É o poder: BBB, indústria cultural e o sequestro da imaginação

Por Leonardo Matos
 

“A literatura é o sonho acordado das civilizações. Portanto, assim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono, talvez não haja equilíbrio social sem a literatura.”
— Antonio Candido, “O direito à literatura”

La Baker. Loïs Mailou Jones


Cada gesto de leitura parece vir acompanhado da possibilidade de ingressar em outro regime de cognoscibilidade. Abre-se diante de nossos olhos um mundo ao mesmo tempo diverso e semelhante ao mundo já conhecido. Alteram-se as combinações, embora os signos sejam parcialmente preservados — dado que no sonho todo igual se abre à diferença. De repente, finda a leitura. Lançamos sobre a realidade um olhar de surpresa ao reconhecermos a distância entre a vida desenhada pelo sonho e o cotidiano fixado na realidade. Acordar pressupõe então o reconhecimento do que a vida podia ser, mas não é. Assim, ao longo da leitura seríamos convidados a esboçar a partir de dentro que mundo pretendemos juntos desenhar.

Em literatura, o encanto nada tem a ver com a sedução ideológica mobilizada pela mercadoria. Ao contrário, por meio de seus recursos próprios, provoca o encanto ao oferecer a nós a chance de ver pela primeira vez o mundo, livrando-nos do vício do olhar cotidiano. Por vezes, surpreendemo-nos com a beleza da matéria representada. Há, por outro lado, momentos em que a surpresa nasce da percepção sensível das componentes recalcadas pela racionalidade pragmática de um mundo orientado para os fins. Contra o desvio mágico da realidade concreta — endossado pelo entretenimento barato —, a literatura nos coloca frente a mais crua barbárie.

Agora, se a literatura pode representar a abertura para a transformação, sua ausência denota a abolição da fronteira entre aquilo que é e o que poderia ser. Dormimos como se estivéssemos ainda acordados. Acordados, permanecemos presos no mesmo sonho infinito — imersos na ilusão fantasiosa que nos é vendida, sem nos darmos conta de que vivemos o sonho arbitrário imputado pelos administradores da vida. Afinal, “(...) a fábrica dos sonhos não tanto fabrica sonhos dos clientes quanto lhes entrega os sonhos dos fornecedores.” — afirma Theodor Adorno, em “O esquema da cultura de massas”.

É justamente na supressão da diferença entre o existente e o imaginado que se fundamenta a lógica estruturante da indústria cultural: sempre o mesmo, cada produto atua como agente reprodutor do que já está dado, reforçando assim nossa impotência face a ordem das coisas. Ou seja, “A fantasia é substituída pelo controle tenaz e automático que determina se a mais recente imago em distribuição será de um reflexo exato, acurado e fidedigno de um pedacinho da realidade.” Se, no âmbito publicitário da cultura, a fantasia reproduz o real, pode-se dizer que seu funcionamento pressupõe a negação da verdadeira arte.

Busca-se hoje justificar o tempo gasto nas redes sociais, em frente à televisão e o tempo perdido com a leitura fácil como defesa da liberdade de cada um consumir seu tempo livre da maneira que bem deseja. Mais uma vez, perde-se de vista a restrição da liberdade e a determinação do modo como o desfrute de nosso lazer é também envolvido pela lógica do mercado, transformando-se aos olhos da indústria em oportunidade de nos pôr diante de sua falsa variedade de produtos. Contudo, a quem aponta a incongruência expressa pela confusão entre a defesa da mercadoria e o reconhecimento do público que a consome sobra a pecha de “elitista cultural”.

Na tentativa de atribuir reconhecimento às práticas de cultura — confundidas com consumo irrestrito de produtos vendidos pela indústria — comumente associadas às camadas médias e baixas da sociedade, não estaríamos, na verdade, imputando valor ao produto, em detrimento da legítima cultura popular? Na verdade, a hipervalorização do público acaba por suprimir os outros elementos que compõem a dinâmica de produção e consumo. Entre eles, a fagocitação de qualquer vestígio de singularidade e qualquer alternativa de emergir a diferença. Portanto, o aniquilamento de toda manifestação popular de cultura.

Foi justamente a identificação irrestrita entre produto cultural e público consumidor o fator responsável por endossar o cancelamento da antropóloga Lilia Schwarcz — cuja crítica a um dos clipes produzidos pela cantora Beyoncé motivou ataques nas redes sociais, autorizados sob a justificativa de defesa das pautas raciais. Confundida a crítica à técnica empregada no vídeo com o ataque particular à pessoa, termina-se por imputar valor e reconhecimento à mercadoria, que permanece intacta. Seja por medo, covardia — ou ainda em função da consciência sobre a necessidade de responder em silêncio à ofensiva cancelaradora de um público ansioso pela última palavra —, Lilia resolveu desculpar-se.

Tendo isso em vista, parece suspeito o discurso corriqueiramente difundido nas redes sociais sobre a possibilidade de conciliar o espírito crítico com o consumo da cultura de massas. Poderiam harmonizar-se a crítica a um sistema excludente e o consumo de um produto ancorado na exclusão? Pode um só corpo aplaudir de frente e criticar de costas, sem dilacerar-se? No Brasil, onde os contrários se tocam e se enlaçam em favor da suspensão dos antagonismos, tem-se a prova do improvável. Aqui, esclarecimento e menoridade, autonomia e dependência convivem simultaneamente.

Lidas, porém, em chave negativa, tais combinações assumem feição disparatada, cujo aspecto fora já identificado em Raízes do Brasil, por Sérgio Buarque de Holanda, quando aponta a cordialidade como “traço definido do caráter brasileiro”. Ao contrário da interpretação de Cassiano Ricardo e da crítica vazia, desonestamente propagandeada na atualidade, a noção nada tem a ver com bondade e fineza no trato. Empregada em seu sentido etimológico, a expressão aponta para a reverência do homem cordial aos imperativos do coração. Afinal, “A inimizade bem pode ser tão cordial como a amizade, nisto que uma e outra nascem do coração, procedem, assim, da esfera do íntimo, do familiar, do privado”. Aqui, a mão que aplaude e afaga é a mesma que desdenha e apedreja.

Atravessamos a madrugada da última terça-feira vibrando e ouvindo a vibração eufórica de todos aqueles que finalmente puderam assistir em pleno gozo a exclusão de uma das participantes do programa televisivo Big Brother Brasil. Surpresa e indignada face as atitudes da rapper Karol Conká, a audiência uniu forças para expulsar do jogo a participante que, na realidade, parecia uma aliada. Sob a justificativa moral, aglutinaram- se em favor da rejeição da imagem indesejada de uma figura que — se antes alimentava o prazer narcísico do público faminto por identificação — deixou de espelhar a comunidade a que antes se integrara.

Mulher negra, bissexual, oriunda de uma família pobre, compõe a restrita parcela da sociedade capaz de resistir à exclusão. Tornada rica, a rapper não deixa, porém, de ter em si as marcas impressas de sua história e da história pregressa de seus familiares. E talvez resida aí, nesses cruzamentos entre diferentes predicados, a ingenuidade de alguém que, recém ocupante do trono, exerce sem pudor seus desmandos, sem dissimular seu ímpeto de dominação.

A rara ascensão dos de baixo, em vez de apontar — como se supõe — à possibilidade de superar pelo mérito o abismo social que os separa dos poderosos, acaba por replicar a estrutura de dominação. Alternam-se apenas as mãos portadoras do açoite, enquanto o castigo subsiste. Tendo isso em vista, ganha intensidade a avaliação da participante sobre a própria conduta controladora: “Eu tenho mania de controle. Eu vivo uma vida onde eu controlo tudo. Eu sou dona da minha vida, dona da minha carreira e chegar e não poder controlar achismos e nem minha animosidade, me deixou muito mal.”

Embora tenha provocado a surpresa da audiência, o acesso controlador de Karol já se manifestava em sua própria produção: “É quando eu quero, se conforme, é desse jeito.” Aqui, já se pode entrever a natureza da relação firmada com o diferente: a realização da sua vontade particular depende da conformidade do outro, que deve se curvar e silenciar. Ou seja, a garantia da própria satisfação combina-se inextrincavelmente ao extermínio do adversário. Ainda na mesma canção, diz-se: “Se quiser falar comigo, fala direito” — espécie de atualização do “você sabe com quem está falando?”, corriqueiramente mobilizado para marcar distinção social no Brasil.

Mais do que um simples traço de personalidade, uma anomalia psíquica ou ainda um sintoma patológico, a perpetuação do ciclo de dominação — seja por iniciativa do dos donos do poder, seja por parte dos dominados — é parte inerente à dinâmica da realidade, em especial no Brasil. A exclusão é, portanto, menos um desvio a ser corrigido do que uma forma de racionalidade, característica das relações sociais em seu padrão de normalidade. Machado de Assis dá testemunho disso em sua literatura.

Lembremos aqui do escravo de quem Brás Cubas judiava e montava como uma besta, quando criança. Recém alforriado, não demora a também comprar um negro. Certo dia, ao caminhar pelas ruas do Valongo, o antigo senhor então flagra Prudêncio açoitando o escravo:

“Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas, — transmitindo-as a outro. Eu, em criança, montava-o, punha-lhe um freio na boca, e desancava-o sem compaixão; ele gemia e sofria. Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as sutilezas do maroto!”

Brás Cubas não hesita, por sua vez, em interromper o castigo — movido, não por caridade, mas pelo dever de censurar a surra infligida publicamente. Ou seja, o impasse reside não exatamente na violência flagrada pelo narrador-protagonista, e sim na publicização da cruel desfaçatez implicada à estrutural patriarcal, fundamento determinante de nossa formação. Assim, o que parece inicialmente figurar como indignação se revela, na verdade, como ação camufladora dos desmandos escravistas, em favor da preservação da aparência liberal.

A aproximação entre a dinâmica percebida a partir da situação de Karol e todo arcabouço histórico que o subjaz — captado por Machado em sua literatura — ainda aponta para o trauma psíquico carregado pelo sujeito negro, de que nos fala Franz Fanon em Peles negras, máscaras brancas. De acordo psiquiatra e filósofo martinicano, a imposição da gramática colonial aos negros, exige-lhes a mobilização inescapável da linguagem da metrópole: “Todo povo colonizado (...) toma posição diante da linguagem da nação civilizadora, isto é, da cultura metropolitana. Quanto mais assimilar os valores culturais da metrópole, mais o colonizado escapará da sua selva. Quanto mais ele rejeitar sua negridão. Seu mato, mais branco será.”

O jugo sobre o corpo negro, alia-se, por sua vez, à dominação no campo cultural e, por conseguinte, no domínio subjetivo, fazendo assim que passem a se ver como estrangeiros: “Eu me perdi dentro de mim” — diz a cantora logo após ser eliminada da competição.

Levando em consideração as ideias expostas anteriormente, a afirmação de Karol sobre o descontrole a que teria cedido ao entrar na casa e sobre a necessidade de procurar ajuda psicológica extrapolam as fronteiras particularistas e desnudam uma problemática que remonta a nosso passado colonial, apoiado sobretudo no domínio tirânico sobre o corpo e a subjetividade negra. Sentido ainda hoje como parte de nossa herança, o enraizamento do escravismo em solo nacional fora, já no século XIX, antevisto pelo abolicionista Joaquim Nabuco, em O abolicionismo:

“A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. Ela espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do país, e foi a que ele guardou; ela povoou-o como se fosse uma religião natural e viva, com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos; insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu silêncio sem concentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte... É ela o suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do Norte.”

O trauma psíquico é também histórico. Assim, em lugar da patologização, Fanon explicita o caráter sistêmico da despersonalização dos negros pelo colonialismo. E talvez resida aí na explicitação da dinâmica que sustenta a divisão hierárquica dos sujeitos — em lugar da camuflagem e do fingimento — o fator responsável pela indignação do público. Em um país onde permanecem intactos os promotores da injustiça e da exclusão contra os mais pobres, contra as mulheres, a população negra, indígena, contra comunidade LGBTQIA+ e contra todos outros grupos que atestam o fundamento ideológico implicado à noção de igualdade; onde permanecem incólumes os gestores da morte e da doença, desponta a dúvida e a desconfiança sob o argumento moral levantado como bandeira para apoiar a insurgência coletiva contra uma pessoa que, como personagem, frustrou as fantasias do seu público. Que surpresa poderia causar as ações excludentes de uma participante em um jogo cujo vencedor é justamente quem se revela capaz de resistir à exclusão?

Nesse sentido, a lógica do cancelamento, embora se anuncie como agente da mudança, acaba por reiterar o sempre igual. Ancora-se na eliminação do outro, pois tem medo do espelho se quebrar. Elimina a diferença, pois teme a desestabilização da própria identidade. Silencia, pois teme ouvir o som de outra voz.

Há quem defenda a suspensão do cancelamento de Karol — agora que deixou o confinamento e passou a viver fora do jogo. A suspeita de que entre a realidade encenada e a vida vivida existe uma delimitação clara e objetiva ignora, porém, os nexos entre a representação e o objeto representado, como se um não repercutisse sobre o outro. Animados pelo falso teatro vivido e simulado nas margens da tela, esquecemo-nos de olhar para a cena que se desenrola nos bastidores. Surpresos e hipnotizados pelas artimanhas do mágico, deixamos de lembrar do dono do circo, verdadeiro arranjador do ilusionismo. Com efeito, a presença ausente do dominador é parte prevista no esquema da indústria cultural: “(...) a secreta doutrina transmitida é a mensagem do capital. Ela deve se fingir secreta para que a dominação total permaneça invisível: ‘um rebanho, nenhum pastor.’ Entretanto ela alcança a todos.” — afirma Theodor Adorno.

Em 1968, no contexto do Festival Internacional da Canção, vibrou a audiência presente no Maracanãzinho contra a decisão final dos jurados, que premiaram à canção “Sabiá”, de Chico Buarque e Tom Jobim, em vez de “Pra não dizer que não falei das flores”, do cantor e compositor Geraldo Vandré. Às vaias do público, respondeu o pessoense: “Para vocês que continuam pensando que me apoiam vaiando: a vida não se resume em festivais.” Hoje talvez a mesma afirmação perdesse o efeito, tendo em vista a força totalizante da indústria cultural.

Ao fazer da vida dos participantes um jogo apoiado na eliminação do outro, o programa televisivo obriga também o público a jogar e então participar da dinâmica excludente que o alimenta. Dessa forma, rompe-se a fronteira entre a realidade exterior e interior à televisão. Logo, morte simbólica engendrada pelo cancelamento de Karol não destitui a iminência da morte real. Vale lembrar aqui do apelo desesperado de Jorge — filho da participante — em função dos ataques e ameaça de morte recebidos nas redes sociais.

A princípio, o levante geral contra o ímpeto excludente de um sobre o outro parece testemunhar os avanços rumo a uma sociedade mais justa e intolerante a qualquer indício de violência. O comportamento da audiência tem, no entanto, mostrado o contrário: trata-se menos de superar a barbárie do que de camuflá-la; trata-se não de eliminar o horror, mas simplesmente de ocultá-lo. Assim, mesmo a perspectiva de romper a ordem das coisas a partir da agência dos grupos sociais discriminados — entrevista por Antonio Candido em “O direto à literatura” — é contraída e menorizada, tendo em vista a domesticação dos afetos promovida pela indústria cultural. Ao incorporar a seu funcionamento o discurso outrora subversivo, esvazia-o de sentido, fazendo da crítica um motor de seu funcionamento.

Seria a literatura o território onde cada um de nós poderia ensaiar e vislumbrar a emergência de novas ideias e realidades, avessas à ordem cotidiana. Porém, que literatura pode ainda existir em um mundo onde também as necessidades de fabulação são dirigidas pela indústria cultural? Que novos horizontes se podem abrir frente a nós, se a emergência do singular está interditada pela imaginação do que é sempre idêntico?
 

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