (NASCIMENTO, 2009, p. 112), tendo manifestos de Literatura Marginal (FERRÉZ, 2006, p. 1)3 e de Literatura Periférica (VAZ, 2011, p. 50-52)4 que explicitam o movimento, em seu epicentro, na periferia paulistana, expandindo-se, todavia, para outras periferias e subúrbios do Brasil.
 
A antropóloga Érica Peçanha do Nascimento, em seu Vozes marginais na literatura, formula interessante tabela sobre tais diferenças; aos que tiverem interesse, vale consultar (NASCIMENTO, 2009, p. 47-48). A pesquisadora argentina, Lucía Tennina, por sua vez, traz um comparativo entre os anos 1970 e a Literatura Marginal Periférica, destacando características desta, que vale registrar:
 
“La idea de “marginal” em estos casos tampoco proviene de la ideia de prácticas literarias no institucionalizadas, como sucedió com los “poetas marginales” de los años 70. Se corresponde, más bien, com el origen social de los que firman los cuentos y poemas y com la idea de “marginal” aplicada desde el sentido común que refiere negativamente a los habitantes de zonas pobres de las ciudades y es utilizada también como sinónimo de “criminal” o “delincuente”: esta idea es desplazada por estos escritores del campo de lo social al literario al identificar a sus proprias producciones escritas como “literatura marginal”” (TENNINA, 2017, p. 33)
 
Temáticas e tons
 
Por fim, para efeitos de exposição acerca das distinções, as temáticas e tons se tornam particulares.5 Ainda que ambas sejam rotuladas por certas partes da crítica literária, no momento de sua aparição — especialmente, mas não exclusivamente —,  relembrando que “em vários momentos, inclusive, falou-se de uma literatura pobre” (PEREIRA, 1981, 38), que “não tem, pelo menos num primeiro momento, essa conotação literária muito bem marcada” (PEREIRA, 1981, p. 55), sobre a geração de 70, ao passo que se taxou de “bairristas, de preconceituosos, de limitados e de várias outras coisas” (FERRÉZ, Apud  NASCIMENTO, 2009, p. 69), simplesmente de “obras de um novo exotismo” (HOSSNE, 2005, p. 4 apud NASCIMENTO, 2009, p. 126), sobre a Literatura Marginal Periférica, diferenciam-se ambas em seus tons.
 
Em 1977, Nicolas Behr publicou seu primeiro livro feito em mimeógrafo.

A geração de 70 recorre a “tom bastante coloquial, nada acadêmico” (PEREIRA, 1981, p. 38), por meio “do uso irreverente e irônico da linguagem poética” (HOLLANDA, 2018, sem página) que “cede lugar às incertezas do desbunde” (PEREIRA, 1981, p. 33), com variações de “textos em prosa, com forte tom irônico, até outros contendo uma poesia calcada sobre o verso” (PEREIRA, 1981, p. 38). Na Literatura Marginal Periférica, por sua vez — a despeito de, em comum haver coloquialidade —, nota-se um “tipo de escrita (linguagem coloquial, recheada de gírias urbanas paulistanas), realismo exacerbado e comparações com os produtos do hip-hop” (NASCIMENTO, 2009, p. 43).

No que concerne a temas, nos anos 70, “tematiza-se questões estritamente relacionadas ao cotidiano dos produtores” (PEREIRA, 1981, p. 38), ou, “uma mistura de acaso cotidiano (‘pego a palavra no ar’) e registro imediato (‘no pulo aparo’)”6 (SUSSEKIND, 1985, p. 68), na Literatura Marginal Periférica, também as temáticas se relacionam a seus produtores, todavia, versam, ao mesmo tempo, sobre a coletividade, abordando temas que não somente os aflige, mas a grupos sociais, de negros, de feminismo, de gênero; afinal, em relação aos poetas “da periferia, fica evidente a reivindicação de seu lugar de fala, de sua luta pelos direitos sociais por meio da literatura e seu lugar [...] na literatura brasileira” (MARINHO, 2016, p. 31), ou, como os versos do rapper Cocão a Voz, “É a vez é a voz”, citados por Márcio Vidal Marinho em sua dissertação de mestrado sobre a Cooperifa, maior sarau de São Paulo:
 
É a vez, é a voz, é a voz, é a vez
É a vez, é a voz, é a voz, é a vez
É a vez, é a voz, é a voz, é a vez
É a vez de quem não teve a voz
É a voz de quem não teve vez
(MARINHO, 2016, p. 55)
 
Derradeiras palavras
 
Obviamente, estas explanações oferecem apenas uma panorâmica acerca das particularidades que fazem com que se distanciem — e muito — Literatura Marginal e Literatura Marginal Periférica. Às margens do que se produzia — ou se concebia como literatura — em seus adventos, guardam entre si — em seus âmagos, em suas concepções epistemológicas — não muito mais do que essa proximidade. Quiçá, em estratégias de edição e circulação de livros, residam semelhanças interessantes (outrora me debrucei sobre essas questões); entretanto, são assuntos para outra escrita.


Notas
1 A despeito de concordarmos com Hollanda, para qual a nomenclatura é o que menos importa, até porque para ela poderia ser “literatura hip-hop” ou  “marginal, periférica, divergente” (HOLLANDA, 2018, 1), utilizaremos os termos Marginal Periférica, haja vista ambos terem sido cunhados, o primeiro e o segundo, respectivamente por Ferrèz e Sérgio Vaz, em seus manifestos; sendo ambos os mais utilizados, empregou-se os dois juntos para não só distinguir de literatura marginal dos anos de 1970, mas evitar discussões terminológicas neste trabalho. Seguimos proposta de Érica Peçanha (2006), nesse sentido; cremos ser interessante, a proposição literatura marginal de la periferia (TENNINA, 2017, 26).
 
2 De acordo com Pereira, entre 1978 / 1979, “vão se reunir em torno da ‘poesia marginal’ pessoas que em termos de idade variam [...] entrando na casa dos 20 anos [...] que acabam de ingressar na universidade ou a estão cursando, outros que já passaram dos 25 anos estando perto dos 30 ou [...] completaram 30, (bem como ) [...] que cursaram faculdade do período que vai de 68 / 69 até 74 / 75 [...] ainda outros que [...] cursaram faculdade no período anterior a 68 (ano do AI-5)” (PEREIRA, 1981, 36).
 
3 Publicado inicialmente no Ato 2, da revista Caros Amigos, especial Literatura Marginal, mas extraído, do prefácio de Literatura Terrorista.
 
4 Publicado inicialmente em seu Blog Colecionador de Pedras, em 2007, quando da realização da Semana de Arte da Periferia e, posteriormente, no livro Literatura, pão e poesia.
 
5 As questões relacionadas à edição, distribuição e performance recebem  tratamento específico em subtítulos.
 
6 Neste trecho, a pesquisadora se refere a uma poesia de Chacal, qual, para ela, pode auxiliar a entender o fazer literário dos anos 70.


Referências
FERRÉZ (org.). “Terrorismo literário”. In: Literatura marginal: talentos da escrita periférica. Rio de Janeiro: Agir, 2005.
HOLLANDA, Heloísa Buarque de.  “Duas poéticas, dois momentos”. Disponível aqui. Acesso em 12 de dezembro de 2018. 
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. “Literatura marginal”. Disponível aqui. Acesso em 12 de dezembro de 2018. 
MARINHO, Márcio Vidal. Cooperifa e a literatura periférica: poetas da periferia e a tradição literária brasileira. Dissertação (Mestrado em Letras). Faculdade de Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2016.
NASCIMENTO, Érica Peçanha. Vozes marginais na literatura. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2009.
PATROCÍNIO, Paulo Roberto Tonani do. “O que há de positivo em ser marginal?”. Disponível aqui. Acesso em 18 de dezembro de 2018. 
PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. Retrato de época. Poesia marginal anos 70. Brasília: MEC / FUNARTE, 1981.
SÜSSEKIND, Flora. Literatura e vida literária. Polêmicas, diários & retratos. São Paulo: Jorge Zahar, 1985.
TENNINA, LUCÍA ¡Cuidado con los poetas! Literatura y periferia en la ciudad de São Paulo. Rosario: Beatriz Viterbo Editora, 2017.
VAZ, Sérgio. Literatura, pão e poesia.  São Paulo: Global, 2011.
 

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