Quéreas & Calírroe, de Cáriton de Afrodísias
― Safo
A publicação de uma forma textual
de designação incerta situada a partir do século I d. C. em grande parte na
zona periférica da Grécia romana costuma ser tratada com o elo entre as
primeiras formas antigas de narração e as que se seguiram até o aparecimento do
romance. Este cânone é bastante limitado e os motivos disso são os mais variados;
o lugar marginal de escrita e circulação dos textos é um deles e falamos também
sobre objetos de certo apelo popular, contrapostos, portanto, às expressões da
epopeia e da tragédia, dominantes desde o período arcaico e clássico.
Adriane da Silva Duarte, tradutora
brasileira de Quéreas & Calírroe, em “Dez textos para conhecer o romance antigo”
estabelece a possibilidade de agrupar os textos atribuídos ao lugar de gênese
da forma romanesca em pelo menos três categorias: uma formada por narrativas de
amor e aventura ou do amor ideal e circunscrita a textos escritos em grego,
como é caso exemplar os livros de Cáriton; outra formada por narrativas
cômico-realistas, de expressão latina; e, uma produção que dispensa as duas
temáticas, o uso da história de amor e do cômico, filiada aos modelos da
paródia, mais próxima do realismo das criações latinas.
Desses, os textos do primeiro grupo
são os que melhor se aproximam do que se convencionou a partir do advento da
primeira modernidade como romance, embora, os elementos que conformam as
narrativas das outras duas linhas não deixem de colaborar ricamente com essa
forma de domínio há mais de cinco séculos. Tal como pontua Maria de Fátima
Silva, o enredo se organiza por momentos de relevo e suspense na evolução do
tema, “semelhante ao que se procura conseguir, nos nossos dias, com a série
novelesca de auditório alargado e diário.” A narrativa obedece a um movimento
tripartite da intriga, marcadamente pelo amor repentino e correspondido que
leva os amantes a enfrentar uma série de obstáculos e aventuras separados um do
outro até que no momento final se realize o reencontro concretizando-se o que
estava designado pelo destino desde sempre.
O conjunto de oito livros
atribuído a um desconhecido autor que se designa na enunciação narrativa como
Cáriton forma parte entre os cinco títulos conhecidos das criações deste
primeiro grupo; os outros são: As efesíacas, de Xenofonte de Éfeso, Dáfnis
e Cloé, de Longo; Os amores de Leucipe e Clitofonte, de
Aquiles Tácio; e As etiópicas, de Heliodoro. De todos eles, Quéreas
& Calírroe é o mais antigo e o que preenche os traços citados antes en
passant. O drama amoroso que, por capricho dos deuses, arrastam os envolvidos
para uma série de padecimentos, como se fosse necessária certa provação capaz
de justificar o merecimento divino. Antes da publicação brasileira editada pela
Editora 34, os livros de Cáriton estavam ao alcance dos leitores de língua
portuguesa a partir de traduções realizadas em Portugal ― a primeira delas de 1996 ― e
de onde, aliás, é possível encontrar boa parte desses títulos.
Embora possamos perceber que esses
textos dialogam continuamente com a forma épica e de alguma maneira com forma
trágica ―
seja no continuum das ações para a aventura e a peripécia, seja nos
intertextos com a Ilíada e a Odisseia e da qual esta última
parece o ser o modelo ideal para Cáriton, seja ainda na contínua interferência dos
deuses por entre os acontecimentos terrenos ― os distanciamentos em relação
às formas clássicas são recorrentes. No caso dos livros que formam Quéreas
& Calírroe, logo reparamos na liberdade formal e estrutural da
narrativa, exigência da prosa e mesmo das desobrigações em relação à oralidade que
se impuseram com a escrita, no deslocamento no interior do patético,
para o tom dramático das histórias de amor, bem como a agilidade e a objetividade
com as quais o narrador compõe os acontecimentos, que, embora mediados por
circunstâncias históricas, angariam um sentido só possível no âmbito da ficção,
tais como os acidentes temporais.
Outra modificação excepcional está
no papel desempenhado pelo herói do drama, agora uma clara referência, por
assim dizer, que ignora o aspecto coletivo para se centrar no embate entre indivíduo
e mundo. Ainda que, de alguma maneira isso se vislumbre em poemas como a Odisseia,
que é quase uma celebração ao sedentarismo quando olhamos pelo lado contrário
todo périplo aventureiro de retorno ao lar — é indispensável sublinhar
que, na epopeia, Odisseu é Ítaca, uma vez que, enquanto perece o herói, perece o
seu mundo por inteiro. O que não é o caso em Quéreas & Calírroe. Toda
a sucessividade de desencontros instaurada imediatamente ao primeiro estágio da
realização amorosa em nada determina nas eventuais alterações na ordem coletiva;
apenas os indivíduos tomados pelas forças de Eros ou Afrodite são afetados, padecem
das modificações interiores e exteriores dessa condição.
Os dois jovens que se apresentam
desde o título desses relatos de Cáriton pertencem a duas famílias abastadas de
Siracusa, ainda que a da amante se revista de maior fama, devido aos primeiros grandes
feitos de Hermocrátes na liderança dos gregos sicilianos contra Atenas. O pai
de Quéreas sempre se descreve como um pouco abençoado pela Fortuna e desenvolve
qualquer embate de posição social com a casa de Calírroe, mas sob os auspícios
de Afrodite quaisquer rusgas ou discrepâncias não se tornam empecilhos para a
realização amorosa; a deusa é mesmo capaz de refazer o curso de uma guerra em
prol da felicidade de amantes há muito em batalha por suas obsessões. De
maneira que, tão logo se avistam rapidamente nas celebrações à deusa, são
envolvidos e aceitos pelas duas casas, mesmo que alguma ressalva não deixe de
ser demonstrada indiretamente pelo pai do noivo em alguns momentos da narrativa:
nos instantes anteriores à confirmação das bodas e na decisão de Quéreas em se
deixar levar apenas pela consciência de recuperar a amada sem uma certeza sobre
o destino da amada.
Acossado pela força do ciúme ―
afinal a beleza da amante se equipara as das mais belas do Olimpo,
confundindo-se com a própria Afrodite ―, Quéreas cai ingenuamente nas teias armadas
por um grupo de outros pretendentes de melhor condição e posição social.
Atenta contra a vida de Calírroe e eis que, tomado o homem da certeza de ter
matado a mulher da sua vida, se instaura a separação entre os dois e se
inaugura todas as suas desditas: o desterro, a prisão, a escravidão, os
instantes-limite da morte, o embate jurídico, o duelo, tudo sempre ao custo das
investidas repentinas de Eros e Afrodite que praticamente transformam a heroína
numa súcuba de todos homens de relevo que passam por ela.
É notável que a beleza de Calírroe
encarna um complexo embate que, se não a vitima, esgarça os limites da força. Embora
essa condição seja igualmente reiterada em Quéreas, belo como Aquiles, Nereu,
Hipólito ou Alcibíades, recai sobre a mulher o sucedâneo da condena e da
salvação, afinal, é graças à encarnação da própria Afrodite que se invalida o
rebaixamento de sua posição social, mesmo depois de vendida como escrava para o
sátrapa da Jônia, mas é isso que a empurra para um enredo feito de artimanhas
masculinas todas interessadas no amor. Ou seja, o que Cáriton explora ao máximo
são os desígnios de Eros, ator ardil em estabelecer aleatoriamente os enlaces
amorosos e por isso o sofrimento dos amantes, e sua mãe Afrodite, deusa da
beleza e da sexualidade, bem como as interferências de Fortuna, designada aqui
como divindade adversa. Para as duas divindades do amor a ordem é o instante, o
que obriga os tomados de suas forças a perecem num carrossel de desordens até que
outra vez o seu curso realinhe os heróis com o primeiro amor.
Essas observações, portanto,
reiteram aquela qualidade demonstrada mais acima: a nova forma narrativa
consegue capturar certa instabilidade individual, privilegiando o seu aspecto
sentimental, o que é naturalmente impraticável na epopeia; mesmo que nesta
forma clássica se infiltre interferências de corte lírico, o que sobrepassa é a
estabilidade da força. Neste mundo vislumbrado por narrativas como as de
Cáriton, instável e fortuito, o amor e seus desígnios ― isto é, o embalo sentimental ― é
o valor e medida universal capaz de melhor expressá-lo. Em busca daquela
unidade perdida, os heróis se enovelam na perseverança de suas crenças individuais:
o amor que os lançam em périplo é também, no fim do itinerário, o reencontro
com a vida de tranquilidade e felicidade contínuas.
Esse destino para uma vida
sedentária, feita do repouso e da progressiva conquista material pelo familiar,
constitui de alguma maneira o ideal retorno a um tempo anterior à guerra, ou à
geração da força. É notável nesse sentido a citação ao caso envolvendo outra
vez uma mulher de formosura excepcional que resultaria na guerra de Troia. A
uma altura em que Mitrídates e Dionísio ― incitados pela acusação deste sobre a
tentativa daquele de seduzir a amada Calírroe são chamados ao rei da Pérsia para
prestar esclarecimentos ― o governador dos jônios reflete sobre o
episódio do rapto de Helena por Páris. Mais que o ciúme, essa sombra aterrorizante
capaz de arrastar Dionísio para uma rede de mentiras que o leva a acreditar no
fim definitivo de Quéreas, o que se teme é a ruptura com uma ordem conseguida depois
que o sátrapa se viu quase entregue ao Hades aquando da morte de sua primeira
mulher.
Para além do que observamos até
agora, vale listar uma variedade de aspectos recorrentes em Quéreas &
Calírroe que coloca este livro no lugar de protótipo do romance: as
aproximações e as propositais alterações da História para atender as
necessidades da história; os estreitos diálogos entre uma tradição literária e
o anedotário popular; ou mesmo certa inclinação para o cronístico ao revelar os
comportamentos ou as situações triviais dos diferentes povos que formavam o vasto
mundo dos impérios greco-persas.
Acrescente-se a isso as relações
sociais, as intrigas e os conchavos formados no interior do agrupamento
familiar e influenciadores das decisões políticas, o ciúme, a exploração do
homem e suas primeiras insurgências, o estabelecimento e funcionamento das
leis, a cobiça, a inveja, os múltiplos interesses particulares tão nossos
contemporâneos. E se refaz a máxima segundo a qual não há nada do que vivemos
como novidade que os antigos já não soubessem ou praticassem. Logo, é valiosa a
aparição, mesmo que tão tardia, dessa obra numa tradução brasileira; que não tarde
as de outros livros dessa tradição, que, certamente, muito têm a acrescentar.
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