Jerusalém, de Gonçalo M. Tavares
Por Pedro Fernandes
Jerusalém é um romance que lida com uma
dessas antíteses irrecusáveis da existência: não existe humanidade sem horror.
E a sentença é desenvolvida por reiteradas vias: do título aos movimentos
biológicos e interiores das personagens, passando pelas ações e certo exercício
meta-temático se considerarmos o largo esforço intelectual desenvolvido por
Theodor Busbeck, uma das figuras principais da narrativa. O resultado é uma obra com diversas possibilidades de
leitura, sobretudo, do que é acolhido nas vias do subtexto.
Embora este trabalho se filie àquela
seção das narrativas estabelecidas proximamente no tratamento convencional de
narrar — e sabemos que a literatura de Gonçalo M. Tavares se interessa em sua
maior parte por um tratamento desconstrutivista das formas pelo que aos olhos
tradicionais se designa maneira atípica de manipulação da linguagem — nota-se um
estratagema muito peculiar no que chamaríamos organismo da obra. Quer dizer,
mesmo despretensiosamente, uma obra desse escritor nunca é uma obra comum.
O que notoriamente chama atenção é
a interface entre o romance com outras maneiras de contar situadas fora
do âmbito da narrativa. Neste caso, forma e estrutura romanescas confluem para
o teatro. E especificamente para o que se designou teatro do absurdo. Mesmo o conteúdo — uma vez que o tratamento inusitado e
sóbrio da narração se desenvolve em torno de aspectos inesperados de uma
existência que, às vistas dos sujeitos ficcionais, são sem sentido. Trata-se de
um texto cujo esforço resulta de uma elaboração racional acerca do abandono da
razão detendo-se no tratamento das situações e suas consequências
materializadas na variação dos percursos individuais e que toma para o centro
de interesse, muitas vezes, objetos e imagens concretos.
O intervalo de tempo para a
realização da narrativa é, ao modo do teatro, circunscrito entre limites bem
determinados: a madrugada do dia 29 de maio. Quatro personagens cujos laços do
passado tornam-se visíveis à proporção do conflito desenvolvido na primeira
linha narrativa; nesta, todas, casualmente regressam ao tempo original sem que entre
elas se reestabeleçam quaisquer certezas desses vínculos. Não encontramos simplismos
nesse procedimento, uma vez que o passado em nada é responsável pelo presente,
ainda que este influa no futuro.
Se o passado participa do presente
apenas enquanto passado, se descarta a ideia do passado como repetição. O desenvolvimento
espiralar do tempo permite que se compreenda o passado no presente como
puramente reminiscência. Essa noção é curiosamente descartada no
desenvolvimento da tese de Theodor Busbeck. Envolvida com a natureza do horror
nazista — princípio, síntese e inflexão de suas investigações —, a proposição
deste homem de classe abastada e interesse intelectual elevado é sobre a possibilidade
de ao descrever minuciosamente esses instantes na história estabelecer um
roteiro capaz de evidenciar uma reaparição do horror e vislumbrar quais povos
são muito ou pouco suscetíveis a sofrê-lo ou praticá-lo.
O que Theodor faz é tentar aplicar
os procedimentos clínicos aprendidos para o controle das patologias mentais:
tratar o louco como um sujeito comum, prevendo seus ímpetos e hábitos a fim de
intervir antes de um ataque de fúria ou qualquer coisa parecida. Para ele, é
possível desenvolver um método parecido para fazer contato e estabelecer as
razões e ou limites para o horror. Mas a questão é, quantificando o horror, o
que isso poderá desencadear — uma aceitação das suas possibilidades como
normalidade? Outras ondas de horror? Terá sido isso o que justificaria as duas
dimensões do horror tornadas visíveis nos estados totalitários e de exceção —
isto é, um grupo que autodesignado como superior sente-se autorizado a atuar
sobre outro reduzindo-o à abjeção?
Enfim, esses domínios parecem
sempre se constituir por uma indução de poder que se organiza entre grupos por
uma adulteração das faculdades mentais que impede os indivíduos de reparar de
um para outro a sua própria condição. E depois, é a força física justificada
pelo imperativo da legalidade. Nesse sentido resulta de elevada importância o
embate entre razão e loucura desenvolvido pelo romance e a perspectiva do
manicômio como um aparelho legal de normalização dos corpos.
No caso específico deste médico
psiquiatra que desenvolve sua pesquisa a partir de um elevado interesse particular
pelo horror é interessante reparar o quanto ele próprio é uma escala de variação
entre a humanidade e o tema de sua investigação: quando encontra a jovem Mylia,
descreditada pelos pais e outros médicos de contornar sua loucura, decide peremptoriamente
por se casar com ela; mais tarde, igualmente incapaz de resolver pessoalmente
as circunstâncias clínicas da esposa, a submete a um manicômio de onde sai em
parte recuperada e em parte com outros problemas incontornáveis, como a perda
do filho expulso diretamente do seu corpo para as mãos de Theodor, mesmo que
uma criança nascida de um imbróglio amoroso clandestino de Mylia com outro
louco.
Mylia é o princípio, meio e fim
desse périplo de insones. Tudo começa com a tentativa de suicídio de Ernst Spengler,
mas logo descobrimos a personagem transida de dores em busca de uma igreja. Casualmente
tudo impele ao seu encontro: Ernst depois de atender um suspeito telefonema
dela; Theodor que tomado de um apetite sexual vagueia pelo centro da cidade
para encontrar uma prostituta; o filho que, ao acordar e se descobrir sozinho
em casa, sai pelas ruas à procura do pai; e o amigo — cafetão indireto de
Hanna — que sai à procura da mulher tomado por outro interesse feito de desejo
homossexual e morte.
O imã dessas relações é a fome,
força natural, instintiva, manifesta variadamente em cada uma das personagens e
que as arrastam para o horror. A fome se manifesta desde a sua forma mais comum
— um tipo de dor que se digladia com a dor da morte em Mylia e a golpeia — a
outros tipos de ausência: a solidão, a falta e o desejo. Uma vez saciados os
apetites de quem pode saciar, tudo recupera de alguma maneira certo grau de
ordenação para retornar, certamente, tudo outra vez. Assim, o que se repete são
as forças instintivas que nos regem. Essas formam os impulsos fundamentais da
vida.
Mas, nem tudo é apenas o princípio
instintivo e portanto biológico. Jerusalém também fabula sobre o grande
centro invisível que de alguma maneira participa e regula as vidas comuns. Theodor
Busbeck chama esse princípio de Deus. Educada nessa concepção, explicada fica a
obsessão de Mylia pelo encontro desta ou de uma imagem semelhante, acreditando existir
apenas esse destino na dor definitiva. E
cada uma das personagens que vagam até o centro dessa cidade noturna buscam pelo
princípio que acreditam: o amor, o sexo, o dinheiro, a figura paterna. E esta
última especificamente, manifesta como onipresença, assume vários nomes: Deus,
o diretor do Hospício Georg Rosenberg doutor Gomperz, o próprio Theodor e o
semivisível diretor do presídio.
Quase todos esses princípios encontram-se
em crise. A igreja não recebe Mylia. É tarde da noite — a hora em que para
todos, mesmo para Hanna, é da expectativa, do imprevisível, do perigo, do medo.
Todo o drama se desenvolve às vistas escuras de um Deus cego. É singular nesse
sentido como Mylia se desfaz desse princípio no episódio em que a personagem,
sem onde ou como urinar, decide-se pela parede da igreja — a profanação, entretanto,
se desenvolve com outro olhar do narrador, um sucinto volteio pela consciência
da personagem que pensa na praticidade masculina para desempenhar tal ato.
O doutor Gomperz, descobre Ernst, é
o interior da obsessão de todos no hospício. Tanto que, tomado dessa descoberta
retorna ao Georg Rosenberg interessado em desfazer a vida de quem agora foi seu
carrasco. Mais tarde, também Mylia participa dessa revelação sobre Gomperz e
acrescenta ao seu rol o ex-marido Theodor, princípio duplamente falhado: para
Mylia e para o filho Kaas. Ela que se descobre manipulada e tornada objeto nos
jogos legais de Theodor; ele que, mesmo envolto em toda sorte de práticas para conserto
de suas deficiências guarda pelo pai postiço um desmedido interesse.
Antes, utilizamos uma palavra que
de alguma maneira combina com essa imagem do grande centro que se dissipa nas
consciências e atitudes e de alguma maneira regula as vidas comuns e este termo
participa ativamente na rede semântica das relações neste romance: carrasco. Um
sujeito que se comporta com o interesse disciplinar cujas atitudes desencadeiam
sobre quem é agido o cruel, a desumanização, o horror. No caso de Jerusalém,
todos eles suscitam a adulteração dos comportamentos para esse fim.
É notável que em todos os casos
esse centro se manifeste pela forma masculina. Alargando os limites da ficção
sobre os da história, logo percebemos que neste romance também figura o horror
enquanto crise de uma civilização, sobretudo, a circunstância em que este deixa
de ser percebido como tal e passa a funcionar como um mecanismo ativo e coerente,
ajustado inclusive pelas mesmas linhas de sua ordem natural. O tratamento mais
visível disso se observa a partir de Theodor: um especialista sobre o tema do
horror que se desconhece enquanto seu praticante. E se amplia pela observação
de um mundo marcado pelas múltiplas cisões que empurram uns contra os outros
numa rede sem-fim de poderes.
Antes de ser uma afirmativa categórica
— não existe humanidade sem horror — Gonçalo M. Tavares desenvolve como esses
dois limites se implicam dialeticamente e como, por vezes, um ultrapassa o
outro e se estabelece uma radicalização dos nossos instintos. E isso, claro
está, não é fato exclusivo de um povo, nem depende de época ou coletividade: o
horror é feito de pequenas atitudes cotidianas e muitas vezes se afirma pela
justificativa da necessidade ou pelo imperativo da norma.
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