Normopatia ou normose: quando ser normal é o problema. Traços da farsa social acusada na literatura
Por Marcelo Moraes Caetano
A normose é a estagnação em práticas e pensamentos que
muitas vezes são incentivados e aplaudidos pela maioria da sociedade: aquilo
que é “normal”, em muitíssimos casos.
“Normal” a partir de que perspectivas?
Da perspectiva do caos. “Normal” do ponto de vista dos
comportamentos e dos pensamentos que guiam pessoas e sociedades, ainda que ao
caos. “Normal” do ponto de vista de algo que pode até ser sido bom e eficaz num
momento do passado das sociedades, mas que hoje já não faz sentido – o que
ocasiona o caos. “Normal” do ponto de vista de apenas uma parcela (às vezes
ínfima) da sociedade, sem estender seus benefícios a camadas mais vastas e
diversas dessa mesma sociedade, criando o caldeamento necessário – para o caos.
Esses “normais” estagnantes e caóticos, que impedem a
instauração e a manutenção da paz, são exatamente a NORMOSE. O sufixo -OSE
significa basicamente desgaste, tanto nos conceitos biológicos e fisiológicos,
como também nos psíquicos, sociais, antropológicos.
Portanto, a normose é justamente a estagnação em “normais”
que não podem mais ser sustentados. O desgaste de “normalidades”, o qual pode
levar o indivíduo e a sociedade inteira ao caos, à desintegração, à demolição,
às guerras – à ausência de paz.
A literatura é predominantemente letra escrita. Mesmo quando
oral, uma das consequências (não digo “finalidades”) da letra literária é
inserir-nos nos âmbitos da cultura e, até, da civilização. E é exatamente
nestes pontos que as normoses nascem e ganham fôlego. A normopatia ou normose é
um desencontro entre o sujeito e a “normalidade” que cultura e sociedade trazem
em suas conformações. E a literatura revela ou implica isso em seu plano do
conteúdo mais sutil, ou seja, naquilo que seu plano da expressão não aponta necessariamente
de forma explícita, mas implícita ou implicada. Está aí o famoso “entrelugar”
de que tanto se fala na obra de Clarice Lispector (que analisarei em momento
oportuno), ou o conceito de “lugares vazios” de Wolfgang Iser e sua estética da
recepção.
Sempre permanecerá um grande ponto de interrogação no ar nas
investigações sociais que não conheçam pelo menos o básico das questões
relativas à normose numa sociedade e nos indivíduos. Não se explicarão por
completo os extremismos, os populismos, as hipocrisias, as guerras, as dores e
as engrenagens do ódio e dos preconceitos sem se considerar a normose.
Conta-se que Freud dizia não haver um único lugar da mente
aonde ele fosse que já não tivesse sido pisado por um poeta.
Igualmente ocorre com a normose: antes de ela ser sabiamente
mirada e desdobrada como conceito fundamental (e infelizmente negligenciado),
muitos poetas, há séculos e milênios, já a acusavam e acusam desesperadamente.
Romeu e Julieta conta a história de um amor que não pôde se
consumar por causa da normose das tradições familiares.
A Ilíada é uma guerra que nasceu da normose da vaidade de
três Deusas ou Arquétipos competindo por prestígio e poder no Monte Olimpo, com
a clarividência de que a normose perpassa até esta alta montanha do espírito
humano. Parece-me que a Ilíada evidencia o que eu chamei de “normose anti-Platão”,
pois atua na normose de divindades, ideais platônicos em seu estado mais puro –
Deuses e Deusas, arquétipos e símbolos.
Otelo e Dom Casmurro contam a normose do patriarcado, em que
a mulher pertence às mais profundas neuroses do homem, que por sua vez é
encurralado num beco estreito em que apenas o comportamento nocivo normótico de
truculência, violência e “virilidade” é esperado dele, o que faz de homens e
mulheres vítimas iguais no cassino e nas roletas perniciosas da normose.
O alienista, de Machado de Assis, trata da normose dos seres
humanos submetidos exclusivamente à visão da “ciência”. Quincas Borba, do mesmo
autor, trata dessa mesma normose, com um darwinismo social, assim como da
normose do antropocentrismo tóxico, quando se cunha o termo “humanitismo”.
O Dom Quixote tem como terceiro personagem principal, além
do Quixote e de Sancho Pança, a própria normose, tão ilusória e real quanto a
personagem Dulcineia del Toboso, que simplesmente “não existe”, embora seja o
que faz o Quixote agir por toda a obra. É contra a normose que o Quixote
batalha, em direção à sua superação.
Também Sancho é impelido por uma ilusão: a ilha da qual ele
será governador, que só existe na imaginação.
É a normose, em Dom Quixote, que sopapeia e maltrata o
cavaleiro da triste figura em seus sonhos que, estes sim, estão muito além dos
normóticos, razão pela qual a normose o castiga, em mil personagens e
situações, durante a obra inteira. Até que o Quixote resolve se “ajustar” à normose
para parar de sofrer, o que muitas “terapias” e “pedagogias” fazem, como
veremos. E, assim ajustado, estagnado... morre o peregrino Dom Quixote...
náufrago ou iluminado? No caso do Quixote fica a dúvida, o pulmão da obra.
Aliás, em Madame Bovary, Emma Bovary teve um fim mais ou menos semelhante.
O sociólogo e antropólogo francês Émile Durkheim tratou,
embora não diretamente, de questões que podem, hoje, ser postas sob o
guarda-chuva da normose.
Ele ensina que algumas sociedades se constroem em cima de
princípios básicos e unívocos. Há as sociedades que se erguem diante de
crenças, valores, éticas e estéticas muito semelhantes ou até idênticas para
todos os indivíduos. São sociedades mais antigas, mas que ainda sobrevivem nos
dias de hoje. Assim, uma comunidade desse tipo, geralmente também menos
numerosa em termos de indivíduos que a compõem, apresenta uma “lista fechada”
de fatores aos quais todos os seus membros precisam aderir, no que ele chamou
de “solidariedade mecânica”: digamos que há uma espécie de canto em uníssono.
As sociedades mais complexas e com mais indivíduos (como as
sociedades ditas civilizadas do Ocidente e Oriente contemporâneos), por outro
lado, costumam se basear nas complexidades e diferenças. E, portanto, a coesão
desse tipo de coletividade se dá graças ao que ele chamou de “solidariedade
orgânica”: digamos que há uma espécie de canto sinfônico, coral de vozes
concertantes (ou, ao menos, que deveriam ser).
Como percebemos, a normose não parece ser um privilégio das
sociedades modernas tecnológicas (onde há a técnica a serviço da produção),
comerciais, mercadológicas, industriais ou pós-industriais, embora esses
epifenômenos tenham contribuído enormemente para o colapso que a pandemia
desmascarou de vez. Mesmo nas sociedades antigas, a normose se apresenta de
forma contundente, embora talvez pareça anacrônico ou inaplicável o uso desse
conceito para tais comunidades. (Ou será que não?)
Se aceitarmos a aplicação do conceito de normose nessas
sociedades baseadas em “solidariedade mecânica” (cf. Durkheim), talvez
percebamos que nelas a normose pode até em alguns casos ser mais forte (ao
menos pelo ponto de vista ético, e não êmico), pois as “normas” são altamente
explicitadas e geralmente muito literais, o que faz com que qualquer desvio
seja mais facilmente detectado e, muitas vezes, punido implacavelmente
inclusive com a morte e a vergonha que o mito de Adão e Eva, perfeitamente
análogo a essas sociedades, expressa. Seguir as “normas” está inscrito na cultura
dessas sociedades. O homo sapiens aqui passa de modo quase didático ao homo
normoticus.
Bem, ao menos, nesse tipo de coletividade, as “normas” são
autônomas, espontâneas, culturais, e gozam de um estatuto organizador que pode
se justificar pela eficiência ética ou estética que as fez vir à luz. São muitas
vezes culturais DE FATO e, frequentemente, apresentam eficácia real, não
constituindo meras ilusões de paradigmas estagnados do passado.
Mas, sem romantização, podem também ter-se estagnado, mesmo
que seu berço seja autônomo e cultural.
Pode-se levantar uma hipótese. Pelo fato de muitas
sociedades complexas e civilizadas da contemporaneidade serem oriundas das
pequenas sociedades mecânicas, parte da inclinação social/coletiva à normose parece
ter sido trazida de mão em mão desde os nossos antepassados antiquíssimos.
Havia, é claro, a necessidade de obediência às “normas” como
mecanismo de sobrevivência do indivíduo, que, sozinho, estaria à mercê dos
mistérios infinitos da natureza e da vida física que o cercava.
Mas nos dias de hoje, afinal de contas, a mera estagnação
passiva dentro daquilo que é considerado “normal” pode trazer uma sensação
ilusória de paz, quando o que está acontecendo na verdade é pasmaceira,
estagnação, NORMOSE, aparente ausência momentânea de conflitos que, no entanto,
prepara um verdadeiro campo minado de guerras no terreno em que se está.
Quem sabe não está ali a gênese de parte da explicação do
porquê das normoses em nossas complexas, diversificadas e numéricas sociedades
(conhecidas como civilizadas) contemporâneas.
Nesse pensamento, a civilização pode não ser mais do que uma
caricatura e arremedo da cultura. As “normas” nas sociedades complexas são em
grande parte heterônomas, artificiais, não espontâneas, sem necessariamente
possuir elos com eficiências. Podem ser paradigmas corroídos do passado e/ou de
classes específicas.
A literatura, concluindo, como predomínio da letra escrita, funda
possante inserção da pessoa no âmbito civilizatório. Ainda quando pertence a classes
hegemônicas (as “elites”, que devem ser chamadas de oligarquias), o texto
literário, graças à visão de mundo do autor, frequentemente acusa normoses,
máscaras sociais, hipocrisias e moralismos dogmáticos que estagnam numa
“normalidade” que não encontra eco na realidade psicossocial. Em outras
palavras, a literatura vem com frequência como grande acusadora das normoses,
que são essas patologias da normalidade, que fincam o mundo em descompassos
entre a “normalidade” vigente e a realidade concreta.
(Trecho do livro Em busca do novo normal: reflexões sobre a normose em um mundo diferente, de Marcelo Moraes Caetano. Rio de Janeiro: Editora Jaguatirica 2020)
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