O fim da verdade em Dostoiévski-trip, de Vladímir Sorókin
Por Joaquim Serra
Em Dostoiévski-trip, Vladímir Sorókin
não pessoaliza nada. Nomeia personagens por gênero, classificando-os como se
fossem números de série. A abertura da peça é realista, dialoga com temas
atuais, mas, a todo o tempo, há em suas falas uma abertura para um subtexto, “Os
tempos estão mudando para pior” (p. 7), diz um dos personagens. O Homem 2 é responsável
por essa abertura; ele sentencia: “acreditar de olhos fechados. Em nosso tempo.
Difícil e contraditório” (p. 9).
Então a droga entra, e a “viagem”
do título tem vida dupla para aqueles que usam. É então que as verdades
sagradas de Mýchkin, personagem de Dostoiévski inspirado na vida de Cristo e na
inocência de um Dom Quixote, são realçadas de um outro ponto de vista.
Há uma ironia a cada vez que um
personagem evoca um escritor. A droga, que tem nome de escritores – assim como
os apelidos que muitas drogas têm –, ganha dupla potência: quando falam dos
escritores, os personagens falam da potência da droga ou do poder do escritor
como artista? Uma dessas falas é a seguinte:
MULHER 2 (soluçando)
Eu vou é procurar o meu Genet.
HOMEM 1
E eu, o meu Céline! Nesta merda de
cidade, ele é vendido em cada esquina! (p. 9-10)
Se pensarmos na influência do
mundo francês em Guerra e paz, que é evocado em língua e cultura por Tolstói já
na primeira página, vemos agora, mais de cem anos depois, em 1997, dois
escritores malditos sendo chamados para o texto russo. É um novo mundo com o
fim da União Soviética, o mundo do controverso Jean Genet, vindo do submundo
com seu Diário de um ladrão, e o de Céline, o escritor perverso que, em 1932,
lança seu Viagem ao fim da noite.
Mais adiante, na obra de Sorókin,
Faulkner é citado como uma droga oposta. Um escritor da herança realista, não
sujo, mas que recriou a linguagem e a mimese, e também não aparece sem uma dose
de ironia: “Faulkner! A gente se liga nele e em um mês já está tão débil mental
quanto você!” (p. 11) É muito provável que esse “tão débil mental” seja uma
alusão à O Som e a Fúria, romance em que o primeiro narrador, Benjamin, sofre
de problemas mentais.
Para Sorókin a droga é o nada, o
grotesco que penetra na literatura clássica, o estranho. O espaço da peça é o
mais violento possível e que tomou todo o mundo moderno, o espaço da fissura,
do mal e do avesso da civilização, e essa é a questão central de Sorókin. O
ambiente é moderno porque seu uso na peça reflete a estética do autor, o
conceitualismo, que entende a obra de arte como uma fonte de reflexão, deixando
de lado muitas vezes a estética e talvez até a fruição em nome de uma
ferramenta reflexiva.
Por isso, a proposta de Sorokin é
visual, vem das artes plásticas e do cinema. E parte desse surrealismo da peça
está ligada à obra de Kharms. É possível também a mistura de gênero em Sorokin.
O autor alia o processo da criação com o processo reflexivo. A reflexão está
contida na obra, a obra é o próprio conceito.
Depois da primeira vanguarda russa,
é instaurado o realismo socialista na Rússia, o que já prepararia para o
pós-modernismo russo. O conceitualismo viria para dessacralizar aquele mundo de
antes. Os autores e suas narrativas tiveram sua importância, e até aparecem em
suas obras, mas já não dão conta do homem e do mundo moderno. Ao mesmo tempo,
vemos que Sorókin não dialoga apenas com a tradição russa, mas também com
autores de outros países, e não somente com autores da alta literatura, mas da
decadência.
Talvez se encaixe aqui o que T. S.
Elliot diz quando escreve sobre o artista e a tradição, diz ele que o artista
deveria influir questões do seu tempo através de uma combinação com a tradição.
Mas a tradição seria como um meio, não um fim, criando uma possibilidade de
recombinação de estruturas por vezes tratadas como básicas. Para exemplificar
isso em Dostoiévski-trip, poderíamos pensar como o autor dialoga com o romance
psicológico de Dostoiévski, mas o faz em uma narrativa nada convencional, com
outros limites estéticos – o do teatro – e sem mergulhar na intimidade de
nenhum personagem, como o faz Dostoiévski. Não só Elliot, John Barth figura
como uma das principais cabeças americanas que se debruçaram sobre o
pós-modernismo na literatura. Para Barth, o esgotamento literário deveria
originar novas combinações, na medida do possível, originais.
Por isso, Mýchkin não faz mais
sentido com sua proposta sobre a beleza. Enquanto se reúne em Dostoiévski-trip,
em uma cena real de O idiota, com Nastácia Filíppovna, Gânia, Vária, Liébedev e
Ippolit, o discurso da sexualidade e do dinheiro tomam conta da cena. Segundo
Arlete Cavaliere, “o dinheiro [...], a sexualidade desvairada, as obscenidades
discursivas pautam relações humanas movidas pelo absurdo e pelo nonsense e
marcadas por uma existência vazia e sem sentido” (p. 308). “A beleza salvará o
mundo” é uma grande narrativa que é destruída, destrói-se também a beleza do
mundo soviético e da própria estética realista, que, na Europa, teve sua
passagem mais suavizada do modernismo para o pós-modernismo. Assim, “a
filosofia de Dostoiévski expressa pela voz do príncipe Mýchkin: ‘a beleza
salvará o mundo’, se encontra aqui destronada por via de um agudo deslocamento
temporal” (p. 308).
Agora sabemos em que mundo
estamos, no mundo do pós-estruturalismo, pós-soviético, pós-vanguarda: o mundo
da morte do autor. E Sorókin brinca com essa autoria, com o autor Dostoiévski
que já não pode descrever o mundo de hoje, agora as tragédias são outras.
Se pensarmos em Roland Barthes, o
sentido do texto tem que estar no próprio texto. A intenção do autor não é
determinante. As características intencionais do autor devem constar na obra em
forma de discurso, sem se perder da intenção original, e a obra de arte seria a
concretização da intenção de um autor. A morte do autor dessacraliza esse
autor, assim como o conceitualismo o faz, muito diferente do autor do
simbolismo russo – a primeira porta adentrada pela primeira vanguarda russa –,
que era um místico, uma extensão do texto. Enquanto o suprematismo pensava numa
realidade suprema, em Sorókin, a realidade é a baixeza com doses de maldade,
que daria muito bem para ser lida do ponto de vista do demoníaco, já que essa
busca pela transcendência moderna, pela abertura das portas da percepção, é
também um desejo fáustico.
Segundo Arlete Cavaliere, “há,
certamente, no texto um movimento no sentido da estilização ou, talvez, de uma
espécie de adaptação do texto dostoievskiano à poesis contemporânea” (p. 307). É
assim que os heróis e as grandes questões metafísicas que sempre encantaram os
leitores de Dostoiévski são reajustadas à maneira caricatural e irônica do
texto de nosso tempo, um terreno perfeito para o grotesco contemporâneo. Aliás,
muito à maneira da modernidade com o reavivamento de textos clássicos nas mãos
de artistas que admitem – e o fazem de propósito – o influxo das grandes
novidades do mundo contemporâneo. É sob essa nova lente que o herói Mýchkin, “este
Cristo ideal de Dostoiévski, parece submeter-se a este olhar contemporâneo
desfigurador” (p. 307).
Arlete Cavaliere identifica os
procedimentos de Sorókin como uma continuação “aos procedimentos estéticos
efetuados pelas vanguardas russas nas duas primeiras décadas do século XX: o
futurismo russo, as experiências linguísticas da linguagem transmental do Zaum
[...]” (p. 303). Por isso, pode-se dizer que estamos diante de uma “segunda
vanguarda russa” ou “geração pós-vanguarda”. O termo faz sentido pela própria
ideia de vanguarda. Ainda que fonte de elasticidade das fronteiras dos gêneros,
é possível que muitos dos elementos usados pelas vanguardas ficaram retidos em
certos momentos do tempo. Um exemplo talvez tenha sido o movimento concretista
no Brasil, os procedimentos matemáticos de escrita constrangida do Oulipo
franco-italiano, dentre outros, por isso talvez faça sentido pensarmos em um
reavivamento dessa primeira vanguarda.
Vladímir Sorókin pode ser
considerado um dos mais representativos dramaturgos contemporâneos, integrando
uma leva de escritores russos da atualidade que se convencionou chamar de “nova
literatura russa”. O autor fez operar em seus textos de prosa e teatro “procedimentos
essenciais do fazer artístico contemporâneo: a ‘morte do autor’, a emancipação
do leitor, o fim da mímesis, a fragmentação, o sincretismo das formas, a
metalinguagem, a ironia” (p. 302).
Como foi citado o movimento Oulipo
logo acima, talvez valha dizer algo do modus operandi de Italo Calvino acerca
da leitura dos clássicos. Talvez Sorókin evoque Dostoiévski com o mesmo intento
que Calvino dá para a renovação dos clássicos na literatura. E por isso a sua
leitura é também eterna. Dostoiévski aparece em Sorókin assim como as fábulas
italianas aparecem drasticamente modificadas – ou estilizadas – nas Cosmicômicas
de Calvino, ou seja, com uma nova vida.
Bibliografia:
CAVALIERE, Arlete, VÁSSINA, Elena (Orgs.) Teatro
russo: literatura e espetáculo. São Paulo: Ateliê Editorial, 2011.
SORÓKIN, Vladímir. Dostoiévski-trip. Trad. Arlete Cavaliere. São Paulo: Editora 34, 2014.
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