Apague a luz se for chorar, de Fabiane Guimarães

Por Pedro Fernandes




 
“Nós te viciamos em cuidar e, quando pareceu que seu coração estava irremediavelmente partido, o melhor a fazer foi deixar que você descobrisse outra modalidade de carinho. O cuidado consigo mesma.” A passagem está numa carta de despedida escrita pelos pais de Cecília só descoberta tempos mais tarde depois de a filha se envolver num rol de situações em parte fabricado por uma consciência perturbada justamente porque se encontra, pela primeira vez, lançada à própria sorte para o mundo.
 
Fabiane Guimarães soma-se, assim, a uma extensa lista de escritores preocupados em discorrer os traumas de uma geração cujas estruturas individuais são extremamente frágeis porque educadas pela força da superproteção da família. Extensão de um drama burguês com marcas que se estendem para fora de suas redomas, afinal, estamos condenados, por mais que nos esforcemos negar, ao coletivo, porque somos animais sociais, diferentes em tudo, por exemplo, dos cães que entram e saem da narrativa de Apague a luz se for chorar.
 
O instante de aprendizagem de Cecília passa por uma sucessão contínua de perdas: o emprego como veterinária largado porque ela decide ir viver no Rio de Janeiro depois de uma desilusão amorosa; e o duplo luto da morte repentina dos pais — anos depois que se mudam para a pequena Pirenópolis e as relações familiares se resumem aos telefonemas diários marcados quase sempre pelo fingimento da filha sobre o curso da vida. Desses três instantes, a narrativa privilegia o último acontecimento, porque a partir dele se instala uma variedade de descobertas motivadoras da modificação interior da personagem.
 
Um segundo fio narrativo se situa perpendicular ao primeiro; enquanto este é narrado em primeira pessoa, isto é, pelo ponto de vista da própria Cecília, o outro, se desenvolve em terceira pessoa funcionando como se um subtexto; suas circunstâncias são alcançadas apenas pelo plano externo, ou seja, sem que as tímidas interferências no curso das situações que correm no primeiro afetem conscientemente sua narradora. Seu papel principal é o de desconstruir a imagem primeira da personagem central, então determinada pela narradora do plano anterior; ao mesmo tempo, se organizam aqui alguns esclarecimentos sobre os episódios centrais do romance.  
 
Ainda assim, neste segundo plano se situa outro drama (isso não falta, funciona numa escala crescente à medida que a narrativa avança); desta vez, o de João, ex-namorado de Cecília, pai de uma criança com paralisia cerebral gerada num ato de traição e abandonada adiante pela amante. O também veterinário se dedica com todas as forças para consolidar a possibilidade de oferecer ao filho um tratamento com células tronco no outro lado do mundo — antes com uma fé nos próprios atos, depois, entregando-se à correnteza das coisas, como quem à espera de um milagre. Nesse périplo não sobram limites e João finda por oferecer certo paradigma ao comportar o que falta à personagem do primeiro plano narrativo: uma determinação que, mesmo futura, parece alheia à personalidade de Cecília.
 
O funcionamento de qualquer narrativa é determinado pelas escolhas adotadas pelo escritor e como as diretrizes que intervêm no funcionamento de nossas próprias vidas nem sempre cabe questionar suas razões. Mesmo assim — e o desfecho de Apague a luz se for chorar não nos deixa mentir — é possível interrogar aqui sobre a função da segunda narrativa para o todo do romance; desde o início os dois fios se tocam, estabelecem aos nossos olhos a resolução de alguns impasses da narrativa central, mas as duas pontas não se confluem, seguem um curso particular e, portanto, totalmente dispensável para o bom andamento do romance. Sobra sempre qualquer coisa de interferência proposital para preencher os vazios de uma narrativa simplista demais, o que, pela força dramática do universo povoado por Cecília, não é.
 
O ciúme, a traição, o luto, a incerteza, o medo, a desilusão, a apatia ante o mundo, os silêncios das relações familiares com seus excessos de expectativas encalhados em ambas as partes (entre pais e filhos) e a mesma dose de frustrações, bem como as circunstâncias da morte dos pais, tudo isso é material rico o suficiente para a construção de uma narrativa para um romance, de maneira que outra lista de coisas (ainda maior) apenas faz a sustentação do edifício pender de fragilidades.
 
É sempre importante considerar que o excesso de situações cabe bem à novela, feita sempre da variabilidade de respostas para os desdobramentos das ações, mas não ao romance, que pede maior aprofundamento em torno de um aspecto em sua força desdobrável. A ficção romanesca é mais que um arranjo de episódios; é um arranjo da linguagem capaz de constituir uma força comunicativa que integra o comum no fabular. No mais, há segredos sobre os quais é sempre preferível que só os acessemos pela via da incerteza — sobre isso sobram exemplos na prosa romanesca.
 
O elemento excepcional — no sentido de valioso — em Apague a luz se for chorar é a longa carta de despedida deixada pelos pais de Cecília, a mesma de onde coletamos o passo que abre estas notas e tão esclarecedor para uma compreensão acerca da personagem. Nela se contém tudo o necessário para o romance e por este texto era possível se oferecer a resposta para as interrogações essenciais que se formam no interior da curiosidade da narradora desde quando chega à pequena cidade onde precisará cuidar da sepultura de seus pais e outros trâmites comuns ao pós-morte. Não se contam en passant acontecimentos tão complexos e que exigem da exploração romanesca maior aprofundamento.
 
A textualidade de Apague a luz se for chorar é inquestionável, como é também o desenvolvimento das narrativas e dos conflitos, ainda que as soluções para algumas situações interfiram numa crise da verossimilhança que não chega a se instaurar. Nada trai o domínio da escrita; o mesmo não é possível dizer da escritura, domínio essencial do romance que há muito perdeu o ilusório estatuto de contar uma história para se oferecer como um artefato que possa interpretar o homem e o mundo.
 
Talvez se a leitura do livro aqui observado se construir pela perspectiva de uma novela — encontramos dois conflitos em cada um dos núcleos narrativos que se avolumam em proporção ascendente até encontrar, depois de algumas reviravoltas, um desfecho cômodo, à maneira de um happy end —, isto é, se ajustarmos nossas lentes de acesso, possamos compreender seu verdadeiro interesse: oferecer um drama individual que em parte designa nossas circunstâncias na contemporaneidade. Voltamos ao que dissemos no início.
 
O livro de Fabiane Guimarães se oferece propriamente como um produto dos nossos impasses. E uma eventual crise do discurso está no centro dessa diretriz. Há um elemento que coordena os gestos da personagem principal de Apague a luz se for chorar: o medo. Com ele, teme a perda definitiva do que se apresenta como suas bases de sustentação no mundo, primeiramente simbolizada pelos pais, depois, sem desprezar todos os afetos familiares envolvidos, o poder financeiro. É o medo que a arrastando por uma selva na qual se percebe perseguida e depois usurpada pelo outro; com ele constrói toda uma intriga frágil, crível apenas para consciências feitas de quaisquer tônus conspiratórios. A insegurança de Cecília sobre si, o outro e seu mundo — sua incapacidade de sustentar as criações imaginadas até o ponto ideal de irrupção — pode dizer muito da rasura e consequentemente das fragilidades do discurso romanesco. Mas isso é uma tarefa que cada leitor precisará descobrir sozinho.
 

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