Com o indicador no espiral
Por Tiago D. Oliveira
O pão do corvo, de Nuno Ramos, foi editado
pela primeira vez em 2001 pela Editora 34. São dezessete narrativas curtas que
caminham pelo estranho da percepção que em muitos momentos chega a causar certo
incômodo quando as palavras começam a revirar os pensamentos transformados em carne.
Pensar que palavras escritas se tornam no corpo um fim palpável, com certeza é
uma reflexão sobre a materialidade dos sentidos provocados pela escrita do Nuno
Ramos.
Em 2017, a editora Iluminuras relançou O pão do
corvo, dando um novo ar para uma escrita que ano após ano vem se configurando
como uma das principais vozes da literatura nacional. Nuno transpassa o ato de
grafar um tempo para pesquisar neste, em suas ranhuras marcadas, lugares que só
um escritor sensível aos mistérios da natureza humana consegue captar e desenhar
em períodos provocadores dentro de uma leitura atenta ou até desavisada.
No conto “Lição de geologia”, a narrativa que abre
o volume, o leitor vai sendo mergulhado propositadamente em uma força técnica direcionada
pela linguagem, que falsamente é colocada como ferramenta para a construção de
uma palavra ensaística que costura e compõe a natureza híbrida que permeia toda
obra do Nuno Ramos. Desta forma o leitor é levado também a somatizar caminhos
teóricos que não passam de jogos caros para a construção de um livro aprimorado
em seu labor de escrever. Nuno provoca nas páginas uma imagem de nosso tempo, a
todo momento lúdico e real em sua dor de beleza, ficção.
O autor consegue expressar a ideia
de que a teoria e a prática conseguem se atravessar em planos de semelhanças; penso
que a filosofia se desenhe exatamente nesse momento, como bem apontou Gilles Deleuze - a questão da filosofia é o ponto singular onde o conceito e a criação se
remetem um ao outro. Penso nas criações referidas pelos conceitos ensaiados por
Nuno e vejo um afinamento que me toca como dedilhar de nosso tempo. Lembrei que
depois da leitura de um outro livro dele, Junco, coloquei-me a medir o eco dos
versos nos dias seguintes e por uma insistência comparativa de imagens, ora cão
ora tronco, percebi a materialidade daquelas imagens em pensamentos. Aquilo era
corpo materializado. Vejo agora tamanha força também neste conjunto de contos
que toma a matéria como fecundação para uma filosofia tocada pela linguagem,
mas acima de tudo pela força de significados que o autor transforma em
alegorias, pequenas narrativas também dos dias.
De uma leitura que se repete depois de anos, o
que soma mais ainda em detalhes que na primeira não foram realizados com tanto
afinco e atenção, pois o encanto da forma somada ao sentido ganhava mais e mais
terreno. O que agora se transformou em uma troca mais lenta e instintiva, vai paulatinamente
cavando no aporte carregado, na bagagem dos anos, vai buscando o que de vida se
fez e quais contratos com o tempo foram assinados, a literatura aqui ganha uma
ampla sensação de vida. Assim marco com o lápis a página 29, “Cinza”, um
pequeno parágrafo que se basta em seu centro profundo, como se tocasse na calma
sentido do existir, um ciclo de inícios e fins que Nuno Ramos retoca com palavras
e assegura ao leitor uma cadeira de frente para o palco, irremediavelmente
vital como o ar que entra depois de um longo mergulho na água. Em sua totalidade,
ele escreve:
“Se o fogo vier da floresta, temos o nosso
fosso. Se vier de dentro de uma das casas, há a terra em torno delas para impedir
que se espalhe. Se crescer na choupana grande, tomara que a destrua. Talvez
seja um raio que nos fulmine. Sabemos que o fogo virá porque todos tivemos o
mesmo sonho. Uma chama azul e a fumaça clara. O cheiro doce de carne queimada. A
fuga dos sobreviventes entre carvões, até a lagoa seca. Nossa carcaça calcinada
junto à dos dois leões. Depois as nossas árvores crescendo, as novas casas, a
choupana grande. Depois o mesmo sonho e a dissipação novamente.”
Assim, como neste pequeno conto, somos levados
a pensar sobre o ciclo da existência, coloco-me também a elevar os pensamentos
para a literatura, para onde o autor quer nos levar com uma escrita que
consegue esvaziar e encher ao mesmo tempo. Se esvazia quando recorre ao driblar
sobre moldes e heranças da escrita e ao mesmo tempo se preenche quando se lança
sobre os mesmos pontos ao acrescer no contemporâneo novas formas de reescrever
a própria literatura. Esta vai no caminho dos homens, cheios e vazios e tão
passíveis a encantamentos e umbrais que são escritos, lidos e estudados no riso
dos séculos sobre nós.
A escrita de Nuno Ramos é um capítulo caro de como a literatura
ainda caminha em sua terapia de entendimento sobre a sua própria natureza,
tateamos juntos as pedras do caminho sob um mesmo céu de chuva e sol ao mesmo tempo.
Estamos vivos e seguiremos.
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