Sobre Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo

Por Rafa Ireno


Conceição Evaristo. Foto: Mario Ladeira


A questão de Conceição Evaristo não se liga somente à tarefa de contar uma história desconhecida, sua escrita corresponde ao esforço de encontrar uma expressão capaz de implodir um projeto político de nação que, sistematicamente, apaga, silencia, oculta, modifica, violenta, a História do Povo Negro no Brasil. A literatura seria uma das principais armas para tal objetivo. A ânsia de mudança e de demolição da ordem vigente é acompanhada, na via inversa, por um desejo de reconstrução, de harmonia, da tentativa de costurar o tecido da memória destruído pela opressão e violência do passado brasileiro. Coisa que concede certo caráter utópico para esta escritora afro-brasileira no sentido de criar esperanças para o futuro. 

Daí, o romance Ponciá Vicêncio se preencher de elementos bem demarcados como, por exemplo, campo e cidade1, branco e negro2, meretrício e delegacia etc. Ao mesmo tempo em que é o signo da contradição que rege as linhas do livro, a problematização do modo de contar a história que marca a narrativa, principalmente, se contrastamos as dicotomias e os lugares-comuns à complexidade psicológica dos personagens como Soldado Nestor, Belisa, o Marido de Ponciá, Nênga kainda entre outros – isto, que parece um método de Conceição Evaristo, atinge um de seus ápices na cena em que Lundi reconhece os trabalhos de cerâmica3 da irmã e da mãe – Maria e Ponciá Vicêncio – numa exposição, mas, estranha o nome do proprietário escrito na placa “Dr. Aristeu Pena Forte Soares Vicêncio”; pois, neste caso, o senhor-branco é o desconhecido e não o escravo sem nome, nisto há uma inversão simbólica, uma mudança de perspectiva na representação da história, de quem conta a história, e este simples gesto pode provocar revoluções um dia, mas talvez não hoje.

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Em certo momento, a narradora nos mostra um pensamento revestido de tristura de Ponciá, refletindo o fato de seus sete filhos não terem vingado e, então, conclui que foi melhor assim:

“Valeria a pena pôr um filho no mundo? Lembrava-se de sua infância pobre, muito pobre na roça e temia a repetição de uma mesma vida para os seus filhos. O pai trabalhava tanto. A mãe pelejava com as vasilhas de barro e tinham apenas uma casa de pau-a-pique coberta de capim, para abrigar a pobreza em que viviam. E esta era a condição de muitos. Molambos cobriam o corpo das crianças que até bem grandinhas andavam nuas. Entretanto, assim que as meninas cresciam um pouco, as mães providenciavam panos para tapar-lhes o sexo e os seios. Crescera na pobreza. Os pais, os avós, os bisavôs sempre trabalhando nas terras dos senhores. A cana, o café, toda a lavoura, o gado, as terras, tudo tinha dono, os brancos. Os negros eram donos da miséria, da fome, do sofrimento, da revolta suicida. Alguns saíam da roça, fugiam para a cidade, com a vida a se fartar de miséria, e com o coração a sobrar esperança. Ela mesma havia chegado à cidade com o coração crente em sucessos e eis no que deu. Um barraco no morro. Um ir e vir para a casa das patroas. Uma sobras de roupa e de alimento para compensar um salário que não bastava. Um homem sisudo, cansado, mais do que ela talvez, e desesperançado de outra forma de vida.” (p. 82)

Uma das características que Vô Vicêncio possuía, que Ponciá herda, era o seu riso-choro, ele não ria e nem chorava e ria e chorava; além desta imagem paradoxal sustentar a situação insolúvel da “escrevivência” de Conceição Evaristo, ela ilustra algumas resoluções estéticas da escritora, ora, pois não seria os termos “fartar de miséria”, “donos da fome” ou ainda “revolta suicida” sinônimos do “chorar-rir” dos Vicêncios? 




A presença/ ausência de Vô Vicêncio, talvez, represente o âmago da tensão no romance, essa figura traz consigo os rastros quase totalmente perdidos do passado, a violência da escravidão, a ancestralidade que sobrevive em nós, às vezes, como trauma. Tudo fazendo a escrita oscilar entre um registro utópico/idealizado, por exemplo, no final do romance que cumpre as palavras da mística Nênga Kainda com o reencontro da família, e noutra ponta, um certo mormaço, abafado, claustrofóbico, da estagnação de Ponciá, sempre parada na janela4. No livro, essa tensão resulta em trechos fortemente melancólicos:

“De que valera o desespero de Vô Vicêncio? Ele, num ato de coragem-covardia, se rebelara, matara uns dos seus e quisera se matar também. O que adiantara? A vida escrava continuava até os dias de hoje. Sim, ela era escrava também. Escrava de uma condição de vida que se repetia. Escrava do desespero, da falta de esperança, da impossibilidade de travar novas batalhas, de organizar novos quilombos, de inventar outra e nova vida.” (p.83)

Trata-se de uma passagem valiosa para se pensar, por um lado, os problemas sociais das persistências das misérias, dos ciclos econômicos que reproduzem a pobreza por gerações. O teor pessimista desta passagem provoca quase que inevitavelmente uma autorreflexão – um choque para se repensar os movimentos sociais internamente do Brasil.

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A contradição invade, inclusive, a minha leitura de Ponciá Vicêncio (2003). De um lado, houve um desamparo frente aos diálogos internos e externos da obra, ou seja, percebe-se que esta ou aquela passagem estabelecia relações específicas com a trajetória da mulher negra no Brasil, que transborda de ponta a ponta o livro, uma experiência que não é a minha. Porém, no caminho inverso, havia o reconhecimento daquele mundo: já ouvi e vivi coisas parecidas na periferia, sempre, terrivelmente acompanhada por aquela cruel e sempre inabalável fé cotidiana de que as coisas vão melhorar um dia, mas não hoje. Para além da impressão pessoal, decidi abordar isto, pois, é um grande romance e considero que a sensação bifurcada da leitura não se restrinja a mim, isto é, seja um efeito provocado intencionalmente por Conceição Evaristo, um efeito de sua “escrevivência”, talvez, um outro desdobramento da tensão descrita acima, do paradoxal, do riso-choro, trazendo em si a ânsia de transformação da realidade material brasileira.

Notas

1 Binômio caríssimo ao se pensar o Brasil no século XX, por consequência, para a formação de uma literatura brasileira.

2 A divisão reforçada entre a terra dos brancos, em que o negro somente trabalha, enquanto, mora em outro lugar – mantém sem dúvidas um diálogo com Quarto de despejo de Carolina Maria de Jesus, pois, ela fazia essa separação constantemente em seu diário.

3 A própria metáfora da cerâmica diz muito sobre o romance, o trabalho de artesanato tem uma dimensão prática, econômica mesmo, pois, o barro era de fácil acesso para Ponciá, ainda que a água e a terra fossem do proprietário, o trabalho era dela, a maneira de modelar e as horas gastas ali era uma atividade individual. Em certo momento, porém, vê-se na exposição que a prática não era apenas de Ponciá, pertencia a uma cultura negra. O ir e vir do micro para o macro é característico de toda a narrativa. A presença do Capital (proprietário da terra, exploração, divisão nítida entre branco e negros) se manifesta – no entanto, captura-se aqui também uma dimensão afetiva, simbólica, no gesto da personagem modelar constantemente um barro invisível.

4 Há um choque entre dois círculos no romance, isto é, um primeiro que se relaciona à conselheira que esclarece os caminhos dos personagens; aos ancestrais presentes nos passos dos netos, ao comportamento de Ponciá repetidora dos gestos do avô sem o conhecer direito e ao reencontro final da família, em outras palavras, do ponto de vista da narrativa, está-se no domínio do mito; por outro lado, em oposição, aparece o mundo da exploração, do Capital, que provoca também um círculo reprodutor de miséria, porém, sem respostas…

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