Louise Glück. Quatro poemas de Uma vida de aldeia (2009)
Por Pedro Belo Clara
FADIGA
Dorme todo o Inverno.
Então, levanta-se, faz a barba –
é preciso muito tempo até ficar um
homem outra vez,
o seu rosto ao espelho surge todo eriçado
de cabelos negros.
A terra é agora como uma mulher,
aguardando-o.
Um grande sentido de esperança – é
isso que os une,
a ele e a esta mulher.
Agora ele terá de trabalhar todo o
dia para provar que merece o que tem.
Meio-dia: está cansado, está sedento.
Mas, se desistir agora, perderá
tudo.
A transpiração que lhe cobre
costas e braços
é como a própria vida a esvair-se
dele,
sem nada que a substitua.
Trabalha como um animal, depois
como uma máquina, sem a menor
réstia de sentimento.
Mas a união jamais será quebrada,
por muito que agora a terra dê
luta, bravia ao calor do Verão –
Ele agacha-se, deixando que a
terra lhe escorra entre os dedos.
O Sol põe-se, chega a escuridão.
Agora que o Verão acabou, a terra
torna-se dura, gelada;
junto à estrada, ardem alguns
fogos isolados.
Nada resta do amor,
apenas distanciamento e ódio.
CAÇADORES
Uma noite escura – as ruas
pertencem aos gatos.
Aos gatos e a todas as coisas
pequenas que eles encontram para matar –
Os gatos são velozes como os seus
antepassados nas colinas
e famintos como os seus
antepassados.
Mal se vê a Lua. Por isso, faz uma
noite fria –
não tem a Lua para aquecê-la. O
Verão está de partida,
mas por agora ainda não falta o
que caçar,
embora os ratos permaneçam silenciosos,
vigilantes como os gatos.
Basta cheirar o ar – uma noite
tranquila, uma noite vocacionada para o amor.
E de vez em quando ouve-se um
grito
vindo da rua lá em baixo,
onde o gato está a cravar os
dentes na perna de um rato.
Assim que o rato grita, é a sua
morte. O grito é como um mapa:
diz ao gato onde encontrar a
garganta. Depois disso,
já é só um cadáver que grita.
Uma pessoa tem sorte por estar
apaixonada numa noite como esta,
quente o bastante para se poder
deitar nua em cima dos lençóis,
a transpirar, pois é trabalho
duro, isto do amor, digam o que disserem.
Os ratos mortos jazem na rua, onde
o gato os queira largar.
Dá-te por contente por não estares
agora na rua,
antes de os varredores chegarem
para os levar. Quando nascer,
o Sol não ficará decepcionado com
o mundo que encontrar,
as ruas estarão limpas para o novo
dia e para a noite que se lhe seguir.
Dá-te por contente por teres
ficado na cama,
onde os gritos do amor abafam os
gritos dos cadáveres.
MORCEGOS
(— para Ellen Pinsky)
A respeito da morte, poderá
observar-se
que aqueles com autoridade para
falar permanecem calados:
outros abrem caminho à força para
o púlpito ou
para o meio do palco – sendo a
experiência
sempre preferível à teoria,
raramente são esses
os verdadeiros videntes, nem se
pode dizer que a convicção seja
um aspecto comum da perspicácia.
Ergue os olhos para a noite:
se a distração através dos
sentidos é a essência da vida,
o que agora vês aparenta ser uma
simulação da morte, morcegos
dando voltas no escuro – Mas o
homem nada sabe
da morte. Se o modo como nos
comportamos é o modo como te sentes,
então isto não é o mais parecido
com a morte, é o mais parecido com a vida.
Também tu estás cego. Também tu te
debates no escuro.
Uma terrível solidão rodeia todos
os seres que
confrontam a mortalidade. Como diz
Margulies: a morte
aterroriza-nos a todos a ponto do
silêncio.
UMA VIDA DE ALDEIA
A morte e a incerteza que me
esperam,
como esperam a todos os homens, as
sombras avaliando-me
porque pode levar algum tempo a
destruir um ser humano,
o elemento da expectativa que
deve ser preservado –
Aos domingos, levo a passear o cão
da minha vizinha
para que ela possa ir à igreja
rezar pela sua mãe doente.
O cão espera por mim à porta. Seja
Verão ou Inverno,
percorremos sempre a mesma
estrada, cedo pela manhã, junto à base da escarpa.
Às vezes, o cão afasta-se de mim –
por instantes,
deixo de vê-lo por detrás de umas
árvores. Ele orgulha-se muito disto,
deste truque que faz ocasionalmente,
desistindo depois
em jeito de favor para comigo –
Mais tarde, regresso a casa para
apanhar lenha.
Retenho na memória imagens de cada
passeio:
monardas a crescer à beira da
estrada;
o cão a perseguir os ratinhos
cinzentos no início da Primavera,
de modo que, por instantes, parece
possível
não pensar na prisão do corpo que
definha, na proporção
de corpo que resvala já para o
vazio,
nas orações a tornarem-se orações
pelos defuntos.
Meio-dia, findos os sinos das
igrejas. Luz em excesso:
ainda assim, o nevoeiro cobre o
prado, por isso não se vê
a montanha à distância, revestida
de neve e de gelo.
Quando aparece de novo, a minha
vizinha acha
que as suas orações foram
correspondidas. É tanta a luz que não controla a felicidade –
tem de extravasar em linguagem: Olá,
grita ela, como se
fosse essa a sua melhor tradução.
Crê na Virgem como que eu creio na
montanha,
embora num dos casos o nevoeiro
nunca levante.
Mas cada qual deposita a sua
esperança num lugar diferente.
Preparo a minha sopa, sirvo-me do
meu copo de vinho.
Estou tensa, como uma criança que
se aproxima da adolescência.
Em breve decidir-se-á
definitivamente o que somos,
rapaz ou rapariga, uma coisa ou
outra. Já não se pode ser as duas.
E a criança pensa: eu quero ter uma
palavra a dizer sobre o assunto.
Mas a criança não tem voto na
matéria.
Quando era criança, não pude
prever isto.
Mais tarde, o sol poe-se as
sombras adensam-se,
sacudindo os pequenos arbustos
como animais acabados de despertar para a noite.
Dentro de casa, resta a luz da
labaredas. Esmorece devagar;
agora, só os toros mais robustos
tremeluzem junto às prateleiras
dos instrumentos.
Às vezes, ouço música a vir deles,
mesmo fechados nos seus estojos.
Quando eu era um pássaro, achava
que viria a ser um homem.
Isto é a flauta. E a trompa
responde,
Quando eu era homem, implorava
para ser um pássaro.
Então, a música desaparece. E o
segredo que me confia
também desaparece.
Na janela, a Lua surge suspensa
sobre a terra,
insignificante, embora carregada de
mensagens.
Está morta, sempre esteve morta,
mas finge ser outra coisa
qualquer,
ardendo como uma estrela, de forma
tão convincente que às vezes
sentimos que seria capaz de fazer
brotar alguma coisa da terra.
Se há uma imagem da alma, creio
que é esta.
Movo-me na escuridão como se me
fosse algo natural,
como se eu fosse já um dos seus
factores.
Sereno e posto em sossego, o dia
desponta.
Em dia de mercado, vou ao mercado
com as minhas alfaces.
______
Não se estranhe a alta
probabilidade de pelo menos um leitor moderadamente atento descobrir uma certa
familiaridade no nome da autora selecionada para este mês — ou não se tratasse
da mais recente vencedora do Prémio Nobel da Literatura.
Louise Elizabeth Glück nasceu em
Nova Iorque, em abril de 1943, filha de emigrantes húngaros de crença judaica.
Viveu uma infância e adolescência difíceis, a braços com persistentes problemas
do foro psicológico – entre eles a anorexia nervosa. Tais incidências constituíram
obstáculos de complexa superação, mas também marcariam a temática duma autora
ainda em formação. Num ensaio por si escrito, Louise admitiu que a doença nasceu
dum esforço de marcar uma posição de independência mediante o domínio materno.
Devido a estas questões, Louise
Glück nunca terminaria uma licenciatura, frequentando ao invés, na Universidade
de Columbia e, antes, no Sarah Lawrence College, aulas de poesia. É nesta época
que alguns trabalhos seus começam a aparecer em diversas publicações. Um pouco
mais tarde, nasceria o conjunto de poemas que viria a formar o seu primeiro
livro, Firstborn (sugestão de tradução: “Primogénito”). Estávamos em
1968. A obra receberia uma crítica favorável, pelo menos num momento inicial. O
poeta Robert Hass, entre outros que lhe deram atenção, descreveu-a como “dura,
ardilosa, repleta de dor”.
Após este trabalho, a autora entra
num período de bloqueio criativo, apenas quebrado quando começa a leccionar poesia
no estado do Vermont. Nasceria assim, em 1975, The House On Marshland
(sugestão de tradução: “A Casa no Pântano”), o livro onde pela primeira vez se
reconheceu que uma voz verdadeiramente original acabava de emergir no panorama
literário norte-americano.
Para muitos críticos, a sua obra
maior terá sido The Triumph of Achilles (“O Triunfo de Aquiles”), de
1985, o seu quarto livro de poesia, que surgiu após uma considerável tragédia
pessoal: o terrível incêndio que consumiu a sua casa e todas as suas posses.
Porém, é com A Íris Selvagem, de 1993, que lhe é outorgado o Pulitzer —
apenas o início duma década que viria a coroá-la como uma das mais proeminentes
vozes poéticas norte-americanas.
Louise Glück foi poetisa laureada
em 2003 e 2004, membro da Academia Americana de Artes e Letras e ainda
escritora residente da Rosenkranz, na prestigiada Universidade de Yale.
Actualmente vive em Cambridge, no estado do Massachusetts.
As razões da meritória distinção
que recentemente recebeu foram amplamente divulgadas: “uma inconfundível voz
poética que com uma beleza austera torna universal a existência pessoal.” É, de
facto, uma razoável súmula da obra em causa, mas aprofundemos um pouco mais.
A sua poesia é praticamente toda
ela atravessada por uma toada melancólica de inclinação algo depressiva, um
registo de cadência triste que naturalmente se ergueu dos desafios da sua
adolescência e princípio de idade adulta — embora também seja capaz de oferecer
uma beleza lírica obscura e fria na sua concepção.
Em vários momentos, um olhar mais
experiente (talvez coração) reconhece as fontes donde esta voz saciou a sede e,
assim, aprendeu o ofício da fala, com Robert Lowell e Emily Dickinson (os
famosos travessões) logo na dianteira. Não obstante, a própria autora já
admitiu que muito do seu trabalho foi influenciado pelos preceitos da
psicanálise.
O seu registo poético evoluiu de
versos curtos para longos, sem que com isso perdesse a precisão que sempre lhe
fora característica. É, por isso, nesta fase mais madura, uma poesia muito
marcada pelo aroma da prosa, amiúde longa e escorrida, com uma intenção de
conversa, nem que seja com ela própria.
Daí chegamos à maior discussão que
os críticos mantêm sobre o seu trabalho poético: é ou não uma poetisa confessional?
Se ecos de, por exemplo, Sylvia Plath, em maior ou menor medida, foram sendo
perceptíveis, também é dado factual que a sua poesia, apesar de pessoal e
muitas vezes autobiográfica, não se cinge a um “eu” de linhas definidas, dada a
inclinação da autora em criar personagens, sejam mitológicas ou tiradas do
mundo natural, onde colocar a sua voz. Além disso, a própria terá repudiado
qualquer aproximação teórica da sua poesia com a escrita desse género.
De facto, parece-nos redutor
marcá-la com tal carimbo. O poema em Glück, como se verifica nos que compõem a
obra donde se retirou esta brevíssima amostra, é sobretudo palco de reflexão,
quase nas fronteiras do confessional, donde sobressai um certo toque intimista.
As reflexões que oferece surgem com base na observação ocorrida no quotidiano
tanto de mistério como de banal. O “eu” parece, assim, ser primeiro que um
poeta um observador, e do mesmo modo a sua relação com os outros e o mundo —
apesar de interagir com ambos sem gestos de eremita. Do que desse acto colhe,
faz a matéria do seu ofício.
Em termos temáticos, de modo
sumário são notórias as influências clássicas na sua escrita, ela que em várias
ocasiões recorre à mitologia grega para ilustrar emoções e pensamentos. O seu
exercício ganha substância ao ser percorrido por questões como a efemeridade, a
perda, a desilusão amorosa, uma certa fadiga e até fastio em plena vida
quotidiana, o sofrimento que de mão dada caminha com o Homem e uma ideia
de renascimento surgido da aceitação das
inevitabilidades apresentadas pela vida material. Mas, principalmente,
sobressai o tema da morte, do seu terrível esplendor e, claro, inescapável
encontro — o destino inevitável do Homem, para além de qualquer protesto
inalienável. É um prisma onde a vida é vista de modo maculado em todas as suas
cores e canções, perdendo assim a radiância de coisa viva diante do abismo que,
tarde ou cedo, aguarda o ente vivo no fundo da linha que percorre, embora nem
sempre seja a sua existência linear. É também a prova duma certa ambiguidade
que pauta a poesia de Louise Glück, onde tanto oferece a suave esperança do
renascimento para algo novo e melhor, mais puro e limpo, como se queda na
realidade torpe dum ser oprimido pela sua própria condição.
Desde o outorgamento do Nobel, em
outubro de 2020, a obra de Louise Glück tem vindo a ser traduzida para
português (o devido louvor à Relógio d’Água), contando já com quatro volumes à
disposição dos leitores mais interessados e curiosos.
* As traduções dos poemas são de Frederico Pedreira.
Comentários