Marcas de uma terra queimada: notas sobre o Caderno de memórias coloniais de Isabela Figueiredo
Por Flaviana Silva
Pertencer a algo é mais do que
estar, é a ousada decisão de ser. A sensação que fica após concluir a leitura
do Caderno de memórias coloniais de Isabela Figueiredo é de que as palavras da
leitora serão apenas um leve ruído, nada traduz a experiência de sentir essa
narrativa “em carne e osso”. A obra captura a atenção e traz consigo temas
fortes e caros para a Literatura portuguesa contemporânea, a narradora é filha
de colonos e enuncia a sua experiência como observadora da relação entre os
portugueses e os pretos de Moçambique, o que narra é muito mais do que a mera
descrição dos fatos, ela expõe as feridas escondidas do colonialismo e não se
recusa a se colocar como questionadora do seu contexto.
O que não pode ser ignorado é que
a narrativa é um espelho que elucida experiências da vida de Isabela Figueiredo,
o que não define a totalidade da experiência já que a própria criadora afirma
que entre o pai da narradora e o seu, prefere ficar com a imagem do seu
pai, a que ela realmente guarda, com afeto e saudade. O que resta é ter em mente
a grande contribuição desse romance, a voz da experiência sempre será bem-vinda
em um tempo de achismos. A personagem ao narrar as situações vivenciadas na
infância deixa às claras a sua vivência ao observar como os pretos eram tratados
na colônia e em como essa situação de exploração a incomodava de diversas
maneiras; a ponte para essa visão precoce da adolescente é a interação com o
seu pai e o contraste entre o papel desempenhado por ele sobre a vida dos
pretos, eis a figura em destaque: o colonizador.
O pai representa o colonialismo de
maneira enfática, a todo instante ele é brutal, forte, grandioso e sem pudores quando
está em diálogo com os pretos; em diversas passagens o homem é o que usa roupas
sempre brancas. Ter as camisas em contraste com a cor da terra não é algo sem
sentido, essa descrição escancara a noção de dominação e superioridade. É
interessante observar que o detalhe da roupa branca é perpetuado nos trechos
que apresentam a família. O pai é a grande representação de toda a soberania
sobre seus trabalhadores, ele é o que administra ordens e reprime, bate e
reforça o que para ele é a incapacidade humana dos negros, os comparando sempre
com animais domesticáveis. A mãe é a que tem o dever de mostrar para a filha o
seu propósito; jamais se relacionar com os pretos é a regra, dessa maneira
seguirá um caminho de felicidade e não manchará o nome da casa.
Isabela Figueiredo. Arquivo Pessoal / Reprodução. |
Muito mais do que uma relação familiar,
a interação da menina com seus pais revela uma amostra de seu silenciamento, já
que nada do que ela pensa pode ser compartilhado com a família; ela não
concorda com tudo que seus olhos alcançam e por isso, ao descobrir os livros e
tudo o que o conhecimento oferece cada vez mais torna-se inimiga do pai; apesar
da tristeza e do conflito interior, ela o ama incondicionalmente e sempre nutre
por ele um afeto inexplicável; ela está sempre entre questionamentos sobre onde
é o seu lugar. Não é difícil perceber
que a nossa narradora se encontra dividida entre o conflito de querer o bem dos
seus e ao mesmo tempo saber do mal que a dominação representa. Diante de várias
questões sobre pertencimento, ela demonstra sentir necessidade de encontrar um
verdadeiro lar.
Mesmo sendo esperta, a personagem
ainda desconhece muitas questões relacionadas ao corpo. Em sua família tudo
parece ser um grande tabu, a moça branca não deveria ter acesso a aquilo que
podia acabar com o seu caráter de menina recatada. Mas, mesmo com essas intromissões
em sua educação, ela vive uma constante busca para descobrir os mistérios da
sexualidade e o que isso significa para os colonizados, em que instância essas
questões incluem sua família e o porquê de esconderem esse tema de seus
ouvidos. As suas descobertas fazem desse romance uma organização singular sobre
a construção da personagem em si; essa ordenação que vai evoluindo no decorrer
da obra oferece ao leitor uma visão clara sobre quem é essa figura, ela é uma
aventureira de si mesma, dona de suas ambições. Apesar das limitações, não
hesita em questionar todo o horror que acontece ao seu redor, ela está em uma
terra de contradições.
Em Lourenço Marques, onde a
história é construída, os colonos eram os detentores do poder e possuíam toda a
liberdade para utilizar os pretos como mão de obra barata; a menina acompanhava
seu pai em passeios de negócios e assistia quando os pretos apanhavam por terem
reclamado sobre o valor injusto do pagamento. Mesmo tidos como
preguiçosos, era ideal ter um preto como empregado já que os brancos cobravam
mais caro; a educada submissão, o serviço com silêncio e respeito era algo
estimado para o colono.
Não é por acaso que esse romance
toca nas feridas sem ter papas na língua; é crua a sua forma de narrar, porém
bela e instigante já que o leitor é guiado como se estivesse de mãos dadas com
a narradora. O romance também mostra a visão que os brancos destinavam para as
mulheres negras: elas eram consideradas como cadelas destinadas ao sexo,
enquanto as mulheres brancas eram tímidas e destinadas a usufruir o privilégio
de administrar o lar; jamais uma mulher negra teria o mesmo corpo e perfil
social de uma filha de colono. Diante disso, a própria menina se
questiona sobre sua imagem, porque não se sente pertencente ao seu grupo e não
entende a grande desigualdade presente na colônia. Em diversas vezes sonha
em conhecer mais da cultura dos pretos e praticar atividades que coincida com a
vivência deles; em uma dessas experiências, ao vender mangas na rua, a menina
sente que tem a marca daquela terra:
Uma branca não vendia mangas a não
ser por grosso, a outros brancos que as distribuíssem. Uma branca não vendia
mangas no chão, a porta. Mas eu era colonazinha preta, filha de brancos. Uma
negrinha loira. E a colonazinha negra que eu era vendia montezinhos de mangas
do lado de fora do portão da machamba.(...) vender mangas ao portão, escondida
da minha mãe, era uma desobediência que não compreendia nem resistia a
praticar. Era ser o que tinha nascido”. (FIGUEIREDO, 2009, p. 60).
Essa
identificação com os pretos não se resume apenas a um trecho da obra, ela sente
a necessidade de reconhecer o mal do colonialismo. O Caderno de memórias
coloniais traz um discurso límpido sobre a realidade vivenciada pela
descolonização; seu enredo se situa no contexto em que os colonos perdem o
controle e são perseguidos e, nessas circunstâncias, a menina sabe muito bem de
toda a realidade que o ocorrido traz consigo; ela é enviada para Portugal para
fugir da guerra e agora é reconhecida como uma mera retornada pelos que vivem na
metrópole.
Ao chegar na metrópole, não encontra uma
identidade para si, o desterro recai sobre si como uma marca que terá que
carregar, amar uma terra que nunca foi sua é estar sempre em lados opostos. A
grandeza desse romance está em dizer sem receios, é o ato de escrever para o
mundo o que não cabe dentro de si, é dizer a própria verdade e não a que
satisfaça o outro. Se fosse para expressar de forma direta o que espera o
leitor que pretende passear pelo Caderno de memórias coloniais, o conselho
seria para não idealizar uma linguagem leve, a terra queimada não deixou marcas
invisíveis e como diz a narradora “esta história é sobre a morte”.
Notas:
O Caderno de memórias coloniais
foi publicado em 2009 em Portugal e foi lançado pela editora Todavia em 2018, a
edição contém várias fotografias da infância da autora que trazem uma beleza
para o exemplar.
Isabela Figueiredo nasceu em
Lourenço Marques em 1963 e ganhou destaque com as suas obras; ela também é
autora do romance A gorda (Todavia).
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