Dez poemas e fragmentos de Safo
Por Pedro Belo Clara
Afresco de uma jovem nomeada Safo. Pompeia, 55-79 d. C. |
Se passares por Creta1
vem ao templo sagrado,
onde mais grato é o pomar de
macieiras
e do altar sobe um perfume de
incenso.
Aqui, onde a sombra é a das rosas,
no meio dos ramos escorre a água,
e no rumor das folhas vem o sono.
Aqui, no prado onde todas as
flores
da primavera abrem e os cavalos
pastam,
a brisa traz um aroma de mel.
…
Vem, Cípris2, a fronte
cingida, e nas taças
de oiro voluptuosamente entorna
o claro vinho e a alegria.
***
E de súbito
a madrugada de sandálias de oiro.
***
No ramo alto, alta no ramo
mais alto, a maçã
vermelha
ali ficou esquecida. Esquecida?
Não, em vão tentaram colhê-la.
***
Vésper3, tu juntas tudo
quanto dispersa a luminosa aurora,
trazes a ovelha, trazes a cabra,
só à mãe não trazes a filha.
***
Desejo e ardo.
***
Com os braços cheios de rosas,
vinde sagradas filhas de Zeus4!
***
… mais doce ainda que o canto da
lira
… e mais que o oiro
doirada.
***
Outra vez Eros me agita o coração
–
assim nos montes
o vento sacode os carvalhos.
***
…
Na noite, em vigília,
cantam as raparigas,
cantam a tua amada,
de violetas cingida.
…
***
…
O que eu quero é morrer, morrer!
Ela em lágrimas banhada dizia-me
ao partir: «Ah, Safo, que sorte
tão cruel.
Juro-te, é contra minha vontade
que te abandono!»
Eu respondi-lhe: «Adeus,
sê feliz e lembra-te de mim.
Bem sabes quanto te quis.
Mas se esqueceres (e tu
esquecerás…) deixa-me que lembre,
entre tantas, algumas horas belas;
as grinaldas tecidas, lado a lado,
de rosas, violetas e alguma
flor de açafrão, sobre o teu
cabelo;
os colares de corolas várias
e fragrantes
em redor do colo delicado;
as essências de ervas raras
e um perfume real
derramado sobre a pele;
o leito onde o desejo
profundamente apaziguavas
a meu lado…»
_______
Safo nasceu na ilha de Lesbos, na
Grécia, presumivelmente em Eresso, algures no século VII a.C. Originária duma
família aristocrática, terá vivido quase toda a sua vida em Mitilene, a capital
dessa famosa ilha do mar Egeu – à excepção dum período de exílio que, segundo
se julga, terá cumprido na Sicília, pela sua participação numa conspiração
contra Pítaco, um déspota de então.
Na verdade, como acontece com
quase todos os poetas da antiguidade, pouco se sabe da vida desta
extraordinária poetisa clássica, com todo o mérito designada a mãe da poesia
lírica – não tanto no sentido de alguém que criou o género, mas que o
desenvolveu e elevou. Do que até nós chegou, poemas – agora fragmentos –
escritos com o intuito de serem cantados ou ditos ao som da lira, ou outro
instrumento de cordas, observamos comummente que versavam sobre o amor, o fogo
das paixões, a melancolia e o ardor da ausência. Naturalmente, imiscuía-se nos
temas o aspecto mitológico, em especial os deuses associados ao amor e ao
prazer (no caso Afrodite e o seu filho Eros), mas também é possível encontrar
algumas canções de elogio ou de censura ao comportamento de alguém que lhe era
próximo – tudo isto numa linha clara e limpa, de metáfora simples mas
cintilante, tendo por pano de fundo motivos naturais.
Quando à mulher em si, fisicamente
falando, nenhum retrato ou gravura sua sobreviveu. Todas as composições
posteriores derivaram de relatos de certos autores seus contemporâneos, dentre
eles o poeta Alceu, com quem se presume
que Safo tenha tido um relação fugaz. Foi quem nos deixou talvez a mais bela
descrição desta mulher peculiar: “sorriso de mel e tranças de violetas”.
Do mesmo modo, isto é, através de
relatos de contemporâneos, chegaram até nós alguns episódios da sua existência,
mas dada a disparidade, em alguns casos, das histórias sobreviventes, pouco
crédito lhes poderá ser dado. Afinal, no caso de figuras tão extraordinárias,
que atingem um nível de sublimidade notável, o mito e a lenda (também a
fantasia) facilmente se imiscuem na realidade dos factos. O exemplo mais
flagrante será o episódio da sua suposta morte. Não se sabe ao certo quando
terá ocorrido, mas existem fragmentos escritos pela própria Safo que denunciam
a sua autora como estando numa idade avançada. Há outros indicadores que
suportam esta hipótese, que Safo terá vivido uma vida relativamente longa, mas
uma lenda, por exemplo, fê-la saltar ainda jovem dum penhasco em nome dum amor
não correspondido.
A
versão mais consensual diz-nos que Safo seria uma mulher culta e bem instruída,
de origens, como antes escrevemos, aristocráticas. Teve três irmãos e, a um
dado ponto, terá casado e tido uma filha de nome Cleis, que surge em referência
nalguns dos seus fragmentos poéticos. Mas o ponto mais significativo da sua
vida é sem dúvida a escola para mulheres que fundou em Mitilene, um acto que,
numa época onde o ensino era apenas reservado ao público masculino, abalou as
fundações da sociedade vigente. Não se estranhem, por isso, as várias
perseguições políticas que Safo e a sua escola sofreram, bem como deturpações
históricas por parte de figuras que, em tempos posteriores, do alto da sua
posição não hesitaram em condenar a heresia do gesto.
Se
hoje em dia a ilha onde tudo isto se passou é famosa por dar nome a uma
preferência sexual (de Lesbos deriva, recorde-se, o termo “lésbica”), bem o
deve ao denegrir proporcionado por indivíduos que se escandalizaram com o que
por lá acontecia. Nessa escola feminina ensinava-se poesia, canto, dança e
filosofia, e não se descurava outros eventos como concursos de beleza e rituais
religiosos, já que a escola estava consagrada, ou melhor, era tutelada pela deusa
Afrodite, a deusa do amor. Safo vivia assim rodeada de mulheres, as suas hetairai,
ou seja, “companheiras” ou “amigas dilectas”, pelo que dirigiu muitos dos seus
versos a tais figuras que guardava em alta estima. A partir daqui foi muito
fácil, em rápido e mal intencionado julgamento, embora não se exclua a
ignorância na sua expressão mais pura, baralhar uma amizade profunda e íntima
com relações sexuais de cariz lésbico.
É um facto que muitos dos seus
poemas de amor contêm uma pulsão erótica, e facilmente se compreende que estão
dirigidos a figuras femininas, mas dado o contexto em que Safo vivia e ensinava
não seria de esperar algo diferente. Importa, contudo, esclarecer o seguinte:
na época era comum o “eu poético” ser usado como referência a um grupo, ou
seja, o “eu” era, na verdade, um “nós”. Estes poemas eram escritos para eventos
e cerimónias específicas, pelo que o sujeito poético não traduzia propriamente
as emoções e os pensamentos do seu autor ou autora, mas sim do grupo a que se
dirigia ou que parte fazia do evento em causa. Vejamos um exemplo concreto: Safo
compôs vários cânticos nupciais, textos poéticos que por tradição eram lidos em
casamentos na Grécia antiga. Estes textos eram encomendados especificamente
para esses eventos, pelo que, como se compreenderá, não representariam os
sentimentos ou as confissões íntimas da sua autora. Infelizmente, a ignorância (e
malícia?) de quem sobre eles se debruçou séculos depois firmou o rótulo de
cortesã com que Safo seria conhecida nos séculos posteriores, tal como contribuiu
para o denegrir da reputação da sua bem amada escola – um lugar onde,
supostamente, ocorriam os actos mais devassos.
No entanto, existe um aspecto que convém
ressalvar, e que muitos investigadores dos tempos modernos consideram também
ter tido peso nesta história de enganos e malícia: terá existido uma outra
mulher com o mesmo nome, essa sim, natural de Eresso e de má fama, ao passo que
a poetisa teria nascido em Mitilene. Mas tendo o mesmo nome, nascido na mesma
ilha e vivido num período de tempo idêntico, os relatos da cortesã de Eresso
ter-se-ão misturado com os relatos da poetisa que dirigia uma escola exclusivamente
feminina – e, por isso, vista de soslaio por uma sociedade patriarcal.
No seguimento dos erros
enumerados, o conteúdo da obra de Safo foi altamente censurado por motivos
morais, embora na verdade, como já sabemos, tenha apenas sido alvo de enganos e
duma imensa incompreensão. Não obstante, entre os séculos IV e XI, várias
figuras do universo católico acabaram por se tornar as grandes responsáveis
pela quase total destruição da sua obra, incluindo os monges copistas do
período medieval. Até aos nossos dias chegaram apenas alguns fragmentos, cerca
de duzentos, muito graças a citações de outros autores, e uma ode completa.
É um caso infeliz, mas não ímpar, em
que o fanatismo religioso, ou somente a ignorância humana, foi capaz de
provocar danos imensos numa das mais belas obras poéticas da antiguidade
clássica. Sobre a mesma, o poeta Eugénio de Andrade, que a traduziu para a
nossa língua, reservou as seguintes palavras: “São versos incomparáveis, onde a
experiência íntima e devastadora da paixão, aliada a um sentido muito vivo da
natureza, nos é comunicada sem ênfase e patetismo, com uma naturalidade até
então desconhecida, e que a poesia ocidental não terá voltado a conhecer (…)”.
Apesar das perseguições e máculas
na sua memória e legado, algumas sofridas ainda durante o tempo em que viveu, a
Grécia antiga soube apreciar a sua nobre poetisa. Tanto que atribuía a expressão
feminina da mesma a Safo, enquanto o expoente máximo da vertente masculino
estava reservado a Homero. Diz bem do respeito então nutrido pela sua obra, o
que apenas adensa, nesta época moderna, a mágoa de não podermos desfrutar do
prazer de lê-la em maior amplitude.
Terminemos, não só por motivos de
propósito mas por considerarmos justa a referência, com dois versos que o já
referido poeta Alceu dedicou, entre vários, a esta inspiradora e revolucionária
mulher-poema:
Ó coroada de violetas,
divina doce ridente Safo.
Notas da tradução (Eugénio de
Andrade)
1 Ilha grega do mediterrâneo onde
floresceu a mais antiga cultura da Europa. Foi sucessivamente ocupada pelos
dórios, romanos e turcos.
2 Epíteto de Afrodite, assim chama
por ter nascido na costa de Cipro ou Chipre, ilha que lhe era consagrada.
3 O planeta Vénus, também chamado
“estrela da tarde”.
4 Deus supremo dos gregos.
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