Anotações sobre “Dois ensaios”, de Daniel Sada: um percurso da cultura brasileira recente
Por Marcelo Moraes Caetano
Daniel Sada. Foto: Pascual Borzelli Iglesias |
Parto de um diálogo com os Dois
ensaios breves de Daniel Sada, publicados no Caderno de leituras n. 106, com
seleção, tradução e notas de Gabriel Bueno da Costa. Os ensaios foram
originariamente publicados com os títulos Assim escrevo, em 2010, e O conto e
suas fórmulas, em 1998.
Para começar, nas “fórmulas” que Daniel Sada cita, vejo que há, hoje, também a
fórmula “Syd Field”, que de certa forma Nelson Rodrigues e Rubem
Fonseca já usavam instintivamente (talvez) em parte de suas obras.
Consiste em um acontecimento
chocante, uma normalidade “estranha”, um incidente que
leva gradativamente ou repentinamente ao impossível, a aproximação desse
impossível, outro(s) incidente(s) que leva(m) a um impossível “mais” impossível, a vivência árdua desses impossíveis sobrepostos e... uma solução
(im)possível, que pode ser o retorno à normalidade “estranha” ou à
estranheza “normal”.
A trilogia de que mais gosto no
cinema nacional, de 1964, também seguia esse caminho, antes de ele ser descrito
pelo seu “autor” Syd Field (para Aristóteles, o autor não é quem teve
a ideia, mas quem a cristalizou na escrita). Refiro-me a Vidas
secas, de Nelson Pereira dos Santos (inspirado em Graciliano, é claro), Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha e Os
fuzis, de Ruy Guerra. O Cinema novo, que é brasileiro, é o verdadeiro
criador dessa “fórmula” cinematográfica, literária, musical e até
pictórica, como se vê em Hélio Oiticica, Lygia Clark, Marcello Nitsche, Vik
Muniz e Rubens Gerchman. Este último teria dito, para confrontar as realidades
do mercado e da arte, que ele não tinha dinheiro para comprar um quadro de sua
autoria.
Nosso Chico Buarque cantou um
momento desfavorável (mas nunca derradeiro) às utopias e aos sonhos da
esquerda, quando escreveu Estorvo (1991) e Benjamin (1995), com temas que fugiam à regra, circulando sobre narrativas que terminam
onde começam, como uma “Roda viva”.
Marcelo Ridenti (com cujo capítulo
“Cultura”, In História do Brasil Nação: 1808-2010, Dir. Lilia Moritz Schwarcz,
passo a conjugar uma breve recensão crítica) lembra-nos que depois disso é que
Chico voltou a se engajar, até mais verdadeiramente, nas causas da
esquerda, quando aderiu ao MST, sendo chamado por José Saramago e Sebastião
Salgado para, num trio, em 1997-8, angariar fundos para o Movimento que trazia
o fôlego fortíssimo do PT e dos movimentos sindicais e antioligárquicos
pró-reforma agrária.
Aliás, as duplicidades
urbano-rural e novo-arcaico sempre pairaram sobre o espírito do Brasil como nação.
Há também um fundo de pensamento
em que o artista é vigiado para pertencer a poéticas engajadas, por assim
dizer, criando, por seu turno, pináculos e minaretes como Antonio Carlos
Secchin (por exemplo, com suas obras Ária de estação (1973); A poesia do
menos: João Cabral de Melo Neto, de Quaresma a A escola das facas (1982) e
Elementos: poesia (1983), todas editadas durante o período da ditadura
militar brasileira) e João Cabral de Melo Neto (com obras como A educação pela pedra (1966), Museu de tudo (1975) e A escola das
facas (1980),
do mesmo período de ditadura. Secchin e João Cabral, por via de regra, se
encantam com a forma no cerne da perfeição, derramando-se à substância que,
nessa expressão perfeita, pode até alcançar a voz em dínamos de grito engajado,
mas por via indireta.
Para ilustrar, há, ao lado do que
Cacá Diegues chamava de “patrulhas ideológicas”, as “patrulhas
odara”, estas assim nomeadas por Henfil, remissivas à música “Odara”, de Caetano Veloso, que compartilhavam a realidade brasileira
num suporte expressivo mais universal, seja pelo viés do humor, seja pelo
recorte dos sentimentos imanentes à humanidade, buscando no universal o
regional; e vice-versa.
Tratava-se de “patrulhas”, portanto, que policiavam o tipo de cânone (de que Daniel
Sada também fala nesses ensaios) que deveria ser seguido quanto à expressão e
ao conteúdo. O tema deveria ser preferentemente ideológico, o que fez o próprio
Cacá Diegues desertar de seu sucesso “Xica da Silva”, de 1978, para
ser “patrulhado ideologicamente”, segundo a expressão que ele próprio
inventou, em seu arquissucesso “Bye bye, Brasil”, de 1979, com música
de Roberto Menescal e letra do (entusiasta e engajado) Chico Buarque.
Quem não tivesse esse conteúdo era
jogado no “cemitério dos mortos-vivos”, do Henfil, que jogou Paulo
Gracindo, Marília Pêra, Wilson Simonal, Nelson Rodrigues e outros nesse
cemitério dos alienados.
Vinícius talvez só não tenha sido
jogado aí, eu intuo, porque foi o primeiro dos autores a afrontar de fato a
ditadura militar, em 1965, com a canção de Edu Lobo e letra dele, Vinícius, “Arrastão”, que ganhou o mundo inteiro por vencer o Festival da
Record, cantado por Elis Regina, redimida a tempo do vale dos “mortos-vivos” por
ter encarnado “O bêbado e a equilibrista”, de João Bosco e Aldir
Blanc, que era o hino da anistia, de 1979.
Uma das grandes críticas que
existem até hoje sobre Paulo Coelho vem dessa época de “patrulhas” (ideológica ou odara), pois sua literatura pós-muro de Berlim (1989) e
pós-União Soviética (1991) era considerada evasiva, escapista da sociedade,
metafísica, desterritorializada, num momento em que a globalização econômica (e
a mundialização cultural) ameaçava(m) as ideologias da esquerda, que precisou
se reinventar (e se reinventou com muita força) graças a pessoas como Paulo
Freire, Lula, Milton Santos.
Também o enorme sucesso editorial
de Paulo Coelho ameaçou seu “prestígio”, assim como o fez com Jorge
Amado em sua literatura não engajada, de sua fase de Dona Flor e seus dois
maridos, Gabriela, cravo e canela, que chegaram a ser best sellers.
Essa tendência de se
desprestigiarem os autores que alcançam grande sucesso nas massas é, no Brasil,
bastante comum: veja-se até o caso de autores do próprio seio acadêmico, como
Laurentino Gomes, Mary del Priore, Lilia Moritz Schwarcz e outros que, após se
tornarem acessíveis ao grande público, parecem ter perdido certo “prestígio” acadêmico.
Aliás, eis aqui outra dicotomia do
imaginário do Brasil-nação: popular-erudito.
Sobre a literatura “tremendista” espanhola de que Daniel Sada fala, havia, antes dela,
nos anos 1900, a chamada literatura de polpa, com papel barato e histórias
ligeiras de apelo fácil, chamada de “pulp fiction”. Ela foi a segunda
grande precursora (se isso for possível) das telenovelas, no Brasil, das soap
operas, das séries, seriados e até do método ou “fórmula” Syd Field
que eu mencionei no início.
Sobre o que Daniel Sada fala a
respeito da construção dos personagens, por fim, vejo outra preocupação em que
cinema e literatura dialogam e como isso caminhou desde Charles Chaplin até
Harold Pinter. Ou seja, dos
personagens compactos, explícitos e clássicos até aqueles elípticos e até
anacolúticos.
Os grandes cursos de roteiro do
mundo, como Fullbright, Casa del Cine (estudei neste último) e outros, ensinam
que um personagem precisa ter uma gênese-dramática de no mínimo 10 páginas, que
contêm os desejos, objetivos, medos, traumas, alegrias, biografia, frustrações,
surpresas etc. Isso mesmo que ele seja de importância não muito grande na
narrativa.
Dessas páginas genesíacas, às
vezes usamos um ou dois episódios, mas o fundo do iceberg está lá, e
muitas vezes são esses detalhes que salvam o roteiro ou a narrativa, mesmo
de um breve conto, novela ou romance, do que chamamos de “roteirada”,
que são as soluções mirabolantes tiradas da cartola para fazerem com que se
chegue do normal “estranho” ao duplamente impossível e depois
retornar a um possível “normal”.
Isso tudo somente porque, como
lembra Bilac, o escrever – tanta perícia, tanta requer, que ofício tal... Nem há
notícia de outro qualquer.
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