Cervantes e a violência de gênero

Por Geney Betrán


Ilustração de Vânia Mignone.


 
O estuprador conta a história: “subi sem esbarrar ninguém até o próprio aposento onde ela estava dormindo a sesta sobre um estrado negro. Era formosa ao extremo, e o silêncio, a solidão, a ocasião despertaram em mim um desejo mais atrevido que honesto, e sem pensar com sensatez fechei a porta às minhas costas, e me aproximando dela, acordei-a, e segurando-a firmemente [...] eu a possuí contra sua vontade e à força, pura e simplesmente.”¹

A mulher engravidou. Para esconder seu estado, deixou sua terra em direção ao sul, como uma peregrina. Deu à luz uma menina numa pousada em Toledo. Deixou a criança nas mãos de seus anfitriões, prometendo buscá-la depois de dois anos. Mas nunca o fez; a morte a impediu.

Quinze anos, um mês e quatro dias se passaram. O nome da garota é Costanza. Aos 15 anos ela é a mulher mais bonita de acordo com quantos homens a viram. De nenhum, entretanto, ela aceita seus requebros de amor. “É dura como um mármore [...] e áspera como urtiga”. Embora sempre se vista de empregada, não participa dos trabalhos da pousada. 
 
E é assim que se dá a aparição de dom Diego de Carriazo na hospedaria; ele traz os sinais de reconhecimento (um pingente e rasgo de um pergaminho) que correspondem aos deixados pela mãe de Costanza. O homem conta sua história, de onde vêm os versos que cita. Depois de sua história, nenhum dos ouvintes tem oportunidade de fazer o menor comentário, pois a ação se distrai para retornar a outras personagens e enredos desenvolvidos pela Novela da ilustre fregona, uma das Novelas exemplares de Miguel Cervantes.
 
Sendo “o cavalheiro principal”, um nobre, Don Diego de Carriazo não espera o menor castigo. Ninguém sugere qualquer reprimenda, nem mesmo com palavras. Em vez disso, o corregedor de Toledo ali mesmo entrega a filha: “—Recebei, senhor dom Diego, esta prenda, e estimai-a como a mais rica que se pode desejar. E vós, formosa donzela, beijai a mão de vosso pai e dai graças a Deus, pois com tão honrado ato emendou, elevou e melhorou a baixeza de vossa condição”. A jovem deve ser grata por ser resgatada de sua condição humilde. Ela “não soube fazer outra coisa que se ajoelhar diante de seu pai e, tomando-lhe as mãos, começou a beijá-las ternamente, banhando-as com infinitas lágrimas que derramava por seus belíssimos olhos.”
 
A Novela da ilustre fregona não é o único exemplo do interesse de Cervantes em tratar a complexa questão do abuso sexual de homens pertencentes à nobreza espanhola. Certamente não teríamos esperado uma opinião condenando explicitamente esses fatos; a tarefa da ficção cervantina, a conhecemos desde 1605 com Dom Quixote, é menos emitir um juízo sobre o tempo e antes representar a experiência de quem o vive e sofre. Mesmo assim, há uma certa visão crítica, de um espírito sensível à injustiça, que não é difícil de perceber. Destaque-se: a ficção de Miguel de Cervantes apresenta um homem na situação de narrar o estupro que perpetrou, com aleivosia, contra uma mulher indefesa. Para descobrir o paradeiro de sua filha, dom Diego tem que confessar sua culpa. Ele não pede perdão, claro está, mas também não pode se esconder no silêncio de seu crime. Assim, a novela o exibe pelo recurso da omissão e do contraste. E mais se diga:
 
O narrador de cervantino nada nos diz sobre a reação de dom Diego quando Costanza lhe é entregue: o que significou para ele, interiormente, encontrar sua filha? E, como vimos na reação de Costanza ao ser apresentada ao pai, não é que a voz narrativa se distancie das manifestações de sensibilidade. Pouco depois, diante da frieza de dom Diego, para quem encontrar sua filha só resultará em poder dá-la em casamento com o filho de seu amigo dom Juan de Avendaño, a novela de Cervantes mostra um quadro cheio de ternura ao vermos a separação da jovem com a dona da pousada, a mulher que foi sua mãe todos esses anos:
 
“Mas quando o corregedor disse a Costanza que entrasse também no coche, o coração dela se nublou, e Costanza e a hospedeira se agarraram uma na outra e começaram um pranto tão amargo que partiu o coração de quantos o escutavam. A hospedeira dizia:
— Como, filha do meu coração? Como te vais e me deixas? Como tens coragem de deixar esta mãe, que com tanto amor te criou?”
 
A visão cervantina não se apressa, então, em encerrar a história sem registrar aquele momento em que o vínculo entre a menina e a mãe adotiva terá que ser rompido. O contraste é impactante: agora dom Diego tem uma filha, mas será difícil para ele ter a verdade de seu coração. Embora, insisto, Cervantes nunca se permita adjetivar uma personagem da nobreza de maneira adversa, a ausência de traços sensíveis em dom Diego faria, portanto, parte do juízo que a novela delineia sobre sua conduta criminosa.
 
Faço esta viagem a uma novela publicada há 507 anos para me deter no que essa representação da sexualidade masculina sugere em sua relação com o estatuto de pai. É claro que dom Diego é uma figuração ficcional de acordo com o sistema patriarcal em que Cervantes viveu. O comportamento dessa personagem não é excepcional, e seria ingênuo exigir uma representação em outro sentido, mais louvável. Mas seu caso é interessante porque são muito poucos as circunstâncias em que, antes da modernidade, a arte literária do Ocidente focalizou sua busca dramática no comportamento sexual dos homens e sua repercussão no exercício da paternidade. É surpreendente, então, a sutileza demolidora com que Cervantes se aproxima de uma realidade tão atroz em sua época quanto na nossa.
 
Já se passou muito tempo desde aquela época em que Cervantes teria conhecido mais de um Diego de Carriazo em carne e osso, mas a Novela da ilustre fregona mostra como essa falência da masculinidade ainda continua vigente: há um nexo pernicioso entre a educação machista que comanda os predadores sexuais mundiais e a incompetência na profissão da paternidade. Até que dom Diego de Carriazo assuma ou compreenda a gravidade de seu comportamento violento, ele não poderá se ligar a partir da sensibilidade com aquele novo ser que entra em sua vida e se chama Costanza. E perderá da inestimável e espontânea experiência de ternura que, graças ao amor e carinho por quinze anos, um mês e quatro dias, colhe a anfitriã, a verdadeira dona do coração de Costanza.  
 
Nota da tradução
1 Todas as citações da Novela da ilustre fregona são utilizadas da tradução brasileira de Ernani Ssó (Novelas exemplares, Cosac Naify, 2015).
 
* Este texto é a tradução de “Cervantes y la violencia de género”, publicado aqui, em El Confabulario.

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