A cena viva da poeta Fiama Hasse Pais Brandão
Por Márcio de Lima Dantas
A escritora Fiama Hasse Pais Brandão nasceu na cidade
portuguesa de Carcavelos, numa chácara, no dia 15 de agosto do ano de 1938.
Residiu em Lisboa até 1992, voltando a morar em um sítio. Faleceu em consequência
de complicações advindas da doença de Parkinson, a 19 de janeiro de 2007, sendo
sepultada no Cemitério dos Prazeres, em Lisboa. Teve como primeiro esposo o poeta Gastão
Cruz, pai dos seus dois filhos; viveu, em seguida, 12 anos com Veiga Ferreira.
Trabalhou como bibliotecária-arquivista durante 20 anos no Centro de Estudos
Linguísticos da Universidade de Lisboa. Sua gentileza e generosidade era
conhecida entre poetas e tradutores, nunca se negando a colaborar com os
espíritos que buscavam engrandecer a cultura e a arte.
Contemplada com
inúmeros prêmios literários, destaca-se por ter abrangido um grande leque de
gêneros literários, tornando sua obra extensa e multifacetada, como se fora um
caleidoscópio capaz de organizar, quando de um giro-olhar, muitos aspectos
pertencentes às formas de sentir e representar do nosso tempo, ou seja,
cristaliza através de modos literários a complexidade do espírito da nossa
época; quer seja através de um esquisito hermetismo fragmentado, no qual
justapõe imagens que desafiam o leitor, quer por meio de uma poesia de fatura
mais discursiva e eivada de clareza e elegância.
Dotada de um semblante sereno, olhar que é um misto de
ingenuidade infantil misturado com o pejo desafiador das personalidades
autênticas e plenas de autoridade e segurança do seu real valor, Fiama imprimiu
a tudo que escreveu a assinatura de uma extrema consciência do seu lugar
histórico, do seu ofício de gente que lida com a arte da palavra,
reconhecendo-se como devedora de tudo que a precedeu ao longo da História da
Literatura, coisa rara entre seus pares, quer seja engendrando belas releituras
de obras e autores, quer imprimindo (inter)textos alheios de maneira velada ou
parafrásica no corpo da sua escritura.
Poeta, dramaturga, ficcionista, ensaísta e tradutora
(Brecht, Artaud e Novalis). Frequentou a secção de filologia germânica da
Faculdade de Letras de Lisboa (assim como Fernando Pessoa, não chegou a
terminar o curso), e o seu nome costuma ser associado ao grupo Poesia 61 (Maria
Teresa Horta, Luiza Neto Jorge, Gastão Cruz e Casimiro de Brito), espécie de revista-movimento, com apenas um
número publicado, no âmbito do qual publicou um florilégio com apenas quatorze
poemas intitulado Morfismos. Mas já antes publicara Em cada pedra um voo
imóvel (1957) e O aquário (1959), dois títulos mais tarde retirados da obra
reunida. Nos últimos quarenta anos sua
obra encontra-se dispersa em inúmeras revistas literárias, como Seara nova,
Cadernos do meio-dia, Brotéria, Vértice, Plano, Colóquio/Letras, Hífen,
Relâmpago, Phala etc. Traduzida em vários idiomas e representada na
generalidade das antologias de poesia, Fiama recebeu nos últimos vinte anos os
mais importantes prêmios literários portugueses: Adolfo Casais Monteiro, PEN
Clube, Associação Portuguesa de Críticos Literários, dentre tantos outros.
Provida de uma personalidade artística inquieta, a escritora
necessitou de várias formas integrantes da tradição da história da literatura
para como que apascentar essa imanente busca subjetiva das formas ansiando
tomar forma artística. Contudo, parece ter sido a poesia o lugar por excelência
no qual se manifestou com mais propriedade a singularidade do seu ser. É nesse
sentido que a experiência poética vai se inscrever como manifestação ávida de
explorar regiões pelágicas do indivíduo, por meio do manuseio de topoi concernentes
à dimensão da intimidade pessoal, que, nada mais é, ao que parece, a vida
elegendo alguém datado historicamente, situado algures, para não apenas
cristalizar em objetos de arte a intimidade e a gramática da sua personalidade
distinta da maioria, mas principalmente para toda uma série de conteúdos
essenciais presentes no tempo que se verga do início da década de 1960 até o
primeiro decênio do século XXI, anos que se configuram como época de transe e mutações,
definidores para uma espécie de feição definitiva que tomaria o que conhecemos
como civilização, em sua marcha inexorável para o futuro.
Com efeito, não há
como perceber uma prodigiosa força emanada dessa poesia ímpar, que parece ter
advindo não somente de uma alma quebrantada por estados de potência ansiando
formas para vir a se materializar, mas principalmente pelas despóticas forças
que cada tempo histórico detém; e que por um meio ou outro ritualiza seus mitos
presentes desde sempre no imaginário, expressando-se nas representações sociais
dispersas no cotidiano ou cristalizando-se em artefatos artísticos, através de
uma personalidade tipicamente literária, destacando-se dos seus pares em
determinado tempo vivenciado por uma coletividade.
Sua poesia, pouco conhecida, muito menos estudada, no
Brasil, encontra-se organizada, até 1991, no livro Obra breve, vindo depois Epístolas e memorandos (1996), Sob o olhar de Medéia (romance, 1998), Cenas vivas (2000), As fábulas (2002). Poucas vezes a poesia em língua
portuguesa atingiu um registro estético
tão elevado, logrando êxito em belas sínteses entre linguagem artística e
reflexão, conseguida por meio de inumeráveis recursos expressionais e dando
atenção a referentes que a automação cotidiana passa ao largo.
A trajetória poética de Fiama Hasse Pais Brandão é um grande
exemplo de quem escolheu a literatura em detrimento da vida, embora tenha tido
acesso a grandes oportunidades no meio artístico português. Escolhendo a
reclusão física e o exílio na comarca das palavras, optou plasmar em linguagem
o que mais parecia apreciar: o ato de contemplar, ver, olhar a dinâmica da vida
no seu entorno, com uma notável vontade de cartografar o âmbito do que pulsava,
do que esplendia, do que nos espelhava. Eis a mulher e a obra.
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