A violoncelista, de Michael Krüger

Por Pedro Fernandes

Michael Krüger. Foto: Matthias Ziegler


 
“O mundo nasceu de um soluço e vai acabar num soluço. Assim como Deus se entediou ao brincar com a matéria morta, com as esferas incandescentes que, numa órbita mais ou menos precisa, zuniam-lhe ao redor da cabeça, sem um desvio perceptível ou contingência, vai entediá-lo também assistir às mascaradas sempre renovadas dos homens. E, de qualquer forma, ele não entende nada de música contemporânea. Parou em Bach.” 

O autor dessas palavras, se não enfurecidas, repletas de um cortante sarcasmo, é um compositor alemão que, situado no outono da sua vida — pessoal e profissional — se mostra interessado passar a limpo uma existência devotada ao interesse continuado pela música. A essa altura, transita entre o limite de compor uma peça musical acerca da morte da lírica tendo por base a vida e obra do poeta russo Óssip Mandelstam e o contato de maneira repentina com o seu passado a partir da chegada em sua vida de Judit, a jovem filha de um amor da juventude.
 
A leitura da síntese deste romance de Michael Krüger poderá despertar uma certeza facilmente questionável no contato direto com o livro: outra vez uma obra que tematiza a crise da criatividade; organizado pelo ponto de vista de um sujeito de meia-idade uma narrativa profundamente desencantada pelo seu presente; um narrador interessado apenas destilar do alto de seu pretenso eruditismo toda sorte de críticas sobretudo mordazes acerca do seu entorno, do presente, como se o mundo inquestionável fosse o que construiu para si, com suas leis, preocupações e interesses individuais.
 
Também, a presença de uma jovem em idade de ser a filha do homem narrador e toda a sorte de vivências de um amor do passado, a compreensão — igualmente questionável — segundo qual este é outro romance que tematiza um enlace amoroso feito de abusos ou perversões de uma ninfeta mas que, na verdade, a culpa de tudo é exclusivamente de um decadente mas ativo machismo. Assim, desde o título, que recupera Judit como figura principal ao seu possível enlace com este compositor em crise, estaria o romance outra vez revisitando o agora, para muitos, execrável tema favorecido na literatura moderna por Vladimir Nabokov, o que, ganharia ainda melhor precisão pela passagem que menciona o referido autor de Lolita ou mesmo o interesse desse narrador pelos escritores perseguidos e censurados pela União Soviética, contexto, aliás, refigurado quando encontramos o narrador-personagem saído de um tempo de Alemanha dividida ou repúblicas sustentadas pelo que foi algum fôlego socialista.
 
Nenhuma das possibilidades até agora ventiladas são inegáveis, mas nenhuma delas são pontos negativos em A violoncelista. As referências aí se situam, mas não se comportam como determinantes para o funcionamento ou mesmo a existência do romance. A mirada profundamente desencantada do mundo é a de quem viveu no epicentro dos embates ideológicos que, se muito causaram, foram cisões radicais demais, cujos sentidos negativos nunca deixaram de ser percebidos, e vastos e ineficientes saberes, parte deles feita de repúdios ao horror e ao ódio mas curiosamente fabricadores do que se repudiava, com cartilha e tudo. Nesse sentido, este romance não está preocupado com o tema da crise criativa ou dos amores indevidos; está preocupado em oferecer uma compreensão acerca do homem que se quer impor enquanto individualidade situado numa complexa teia que ora o demove dessa condição porque o vê como peça de uma engrenagem coletiva ora o quer como elemento elevado, o lugar sempre esperado de todo criador artístico.
 
Este compositor fabulado por Michael Krüger desempenha, assim, um papel simbólico ao mesmo tempo singular — pela reiteração de toda uma conjuntura política e ideológica de acirradas forças com destino igual — e universal. Neste último caso, seu drama é o de todo sujeito que não se reconhece cegamente irmanado nas teias sociais, ou melhor, que compreende as deficiências de uma ordem social que desconsidera o que intrinsecamente constitui a individualidade de seus elementos constituintes; é o drama do homem recusador do papel de massa amorfa ou que se sente profundamente cindido pela imposição desse papel. São várias as circunstâncias em que a necessária retirada do meio social para a criação artística é tumultuada pelo indevido; enquanto busca encontrar a saída para seu novo projeto, este narrador tem seu reduto invadido pelas circunstâncias exteriores, sendo Judit, apenas uma delas ou seu epicentro motriz. Em alguns dos casos essas intervenções funcionam com a lógica da oxigenação das ideias, marcam, por assim dizer, o necessário afastamento do criador em relação às suas obsessões favorecendo-o o aparecimento da obra. Não é o que se verifica aqui.
 
Quer dizer, A violoncelista parece se colocar como produto de uma tese sobre as dificuldades da criação artística num mundo cuja extensão da prosa se sobrepõe ao poético. Aquela responde por vários nomes: o cotidiano, as relações sociais, as diatribes político-ideológicas. E cada uma delas é explorada de alguma maneira pela narrativa; a menor escala desse argumento é a própria vida do compositor, depois os modelos que constituem de alguma maneira uma tessitura intertextual, muitas vezes explícita. Nesse segundo instante, vale citar o interesse do narrador pelo tema da morte da lírica e pela figura de Óssip Mandelstam. O primeiro tema ao encontrar articulação com a história, perfaz inquietações como as vislumbradas em Theodor W. Adorno, leitor à contrapelo do idealismo e sobre os impactos do capitalismo industrial.
 
É notável nesse sentido que entre os dois limites ideológicos dominantes, o narrador de A violoncelista encontre na dialética negativa sua compreensão do mundo, isto é, a razão antagônica não estabelece uma superação das contradições. Os exemplos ao longo do romance são muitos. Fiquemos, então, com dois deles. O primeiro refere-se a um episódio no qual o compositor frequentador assíduo de Budapeste liberta dos tempos gládios do socialismo encontra simbólica na figura de Janos a seguinte compreensão: “A família de sua mãe havia sido assassinada nos campos de concentração alemães; o pai, um famoso comunista, morrera num campo de trabalhos forçados da ‘pátria do proletariado mundial’. Deixara um legado de trinta e cinco cartas, uma antologia da fome e dos interrogatórios, da carência de vitamina e do fervor revolucionário, um testemunho da intentada extinção de sua individualidade que, além das depressões, da melancolia, do medo e da saudade, descreve também sua amizade com dois companheiros alemães que pereceram diante de seus olhos. Janos conhecia aquelas cartas de cor, e sempre que um dos colegas comunistas de Colônia, Paris ou Milão acreditava-se na obrigação de repreender algum outro, ele começava a murmurar uma passagem do sofrimento contido nas cartas do pai.”



O segundo excerto é um recorte acerca de um pequeno retrato estabelecido por um músico desconhecido de Colônia, Grützmacher, que se solidariza com a displicência e os ataques sofridos pelo compositor numa rádio acerca de sua obra sobre Anna Akhmátova. No mesmo instante que traz os fios dessa dialética negativa oferece uma imagem sobre o lugar desse narrador, além, é claro, do seu interesse por Óssip Mandelstam. Falamos depois sobre isso. Por enquanto, o excerto: “Com essa sua música, disse-me Grützmacher — assim se chamava meu interlocutor —, você não mesmo conseguir muita coisa; não é elitista nem popular, não tem amigos certos e nem mesmo os inimigos certos, não é tão de esquerda quanto precisaria ser, mas tampouco decididamente aristocrático; sua postura é mais de preservação obstinada do que de afirmação militante, você não deseja se isolar do fato, mas também não quer se integrar, e assim por diante. Mas o pior é que sua música não é capaz de fazer as pessoas brigarem por causa dela! E isso significa que não podem se reconciliar com você, depois de lhe causar sofrimento. O problema é que quem renuncia à reconciliação depois da ofensa desconhece a lei que regula o desenvolvimento das relações humanas.” O compositor de A violinista é um homem a meio caminho. Aos olhos de todos, desinteressante, anódino.
 
Mas, não é por isso que se dá o desconhecimento de sua obra erudita, já que o celebram pela música para seriados populares na televisão alemã. Este vem da sociedade de consumo que no aplainamento cultural acentuado pela ascensão do capitalismo tem colocado em xeque o papel das expressões artísticas de prestígio. A música contemporânea, da qual é não apenas admirador como praticante, se por um lado é produto do império das desconstruções, não encontra nessa sociedade sequer o lugar de prestígio da música clássica. Em certa altura, o narrador reflete que nem mesmo seus pares — admiradores do seu trabalho comercial — guardam o interesse de prestigiar sua música para concerto; nesse epicentro, todos os profissionais que lidam de alguma maneira com o erudito são percebidos por este compositor como visivelmente desacreditados ou que levam suas atividades com pouca ou quase nenhuma seriedade. Dos vários episódios de intromissão do mundo hodierno no lugar íntimo da criação, vale citar o de quando sua casa é invadida por dois de seus pares que sob o pretexto de uma notícia da amante húngara findam por atabalhoar o desenvolvimento do seu trabalho, além de distorcer os rumos de um projeto para o Instituto Goethe. Nesse sentido, Michael Krüger repete a compreensão adorniana do sujeito tornado coisa.
 
A morte da lírica significa assim não o apagamento da poesia, mas a destituição daqueles traços estabelecidos no e pelo interior, logo pela acentuada individualidade. O apagamento da representação idealista, da expressão totalizante, do sentido pleno, da unidade de identidade e expressão. Chegamos a Óssip Mandelstam. O poeta russo considerado radical inimigo de estado; sua formação clássica e sua condição de não engajado politicamente fez Mandelstam pertencer ao grupo dos que pereceram porque olhavam o interior não exposto da violência do poder soviético. Outra de sua característica, profundamente enraizada na persona do nosso compositor alemão, é sua mordaz irreverência. Conta-se que o poeta internado numa casa de repouso porque sofria de crises nervosas foi preso porque teceu uma imagem caricata (do caricato) Stálin num de seus poemas.
 
O excerto de abertura destas notas é alguma prova dessa interposição da irreverência do criador russo no narrador de A violinista. Mas há uma considerável implicância com György Lukács que é perceptível desde a primeira aparição desse nome na narrativa. São várias as circunstâncias e a título de exemplo vale recortar uma delas como prova do que dizemos e como ponto de reencontro com o início destas notas e logo seu desfecho. Nos tempos de idas frequentes a Budapeste, já de caso amoroso com Maria, uma cantora lírica que algumas vezes se recusa a cantar algumas de suas peças, a mãe da intensa Judit, nosso compositor faz o papel de um bom samaritano enquanto volteia pela labiríntica cidade; Adras, o velhinho socorrido por ele, define o filósofo como um tipo “mau-caráter e um traidor”. Mais adiante, na mesma circunstância de viandante, agora perdido à procura do apartamento que fora residência de um antigo poeta comunista, Pal Friedrich, e alugado por Maria para servir de ninho de amor, o narrador, carregando uma marmita com um jantar romântico, tem um encontro com um cão de rua e — leiamos o excerto:
 
“Enquanto pensava numa boa razão para partir pela quarta vez à procura do edifício, um cão se juntou a mim, jovem e sarnento; as orelhas, apartadas de um modo singular, pareciam ter sido parafusadas dos dois lados da cabeça; um cão que evidentemente desejava tomar parte de meu destino. É certo que ele mantinha um olho na cestinha contendo o jantar, por entre cujas malhas largas entrevia-se o papel pardo do embrulho que envolvia não apenas o peixe e os legumes, mas também a linguiça que eu comprara para o ulterior café da manhã; mas seu outro olho, ou assim acreditei, apreendera meu problema: sua escura amizade dirigia-se apenas a mim, o soturno ascético. Como estivéssemos defronte a casa de Lukács, chamei-o György, o que pareceu tê-lo agradado, pois ele se pôs de imediato a abanar amistoso as orelhas estropiadas. Enquanto eu o alimentava com pedacinhos de linguiça, que, apoiado nas patas traseiras e feito um aluno aplicado, ele deglutia sem fazer nenhum movimento reconhecível de mastigação, György contou-me sua terrível história, que, a despeito de todo o exagero de que somente um cão vadio é capaz, me agradou de tal maneira que não me restou alternativa senão lançar-lhe ainda goela abaixo a última pontinha de linguiça. Você está exagerando, György, disse eu, depois de ele haver afirmado conhecer cada gato-pingado daquele nobre bairro. Todo cachorro húngaro exagera, na hora decisiva da linguiça, mas seus exageros são desmedidos. Em todo caso, se você é tão esperto quanto diz, me mostre o edifício onde mora o escritor e bom comunista Pal Friedrich. György levantou-se, esticou-se, abriu a boca e pôs-se a caminho, passando por todos os edifícios adormecidos, agora meus conhecidos, como se eu tivesse crescido naquelas ruas já escuras; virou à esquerda, depois à direita, até que chegamos de fato à rua que eu procurava, e ele se deteve diante o edifício de número 16, onde morava o famoso poeta que, naquele momento, estava passando o fim de semana num congresso de escritores em Moscou e que, como meritório artista de seu país, dedicava-se a transformar o sofrimento que acompanha o processo de criador em versos radiantes, para alegria da classe trabalhadora.”
 
Tudo nesse episódio beira ao rico tratamento da ironia; a começar pela descrição do cão que mais nos atualiza a imagem de Lukács e não a do animal. O pensador húngaro transmutado num cão de rua de inteligência geográfica excepcional não funciona apenas como um recurso das assim chamadas narrativas pós-modernas. É o pleno questionamento das determinantes que enformam sua figura — situada no âmbito do pensamento marxista e apegada às formas da tradição literária. No proposital desfazimento do peso intelectual e no esmagamento da sisudez, note que o cão participa de uma circunstância totalmente situada fora das matrizes realistas, tão defendidas por Lukács. Agora, valioso mesmo é que — e aqui concentra-se o ponto-limite da ironia — György, por mais interesseiro que se apresente em torno das próprias necessidades, se faz o guia para o perdido compositor. Embora o gesto amistoso não signifique uma reconciliação com uma figura de sua implicância, permanece certa compreensão sempre tão cara aos embates ideológicos:  homens, homens, ideias à parte.
 

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