Nathalie Sarraute: morte e ressurreição do romance
Por E. J. Rodríguez
O gênio da suspeita apareceu em
cena.
(Stendhal)
A consciência é uma rede
superficial de opiniões convencionais tomadas tal como são do grupo ao qual
pertence.
(Nathalie Sarraute)
Nathalie Sarraute. Foto: Andersen / SIPA |
A literatura de Nathalie Sarraute
foi avaliada em sua época e ainda é avaliada hoje como “difícil”, “inovadora”, “experimental”,
“contrária à convenção”, “destituída de enredo”. Ela, no entanto, via tudo de
forma diferente. Quando era questionada sobre seu surpreendente apreço pela
simplicidade da oralidade ― uma apreciação que ela desenvolveu em sua juventude
enquanto praticava o direito e escrevia palestras em um registro mais acessível
do que seus escritos posteriores ― levantava uma amistosa resposta: “Essa
facilidade exige uma excepcional quantidade de trabalho, muito tarefa!” Como
costuma acontecer com quem escreve, compõe música ou pinta, o que os outros
percebem como fácil costuma ser, na realidade, o mais difícil para os
criadores.
O mais fácil para a escritora
francesa era ser difícil, é verdade, porque nunca deixou de estar comprometida
com suas necessidades expressivas em detrimento das necessidades de comerciais.
Sarraute era uma intelectual no sentido fundamental da palavra, já que sua obra
vinha do mundo das ideias e era direcionada para o mundo das ideias, sem muita
consideração por um público cujas necessidades, como ela admitia perto do fim
da vida, nunca sabia muito bem qual era. Ela não era uma esnobe; estava mais
para um anacoreta literário. Não é de surpreender então que só não tenha
alcançado seu primeiro grande êxito internacional depois dos oitenta anos,
quando já acumulava várias décadas de uma brilhante carreira literária. Infância,
o único verdadeiro Best-seller que publicou em vida, tornou-a um ícone popular
tanto quanto havia sido no mundo dos profissionais literários. Mas o sucesso em
uma idade tão avançada não a tornava complacente consigo mesma; apesar de ter
triunfado com uma autobiografia, duvidava de sua própria capacidade de
relembrar com precisão os acontecimentos de sua vida, exercendo assim como a
primeira crítica do mais universalmente bem-vindo de seus escritos.
Sarraute sempre manteve uma
relação crítica com a sua própria literatura e com a literatura de outras
pessoas. É tentador pensar que isso tinha muito a ver com sua formação jurídica;
embora quando jovem tenha abandonado a prática do direito para fazer da escrita
sua profissão, suas reflexões sobre a arte de escrever e o romance em
particular tiveram muito de um processo judicial (embora, felizmente, sua
escrita primorosa tivesse pouco do aspecto jurídico). Seus ensaios literários
foram construídos à maneira de alegações; primeiro, apresenta a tese de seus “adversários”
com tanto cuidado que muitas vezes dava a falsa impressão de que pretendia
defendê-la. Depois, com agudeza e elegância, mas também com estudado sarcasmo,
refuta essas teses sobrepondo as suas próprias observações, que costumam
consistir na demolição, muito à maneira de um advogado, das evidências e provas
que outros tentavam se apoiar.
Um de seus principais campos de
batalha foi, como esperado de uma escritora revolucionária, a contraposição
entre o romance do século XIX e o romance do século XX. Ou, para ser mais
exato, entre o romance centrado nas personagens e enredos e aquele centrado no
monólogo interno do escritor. Sarraute publicou seu primeiro livro, Tropismos,
em 1939. Era uma coleção de textos representando vários estados de consciência
impulsionados por movimentos fugazes sobre os quais a mente consciente não
exerce controle completo. “Tropismo” é um termo emprestado da biologia e que
indica a maneira particular pela qual um organismo reage a estímulos externos
sem nenhum pensamento real envolvido; por exemplo, quando as plantas crescem em
uma determinada direção devido à incidência de luz. A ideia de tropismo
literário era uma maneira de construir o romance.
Tropismos não foi um
grande sucesso, mas atraiu a atenção do mundo literário francês e mereceu
elogios de grandes nomes como Jean-Paul Sartre; hoje é reconhecida como uma
obra capital daqueles anos. Nathalie Sarraute ainda era uma estranha ― “Eu
não conhecia ninguém, nem um único escritor” ―, mas ajudou a lançar as bases
do movimento nouveau roman, o “novo romance”, para o qual mais tarde
contribuiu com um verdadeiro manifesto com o ensaio 1956, A era da suspeita.
O que era o nouveau roman? Não era um estilo, uma vez que os escritores
incluídos nessa corrente praticavam formas de escrita muito diferentes, como
resultado lógico da tendência à experimentação que defendiam. O nouveau
roman foi antes uma reação, desta vez consciente, ao romance do século XIX
e, especialmente, ao romance naturalista.
“Os críticos” ― dizia
Sarraute em A era da suspeita ― “gostam dos romancistas que acreditam
em suas personagens, como Balzac ou Flaubert.” O alvo favorito de suas críticas
era Balzac e suas diligentes e numerosas descrições das personagens, desde suas
roupas até suas circunstâncias econômicas e ambientes cotidianos. A elaborada
construção de uma moldura composta por inúmeros detalhes para transmitir ideias
sutis “cuja conquista é laboriosa”. No romance de Balzac, as personagens são
colocadas em um altar e, “como santos numa pintura”, submetidos a uma inspeção
geográfica que vai de fora para dentro. Elas são o principal elo entre o
escritor e o leitor e, portanto, seu retrato detalhado é como um procedimento
imperdoável. O uso pelo escritor de um arquétipo individual profusamente
descrito foi canonizado pelos críticos na medida em que foi percebido como uma
nova adição ao “pavilhão de personagens inesquecíveis” na história do romance.
Em meados do século XX,
entretanto, a relação entre o romancista e a realidade estava mudando sob a
influência de romances como Em busca do tempo perdido de Marcel Proust
ou O estrangeiro de Albert Camus; Sarraute dizia sobre este último que “como
todas as obras de grande valor, veio no momento certo” para resgatar o processo
de introspecção frente aos elementos poéticos e descritivos da literatura do
século XIX. Os críticos viam como um mal contagioso o destronamento das
personagens, outrora protagonistas do romance e agora substituídos por um “eu
anônimo” que era, em essência, a representação do próprio escritor, empenhado
em usurpar o papel do herói. Sarraute respondia aos críticos observando
ironicamente que “este mal atacou algumas das obras mais importantes de nosso
tempo”, um lembrete de que a dissecação proustiana da realidade, regurgitada na
forma de um monólogo interno e subjetivo, se estabelecia como um novo
paradigma.
Mesmo reconhecendo as dificuldades
intrínsecas da transcrição literária do real, Sarraute lembra aos críticos que
o leitor do século XX duvida que o objeto artificial criado pelo romancista
possa conter o real. A confecção de enredos e personagens ficcionais construídas
à medida da narrativa nunca pode ser considerada mais verossímil do que a
observação subjetiva da realidade, mesmo que seja expressa por meio de um
monólogo interno que sabemos não ser a própria realidade. No pós-guerra, a
antiga predominância das personagens e a narração de seus destinos não surtiam
mais o mesmo efeito para um leitor familiarizado com as obras de Proust, Joyce
ou do próprio Freud. Um leitor que havia entrado em contato com, como Sarraute
resumia com seu característico paisagismo linguístico, “o crescimento
infinitamente abundante do mundo psicológico e as vastas, mas inexploradas
regiões do inconsciente”. A imaginação do romancista está sob suspeita e “as
situações reais têm vantagens indiscutíveis sobre a história inventada. Para
começar, que são reais”.
No entanto, Sarraute não está
disposta a certificar a morte de todo o romance do século XIX sem distinções ou
nuances. Ela se mostra, como todos os membros do nouveau roman, pouco
impressionada com o aparato dramático de muitos escritores do século XIX, mas
exerce uma defesa enfática da atual importância de outros. Em particular, se
opõe à dicotomia, em voga na época, entre o “romance psicológico” de
Dostoiévski e o “romance de situação” de Kafka. No primeiro, o drama interno
atua como motor das personagens; no segundo, é a circunstância externa que as
move; isso parece estabelecer Kafka como uma referência para o nouveau roman,
e além disso Sarraute admite que sua época é mais favorável a Kafka porque a
cultura é marcada pelo “triplo determinismo, da fome, da sexualidade e do
status social”; isto é, por causa das ideias de Marx, Freud e Pavlov, que eram
fáceis de associar à estrutura literária kafkiana. Mas, Sarraute encontra
paralelos claros entre o russo e o tcheco, a ponto de afirmar que, se
Dostoiévski não é o professor de Kafka, ele é pelo menos seu precursor.
Em Dostoiévski, as personagens são
ferramentas para descrever estados de consciência. Entre essas personagens, o
escrutínio mútuo é constante e conexões milagrosas são produzidas por meio de “premonições
surpreendentes, presságios, clarividência, o dom sobrenatural de penetração que
não é privilégio exclusivo daqueles iluminados pelo amor cristão”. As
personagens de Dostoiévski sofrem quando há conflito porque não suportam sentir-se
separadas de seus semelhantes e não toleram indiferença. O pior pecado é o
assassinato, que é o conflito irreparável, a ruptura definitiva com o próximo.
E mesmo os criminosos precisam de outros para confessarem os próprios crimes,
que só assim são perdoados, ao serem “depositados no patrimônio comum”. Em
Kafka, as personagens também são ferramentas para expressar estados mentais e
também sofrem com a falta de contato com seus pares, transformados em “rodas
hierárquicas que giram ad infinitum” dentro de um maquinário impessoal
que separa alguns humanos de outros. Sarraute, referindo-se sobre A metamorfose,
cujo protagonista um dia acorda transformado em inseto, lembra que Dostoiévski,
em Memórias do subsolo, compara o protagonista várias vezes a um inseto
e descreve um estado mental semelhante. A diferença é o que o escritor Roger
Grenier descreveu como homo absurdus, a personagem kafkiana por
excelência, que não age a partir de seu drama psicológico interior, mas sim
como uma reação ao que está acontecendo ao seu redor: “um corpo sem alma
abalado por forças hostis”. No entanto, o estado emocional das personagens da
obra de ambos os escritores é semelhante, o desespero diante da solidão, embora
o expressem de maneiras muito diferentes.
Sarraute vai ainda mais longe.
Depois de relacionar ― para surpresa de muitos ― Kafka com Dostoiévski, consegue
ligar o motivo comum de ambos ao próprio Marcel Proust, farol e guia do “novo
romance” francês. Em busca do tempo perdido, lembra Sarraute, está cheio
de personagens cujo “esnobismo maníaco” é outra forma de expressar a
necessidade do contato com o outro, para obter sua aprovação, quando não seu
perdão, em meio a um ambiente cuja superficialidade favorece o isolamento.
Assim, Sarraute não menospreza o romance do século XIX como um todo, ainda que
discrimine seu conteúdo. Ela afirma que os mecanismos dramáticos de Dostoiévski
são “primitivos”, mas reconhece a validade de seu substrato emocional e a
influência no romance posterior. Inclusive se monstra indignada quando alguns
de seus contemporâneos menosprezam tudo o que é produzido no século XIX sem
nuanças, como o crítico Paul Léautaud, de quem a escritora diz com desaprovação
indisfarçável que “se permite falar a sério” sobre Dostoiévski qualificando-o
como um “lunático”.
Em meados de 1956, quando A era
da suspeita foi publicado, Nathalie Sarraute já dava por certo que a arte
cinematográfica se apropriara das grandes personagens e dos dramas interiores
como motores da narração. O romance do século XIX não havia morrido, mas parte
dele se transformara em celuloide; outra parte, o romance psicológico, evoluiu
para o romance situacional kafkiano. Sarraute, no entanto, viu no reinado do
cinema uma oportunidade para a literatura se desfazer dos espartilhos, “retomando
a modéstia juvenil” e explorando novas técnicas. A criação de mundos fictícios,
disse ela, não era mais necessária, pelo menos não para ela. Quando, em sua
velhice, lhe perguntaram por que resistia a escrever fantasias, ela respondeu: “Cada
momento no mundo real é tão fantástico em si mesmo, com tudo que está
acontecendo dentro dele, que é tudo o que preciso”.
* Este texto é a tradução de “Nathalie
Sarraute: muerte y la resurrección de la novela”, publicado aqui em Jot Down.
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