Vozes femininas negras
Por Fábio Roberto Ferreira Barreto
Sou uma Carolina
Feminino e poesia
Pobreza não quero mais
A caneta é meu troféu
Borda as palavras no papel
É tudo o que quero dizer…
(Tula Pilar)
As vozes femininas têm muito a
dizer por meio da literatura; especialmente, as vozes femininas negras. A
poeta, dramaturga e prosadora Miriam Alves, em entrevista à Revista de Estudos
de Literatura Brasileira Contemporânea (n.51, maio-agosto 2017), afirma: “Considero
importante me dizer escritora negra brasileira. E não é rótulo. É uma atitude
política”.
Questões atinentes ao feminismo
negro são tão urgentes que, desde 1992, o Dia Internacional da Mulher Negra
Latino-Americana e Caribenha é, anualmente, rememorado em 25 de Julho; aqui no
Brasil, inclusive, desde 2014, instituiu-se o Dia Nacional de Tereza de
Benguela e da Mulher Negra, “a ser comemorado” (segundo o texto da lei) também
na mesma data. (Faço um aparte e recomendo uma visita ao Portal Geledés,
vinculado ao instituto Geledés da Mulher Negra, que desde 1988, atua na luta
pelas mulheres e pelos negros. Além de ampliar os conhecimentos sobre 25 de
Julho e ajudar a difundir seus ideais, pode-se acessar textos sobre temas relevantes
para o Brasil nem sempre abordados pela grande imprensa – ou abordados por
óticas superficiais.)
Em se tratando de literatura
feminina negra, neste mês de março, é oportuno (re)ler Elizandra Souza. Em “O
meu único dia de mulher”, a poeta¹ expõe o ponto de vista feminino acerca das
contradições machistas:
Oito de março lembraram de mim
Mandou flores, tocou até tamborim.
Como presente de consolação
Além dos bombons ganhei cartão
Elogiou tanto o meu caráter
E me fez se sentir rainha
Fingiu esquecer que não cobiçava o
meu corpo
Mas sim a minha carinha
Afirmou que sou bela por ser
mulher
E disse o quanto sou guerreira de
fé
E que sou capaz de vencer todas as
barreiras
Sou forte e verdadeira
Na TV tantas homenagens
Que cheguei a acreditar
Até que enfim a igualdade está a
reinar.
Nove de março que decepção
Pia cheia e toalha no chão
Pedi para tirar o prato da mesa
E quase levei um bofetão
Disse que o serviço de casa era
minha obrigação.
Que mulher só prestava para
cozinhar,
Fazer sexo,
Gerar filhos e amamentar.
Dez de março e a coisa piorou
Disse que sou feia, gorda
E não sabe porque casou
E ainda me chamou de burra
Se tivesse estudado
Pelo menos era culta
Os dias passam e fico esperando
Meu único dia de mulher.
Oito de março
A capacidade de Elizandra Souza
para engendrar em versos a hipocrisia machista é elogiável. Embora o poema “O
meu único dia de mulher” mereça uma reflexão literária à altura de sua
qualidade poética, prossigo apresentando mais algumas vozes femininas negras –
o texto é meu, mas as vozes são delas.
A poeta Jenyffer Nascimento, em
“Carne de mulher”, aborda uma questão recorrente em textos de mulheres negras
(mas frequente, também, em literatura contemporânea feminina): a
hiperssexualização da mulher (aliás, é um dos pontos a que aludiu Elizandra em
seu poema: “Fingiu esquecer que não cobiçava o meu corpo” [...] “Mulher só
prestava para cozinhar,/ Fazer sexo”).
Nua em frente ao espelho
Me olho
Me observo
Me vejo
E me sinto mulher.
Nas ruas é bem diferente.
Mesmo vestida
Me olham
Me observam
Me veem
Como um pedaço de carne.
Quanto vale ou é por quilo?
Carne de primeira, de segunda?
Carne de mulher?
Carne de vaca?
Seria eu uma vaca?
Cadê a mulher que eu era quando
saí de casa?
Não! Não aceito! Me recuso!
Eu não sou a carne mais barata do
mercado.
A carne mais barata do mercado não
é a da mulher negra!
Ética e estética se encontram,
portanto, nas mãos de autoras negras. Opondo-se à objetificação do corpo da
mulher – especialmente negra – e ao racismo de nossa sociedade, as mulheres
negras têm levantado os olhos e as palavras. Aliás, muito além das sagazes
críticas e denúncias, os textos de autoria feminina negra vêm afirmar que elas
devem protagonizar suas histórias.
Em “Não vou mais lavar os pratos”,
Cristiane Sobral explica poeticamente – para quem ainda se faz de
desentendido – o poder da leitura e, por conseguinte, o empoderamento da mulher
negra na sociedade brasileira:
Não vou mais lavar os pratos.
Nem vou limpar a poeira dos móveis.
Sinto muito. Comecei a ler.
Abri outro dia um livro e uma semana depois decidi.
Não levo mais o lixo para a lixeira.
Nem arrumo a bagunça das folhas que caem no quintal.
Sinto muito.
Depois de ler percebi
a estética dos pratos
a estética dos traços, a ética,
A estática.
Olho minhas mãos quando mudam a página dos livros
mãos bem mais macias que antes
e sinto que posso começar a ser a todo instante.
Sinto.
Qualquer coisa
Não vou mais lavar.
Nem levar.
Seus tapetes para lavar a seco.
Tenho os olhos rasos d’água.
Sinto muito.
Agora que comecei a ler, quero entender
O porquê, por quê? E o porquê.
Existem coisas.
Eu li, e li, e li.
Eu até sorri.
E deixei o feijão queimar…
Olha que o feijão sempre demora a ficar pronto.
Considere que os tempos agora são outros…
Ah,
Esqueci de dizer. Não vou mais.
Resolvi ficar um tempo comigo.
Resolvi ler sobre o que se passa conosco.
Você nem me espere. Você nem me chame. Não vou.
De tudo o que jamais li, de tudo o que jamais entendi
você foi o que passou.
Passou do limite, passou da medida, passou do alfabeto.
Desalfabetizou.
Não vou mais lavar as coisas e encobrir a verdadeira sujeira.
Nem limpar a poeira e espalhar o pó daqui para lá e de lá para cá.
Desinfetarei as minhas mãos e não tocarei suas partes móveis.
Não tocarei no álcool.
Depois de tantos anos alfabetizada, aprendi a ler.
Depois de tanto tempo juntos, aprendi a separar.
Meu tênis do seu sapato.
Minha gaveta das suas gravatas.
Meu perfume do seu cheiro.
Minha tela da sua moldura.
Sendo assim, não lavo mais nada
e olho a sujeira no fundo do copo.
Sempre chega o momento
De sacudir, de investir, de traduzir.
Não lavo mais pratos.
Li a assinatura da minha lei áurea escrita em negro maiúsculo.
Em letras tamanho 18, espaço duplo.
Aboli.
Não lavo mais os pratos.
Quero travessas de prata, cozinhas de luxo.
E joias de ouro.
Legítimas.
Está decretada a lei áurea.
Tenho acompanhado a produção
literária de mulheres negras desde o início dos anos 2000. De lá para cá se
tornaram mais intensas; na última década especialmente. Além da apreciação
estética, a dimensão ética presente nas obras de autoria feminina negra é, a
meu ver, de indiscutível pertinência. (Não que, nesse processo, não tenha
descoberto e redescoberto Carolina Maria de Jesus, uma das maiores expressões
literárias do século XX, e Maria Firmina dos Reis, uma pioneira em diversos
aspectos, no século XIX.)
Para encerrar, listo quatro obras ao
leitor de Letras para conhecer (ou conhecer ainda mais)
autoras negras. Trata-se de livros de três antologias (de modo que o leitor
possa apreciar textos de diversas autoras) e de um livro-tributo a Tula Pilar
(no qual, além dos textos dessa grande referência da literatura negra nos
saraus paulistanos, há diversas produções de mulheres negras).
1. Publicado em 2020, Narrativas
pretas apresenta o universo do Sarau das Pretas. O livro reúne produções
poéticas do “Concurso Literário Narrativas Pretas”.
2. Publicado em 2019, Pilar: futuro
presente traz textos de Tula Pilar e de mulheres negras que escreveram sobre
uma das pioneiras vozes negras nos saraus paulistanos.
3. Publicado em 2018, Mudas – falas
são sementes em germinação é uma antologia do Slam das Minas. (Apesar de não
trazer apenas textos poéticos de mulheres negras, é articulado por quatro
“Minas Empoderadas”, sendo duas expressivas representantes do feminismo negro
na literatura: Luz Ribeiro e Mel Duarte. Ademais, além de vários escritos serem
de autoria feminina negra, a própria Luz Ribeiro e a Kymani, que têm textos
seus publicados nessa obra, destaque-se,
já foram campeãs nacionais de Slam.)
4. Publicado em 2017, Olhos de
azeviche é uma antologia em prosa (contos e crônicas) de “dez escritoras negras
que estão renovando a literatura brasileira”.
Esta
sugestão não pretende compor mais uma daquelas listas obrigatórias que todos devem ler antes de
morrer. Além de não ser entusiástico desse tipo de publicação, pois perpassa a
pretensa ideia de que o que é bom para um leitor (que geralmente se coloca como
autoridade no assunto) deve sê-lo a coletividade de leitores. Aliás, o processo
de exclusão dos cânones perpassa por atitudes como as que subjazem tais
listagens, nas quais alguém a partir de seu repertório dita o que precisa e o
que não merece ser lido; perigoso para diversidade e, sem dúvidas, para
inteligência. Ademais, na condição homem (hétero e branco) seria demasiado
incoerente supor que minhas indicações pudessem constituir-se como regra para
quem quer fruir textos de labor estético de autoria feminina negra.
O
intuito, na verdade, foi compartilhar – de leitor para leitor – um ‘cadinho de
leituras que me encantaram (em diferentes manifestações da prosa e da poesia –
Slam e Sarau, inclusive). Por isso, variei os gêneros poéticos e os gêneros não
poéticos – bem como as esferas de
circulação de textos – de quatro obras
distintas nos últimos quatro anos. Angela Davis alerta que “quando a mulher
negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”. Posso
dizer, seguramente, que as escritas femininas negras fizeram (e fazem)
transitar em mim sentimentos e pensamentos variados, fazendo com que eu me
movimente com elas para não perder o bonde da história.
Elizandra
Souza, que também é editora do selo editorial Mjiba, criou a campanha “Salve
uma autora negra. Compre seu livro!” Participe também! Aviso, todavia, que ao
aderir, provavelmente, o leitor não salve apenas a autora, mas também a si
mesmo...
Notas:
¹ A despeito de a tradição
gramatical especificar o feminino “poetisa”, por razões históricas – sobretudo
no que concerne ao silenciamento das vozes femininas – em circuitos de saraus e
slams, geralmente, as mulheres preferem se intitular como “poetas”. Na perspectiva
de ser coerente (e de concordar mesmo) com
o entendimento das mulheres, mantenho essa denominação em meu texto.
Comentários
Excelentes reflexões.
As escritoras negras escrevem com a crítica das vivencias em forma poética.
E você torna ais evidente a mensagem que querem passar.