Mito e História no vórtice dos tempos: O dia dos prodígios, de Lídia Jorge
Por Guilherme Mazzafera
A leitura de O dia dos prodígios (1979), primeiro romance da
escritora portuguesa Lídia Jorge, leva-nos à percepção de um tempo expectante,
no qual as camadas mítica e histórica resvalam-se sem mútua compreensão. Os portentosos
acontecimentos que tomam corpo na narrativa não encontram interpretação
possível na exclusividade do mito ou da história, ecoando nas consciências
individuais dos personagens, cuja compreensão de si mesmos enquanto sujeitos está
profundamente atrelada ao entendimento da temporalidade que os cerca.
O romance nos apresenta o povoado de Vilamaninhos, local de
acontecimentos singulares e exegetas limitados. Centrado em três domicílios
principais, o reino encastelado de Carmen Rosa e Carminha, o lar de José Jorge
Jr e Esperancinha, e a casa de Branca e José Pássaro Volante, a obra discorre
sobre a convivência entre esses personagens e com outros habitantes do povoado
diante das ocorrências inusitadas – o aparecimento da cobra voadora e a chegada
dos soldados da revolução, sobretudo –, assim como sobre suas relações e
expectativas para com os demais forasteiros. A inegável ambiência mítica, no
entanto, jamais descamba para a alegoria pura e simples. Trata-se de uma
representação, uma “demonstração”, como a autora declara em seu prólogo, envolvendo
personagens que falam em constante dissenso, polifonia incorporada graficamente
a certas passagens do romance pela divisão das linhas em duas colunas que
apontam para a simultaneidade das falas, estratégia que reforça a recuperação
da oralidade igualmente presente na opção por usos coloquiais (‘fazi’,
‘engani-me’) e no próprio universo ficcional de Vilamaninhos, em que as
estórias e maravilhas ainda resistem.
O romance perfaz uma poderosa crítica de um tempo estéril, mas
desejante, fiel ao messianismo português engessado na figura de D. Sebastião e
incapaz de compreender o momento histórico que vive – a ocorrência da Revolução
dos Cravos em 25 de abril de 1974, que põe fim a quatro longas décadas de
ditadura. Como consequência, tal travejamento na leitura da história forja um
impasse profundo na constituição dos indivíduos, inaptos para atuar como
sujeitos históricos, estando relegados à inane espera por uma solução
“forasteira”. Quando esta parece finalmente advir, promove um grau ainda maior
de dissonância pela impossibilidade de diálogo: os habitantes de Vilamaninhos esperam
que os soldados da revolução sejam capazes de lhes explicar as razões da
aparição da cobra, ou, no mínimo, que sejam eles mesmos uma consequência direta
de tal manifestação. Tem-se aqui um problema, uma lacuna hermenêutica: os eventos
constituem-se como fatos, mas não como experiências. A experiência pressupõe
certo grau de interpretação e, consequentemente, de certa adesão da voz
narrativa à causa que narra. Mais do que isso, pressupõe como intérpretes seres
já enformados pela passagem do tempo, que os torna sujeitos, ainda que em
perpétua luta com seus demônios interiores.
Como parte de sua fatura formal, o romance busca conciliar a
adesão e o desdobramento do narrador em relação às personagens, procurando
encontrar um ponto de equilíbrio entre os dois movimentos. A assimilação total
pode conduzir a uma débil caricatura; o desdobramento completo pode ocasionar
uma diferença que produz artificialidade e desequilíbrio. Assim, o narrador não
se irmana completamente aos personagens, mas também não assume um ponto de
vista olímpico, inadequado para dar voz aos que não tem.
Majoritariamente oral, o universo de Vilamaninhos é
mitologizado como forma de desconstrução histórica, problematizando verdades
até então imutáveis em seu contexto externo. A sede de sentido e a incapacidade
de leitura do mesmo coexistem nos personagens, que esperam que os que vêm de
fora sejam capazes de ler os sinais e interpretá-los: “E Jesuína Palha disse.
Dizem que por onde passam leem os sinais como em livro aberto. E eu espero.”
A instauração do tempo mítico, à custa da elisão histórica,
não parece dar conta de recuperar uma experiência de totalidade. A imagem do
ovo, prenhe de associações mitológicas, do fiat genesíaco à circularidade
perpétua, mostra-se aqui como símbolo de uma recursividade baldada: “A povoação
vai ficando um ovo emurchecido. Que fede, gorando, não gera.” Mais adiante, a
própria esperança converte-se em imperfeito e putrefato ouroboro: “Tudo pousado
e postado como de propósito, imagem da esperança cega que de tanto esperar se
alargou a ponto de formar um novelo, coisa enrolada sobre si, comida e defecada
a esperança.”
Maus hermeneutas, a leitura feita pelos habitantes da aldeia
dos acontecimentos singulares é rasa e necessariamente causal, em que os pontos
finais reforçam o simplismo da aritmética empregada: “O sargento. Teria sido
anunciado pelas chuvas. E as chuvas anunciadas pelas moscas e pelo soldado. Mas
as moscas, o soldado, a chuva, o vento e o sargento, o bem e o mal. Segundo a
Palha. Tudo foi anunciado pela cobra.” Os elementos bíblicos aparecem
disseminados no texto em sua própria figuração, posto que cada acontecimento
parece requerer uma interpretação transcendente que se inclua em uma dimensão
mais ampla do que a restrição espacial de Vilamaninhos permite. Assim, a
aparição da cobra é descrita dramaticamente como causadora de uma cena na qual
as pessoas fugiam em desespero, “[...] certas de terem assistido ao grande
prodígio dos tempos modernos. Porque um bicho réptil voar de vísceras de fora,
só deveria ter acontecido nos tempos bíblicos, muito e muito antigos. No
princípio do mundo”.
Em um sentido mais profundo, nota-se no romance certa
presença de elementos de realismo mágico, marcadamente pela ampliação gradual
da autonomia das personagens oprimidas, que adquirem progressivamente uma voz.
Isso ocorre em especial com a personagem Branca, que adquire poderes
clarividentes que lhe permitem reverter a situação conjugal assimétrica e
opressiva que vivenciava. O desanuviamento de sua visão possui uma significação
mais profunda no interior do romance, representando uma conquista sobre a
instância temporal, que gradativamente perde o seu caráter imprevisível e de
portadora de verdades ocultas, mas não deixa de impor seu óbolo à personagem,
para quem “...a pouco e pouco deixou de haver presente. O tempo é um ovo de
galinha, e eu posta, Pássaro, num ponto movediço de viscosidade. Vendo um
redondo. Porque no fundo, tudo é redondo.”
Paulatinamente, os demais personagens começam a compreender
que a vida é uma experiência descontínua, que “Nada aconteceu. Não há sinais.
Ai da gente. E Manuel Gertrudes disse. Estou em crer que tudo aparece
desligado. Os dias afinal vêm por acaso”. O abandono da causalidade coercitiva lhes
permite uma nova compreensão de si, afastando-se da concepção escatológica do
tempo, em que todos os acontecimentos se integram em uma dimensão
transcendente, invariavelmente encimados por um evento final, decisivo.
Trata-se, em certo sentido, de um abandono do tempo bíblico, que é
escatológico, e do mitológico, que é circular e reiterativo, em prol de uma
noção temporal em que o presente adquire maior relevância, como na fala final
de Macário, trovador da aldeia: “Oh gente. Ouçam aqui o dó.”
Como diz Roland Barthes (2009, p. 200), “Longínqua ou não, a
mitologia só pode ter um fundamento histórico, visto que o mito é uma fala
escolhida pela História”. É esta compreensão do presente como tempo de ação,
aliada à ideia de que as instâncias mítica e histórica não necessariamente se
repelem, mas se conjugam – uma vez que o mito por si acaba por conduzir a uma
recursividade vazia –, que permite aos personagens um vislumbre de perspectiva
na qual os sentidos da experiência humana não se localizam em instâncias
temporais definidas, mas são construções, forjaduras instáveis em uma vida
descontínua que, rosianamente, como se lê no romance, todos “Estamos começados
e não acabados, e o acabamento é obra de cada um da gente.”
Referências
BARTHES, Roland. Mitologias. Tradução de Rita Buongermino,
Pedro de Souza e Rejane Janowitzer. Rio de Janeiro: Difel, 2009.
JORGE, Lídia. O dia dos prodígios. Lisboa: Publicações
Europa-América, 1990.
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