O poder do punho, a mulher e o espaço público
Por Wagner Silva Gomes
Um útero é do tamanho de um
punho (2012), da autora Angélica Freitas, se vale da escrita como
empoderamento antissexista, mudando as consciências individuais, criando
estratégias no cotidiano para a reinvindicação do direito à humanidade, para
que a mulher faça valer sua voz nos espaços sociais, não sendo apenas objeto
decorativo ou de domínio masculino.
É algo próximo ao que Djamila
Ribeiro em seu livro Quem tem medo do feminismo negro? atenta para as
diferenças entre o feminismo da mulher branca e o da mulher negra, que
historicamente nunca foi apenas objeto decorativo, citando o grande discurso E
não sou eu uma mulher? (1851) da ex-escrava norte-americana Sojourner
Truth, que diz que a mulher e nunca o homem a ajudou a subir numa carruagem,
não a carregou para atravessar um lamaçal etc. Mas, as mulheres e os feminismos
criam espaços de convívio e fortalecimento justamente para que haja
sensibilidade às demandas de um grupo não assimiladas no engajamento próprio de
outro, pois como coloca Djamila: “Se o objetivo é a luta por uma sociedade sem
hierarquia de gênero, existindo mulheres que, para além da opressão de gênero,
sofrem outras opressões, como racismo, lesbofobia, transmisoginia, torna-se
urgente incluir e pensar as intersecções como prioridade de ação, e não mais
como assuntos secundários” (p. 47).
Agora, trazendo toda a discussão
acima para o livro da Angélica Freitas, mulher branca sensível às intersecções
dos feminismos que através da poesia potencializa essa forma de agir e pensar.
No poema “Uma canção popular (séc. XIX – XX)” tem-se o lúdico que coloca o nome
mulher no lugar do de elefante, da canção popular “Um elefante
incomoda muita gente”, onde ao dizer que a mulher incomoda por beber, por ser
inconveniente, por ser gorda, uma mulher limpa/ rápido/ uma mulher limpa,
trazendo o questionamento que Angela Davis faz no livro Mulheres, raça e
classe (1981), ao colocar que não existe feminismo se não se levar em
consideração a luta das mulheres negras, que compõem a mão de obra mais barata,
a das donas de casa, que prestam serviço para as mulheres brancas. Essas, se
não questionarem o lugar de privilégio, podem não se atentar para o lugar de opressão
do patriarcado, que condena a mulher branca de classe média ao silêncio do lar,
a não expressar suas vontades, a não ser em cima de outra mulher, negra e
trabalhadora do lar, não exercendo efetivamente seu poder democrático de
participação na vida pública, mesmo que vote.
Um exemplo de repúdio a essa
acomodação da mulher branca ao lugar no lar é o poema “a mulher é uma
construção”. Aqui, a mulher vai ao espaço público como quem deixa um buraco, um
estrago, na casa do patriarcado, ao dizer: a mulher basicamente é pra ser/
um conjunto habitacional/ tudo igual/ tudo rebocado/ só muda a cor/
particularmente sou uma mulher/ de tijolos à vista/ nas reuniões sociais tendo
a ser/ a mais mal vista. Poema que também remete à argumentação de Angela Davis
que diz ser fundamental que a mulher se articule com os trabalhadores como uma
assalariada, pois assim ela pode adentrar os espaços públicos e valer de sua
voz, pois do contrário fica, não metaforicamente, presa por tijolos, já que restrita
ao espaço do lar. Tanto que a mulher desse poema se coloca como trabalhadora,
ao expressar digo que sou jornalista/ (a mulher é uma construção/ com
buracos demais/ vaza).
Assim, essa ação da mulher em
assumir o seu protagonismo, a sua voz, como coloca João Paulo Escute em sua
dissertação De Rilke Shake a Um Útero é do tamanho de um punho:
transformações na poesia de Angélica Freitas, a leva se reconstruir a
partir de uma tensão de opostos (suja/ limpa; bonita/ feia; braba/ mansa etc.)
que remonta toda a história da humanidade.
Separando-as, a mulher limpa é a que se desvencilha da visão
naturalista, sexista, de que por a mulher menstruar ela é suja, visão deturpada
do Velho Testamento, que tem trechos que discorrem sobre higiene em uma época
de muitas lepras e poucos recursos medicinais para curá-las, que se tomados por
fundamentalistas ganham o peso opressivo do patriarcalismo contemporâneo, como
nessa mensagem de Deus recebida por Moisés e Arão por volta de 2448 a.C.: “E
se, com efeito, qualquer homem se deitar com ela, e a sua imundície estiver
sobre ele, imundo será por sete dias; também toda a cama, sobre que se deitar,
será imunda.” (Levítico, 15:24). São dois homens mais um Deus masculino. A sensibilidade
feminina não é levada em consideração no discurso; as palavras são pesadas para
tratar do assunto.
No entanto, os fundamentalistas
conseguem tornar o discurso ainda mais opressivo, adotando-o como metáfora e
alegoria para situações da vida social. Para essa visão, há a mulher que se
construiu “limpa” com o advento da vida moderna, da industrialização ― enlatados,
ar-condicionado, aspirador, produtos higiênicos, somando-se no clichê mulher do
lar (ela; a profissional doméstica é a outra, que vem a seguir) ―,
e que não pode colocar a mão na matéria bruta, ou seja, no trabalho fora do
lar, considerado assim um lugar aberto a todos, violável, impuro, não-sagrado,
isto é, o contrário do lar ― fechado, inviolável, puro, como é o
sagrado.
Repare que a mulher negra
assalariada sempre esteve nos dois lados, o do espaço do lar e o do espaço
público, quando não em dois lares, um para ela público e o outro seu, vivendo a
complexidade da reivindicação da igualdade de gênero e da opressão, sendo por
isso mesmo pioneira no feminismo. Essas últimas mulheres, tanto a branca como a
negra, não podem opinar e exercer de fato a sua cidadania fora do recinto
(muitas das vezes nem dentro) porque o patriarcalismo, o machismo, o
fundamentalismo, e para a segunda o racismo, somam-se em sua condenação caso
haja no espaço público fazendo valer o seu poder de voz.
É por essas mulheres, por si, que
Angélica Freitas ironiza, e assume o seu fardo de sangue, vazando a sua luta. E
claro, eu, como homem, ao tratar de um assunto feminino e feminista deixo
escapar várias sensibilidades, por mais que me aproxime da luta. Como homem
negro periférico, por exemplo, ouvi muitas vezes de homens em espaços públicos:
―
vaza! Mas se tenho um punho, não tenho um útero do tamanho de um punho.
Comentários