Arapucas machadianas. Da barbárie à violência asséptica
Por Guilherme de Almeida Gesso
Se sobre os olhos de Capitu já
foi dito serem “oblíquos e dissimulados”, não será exagero aplicar os mesmos
adjetivos ao estilo machadiano, deliberadamente arquitetado para engolfar o
leitor desatento numa armadilha macabra. De sobreaviso e com o “pé-atrás”,
buscaremos neste ensaio comparar os expedientes dos narradores Brás Cubas e
Bento Santiago, levando em consideração os artifícios enganadores de que lançam
mão nos respectivos romances que compõem. Em primeiro lugar, traçaremos
relações entre a infância desses personagens e as posturas narrativas que
ulteriormente adotam, demonstrando que, de fato, “o menino é o pai do homem”;
depois, cotejaremos os procedimentos para que fique evidente o quão perigosa é
a urdidura de Dom Casmurro, a tal ponto engenhosa que torna os arroubos das Memórias
Póstumas um jogo pueril, visto retrospectivamente como a mera pré-história do
engano.
1. A fruta dentro da
casca
Sabe-se que a viravolta realista
de Machado de Assis envolve a prospecção interna dos abusos da elite. Quando se
atribui a palavra diretamente aos narradores abastados, todas as contradições
de sua situação vêm à tona, ainda que de modo enviesado. Se o método foi
repisado numa série de romances, que formam um poderoso libelo antiburguês, não
convém, entretanto, olvidar as consideráveis diferenças entre as perspectivas
enfaixadas por cada um. Seria possível descrevê-las em detalhes, mas nos
interessam apenas os contrastes entre as Memórias Póstumas e Dom Casmurro,
sobretudo no que tange à vida de seus narradores, às condições sociais a que
estão submetidos e à praxis narrativa propriamente dita.
Com prazer sádico, Brás Cubas
conta a sucessão de desmandos que realizou em vida, agravados pela
inimputabilidade garantida por sua posição privilegiada. Cheio de orgulho, ele
relata como quebrou a cabeça de uma escrava que o desagradara, ou o fato de que
montava no preto Prudêncio, ou ainda o momento em que realizou a “travessura”
de delatar os namoricos do Dr. Vilaça e dona Eusébia. A todas as contravenções
do filho, o pai responde com um conivente “ah! brejeiro!” (p. 43), louvando as
marotices do garoto sem impor limite algum. O pequeno Brás, portanto, possui
todos os poderes de um déspota, aos quais se acresce a sua já despótica
distinção de classe. Protegido por aquilo que Raul Pompéia chama “a estufa de carinho
que é o regime do amor doméstico” (p. 11), a criança pode desde cedo introjetar
o exercício do arbítrio, condição necessária e suficiente para que herde, de
uma vez por todas, a carapuça do poder patriarcal.
Nesse sentido, Roberto
Schwarz (2000) descreve com riqueza de detalhes a feição social dessa figura
que monopoliza as atenções do livro, tomado pelo intento narcísico de provar
seu próprio poder. Segundo o crítico, tanto a postura infantil quanto a postura
adulta, a do narrador, devem ser explicadas segundo uma matriz social, um chão
histórico que embase os horizontes possíveis da psicologia individual. Na
medida em que reflete a onipotência da elite brasileira oitocentista sob o
estigma do escravismo, a volubilidade do narrador-personagem não é gratuita,
mas causal. Quem é desde cedo premiado pela violência pode muito bem, no ato da
narração, desrespeitar o leitor, mudar de assuntos como quem vira a casaca, fazer
pouco-caso da tradição literária ou mofar de toda sorte de pobres coitados.
À onipotência de Brás se
contrapõe o acanhamento infantil de Bento Santiago. D. Glória, sua mãe, decide
seu destino ao prometer a Deus que enviaria o filho ao seminário, reservando-o
para a vida eclesiástica. Bentinho deseja, entretanto, unir-se a Capitu e
livrar-se do dever do celibato; para tal, conta com a astúcia da companheira,
capaz de maquinar uma miríade de planos. O percurso de convencimento ou de
reversão da situação passa pelo conluio à meia-voz, uma vez que o
descontentamento do casal juvenil não pode se expressar diretamente, aos
gritos. Enquanto o jovem Cubas esbraveja e bate, ordena e decide, a criança
criada sob os tetos de Mata-Cavalos vê a autonomia subsumida pelo guarda-chuva
materno, ordem heteronômica contra a qual pouco se pode fazer. D. Glória, dessa
forma, em conjunto com o agregado José Dias, na ausência do chefe de família
originário, morto no presente da narrativa, herdam as prerrogativas do
paternalismo.
Conforme explica John Gledson, a
obra machadiana é prenhe de casos de morte ou ofuscamento do pai, e disso
decorre uma redistribuição do poder, cujos efeitos nem por isso deixam de ser
notáveis. O mesmo acontece em Iaiá Garcia quando Valéria delibera sobre o
futuro de Jorge, controlando-lhe feito títere. Se “Memórias Póstumas mostra a
diminuição da autoridade paterna, já que o pai de Brás Cubas é antes indulgente
que autoritário” (GLEDSON, 1991, pp. 61-62), Dom Casmurro expõe o drama de
alguém pouco habituado à escolha e à reflexão, terceirizadas em nome ora de
Capitu, ora da “mamãe” - palavra não à toa repetida nada menos que cinquenta e
oito vezes ao longo do romance.
Digamos então que as diferenças
de criação acima dispostas reverberam em posturas narrativas. No livro de 1881,
deparamo-nos, como destacado, com uma figura arrogante, potente, imbuída na
demonstração ostensiva da amplidão sem limites de suas possibilidades. A
descontinuidade dos capítulos e a violência de certas passagens (como aquelas dedicadas
ao professor Ludgero Barata e a Dona Plácida), bem como o modo pernóstico como
cita a tradição literária ou filosófica relacionam-se perfeitamente com uma
infância abastada, cujos horizontes práticos nunca foram cerceados, pois a
porteira do arbítrio esteve sempre aberta. Na mesma linha, não causará
estranheza o fato de que o narrador de Dom Casmurro apresenta-se ao leitor com
mais polidez e recato, respeitando o pacto narrativo e a continuidade do
entrecho. As convenções da civilização são aqui mantidas incólumes, pelo menos
aparentemente, o que dá ao narrador um perigosíssimo verniz de confiabilidade.
Acostumado a expressar-se por meias-palavras, obliquamente, em decorrência de
uma infância estrangulante, o mal-humorado Dom Casmurro fará do retrato
literário algo muito distinto do que se vira no romance anterior. Os limites
com que teve de conviver transfigurar-se-ão, com toques diabólicos, no
procedimento narrativo propriamente dito, marcado pela criação de subtextos e
pelo apagamento (ou criação) das evidências.
Em ambos os romances, recorre-se
a metáforas que sugerem uma continuidade essencial entre começo da vida e suas
decorrências. Nas Memórias, diz-se que “o menino é o pai do homem” (p. 42), o
que indica que os dados objetivos do meio familiar podem explicar, mesmo que
sem determinismo, comportamentos futuros do sujeito. Por sua vez, o desfecho de
Dom Casmurro tenta demonstrar que a Capitu da praia da Glória já estava dentro
da de Mata-Cavalos, “como a fruta dentro da casca” (p. 637). Por analogia,
pode-se inferir a continuidade entre os meninos, suas condições específicas e
as técnicas narrativas depois levadas a cabo na vida adulta, salientando-se
este dado fundamental: um expressa, o outro suprime conteúdos; um se revela
feito pavão, falando pelos cotovelos; o outro, enrustido, carrega sempre um
sentido subjacente, a ser descoberto.
2. Barbárie e
violência asséptica
Da descrição do estilo de cada
narrador, depreende-se que a expressão de Bento Santiago, velho, isolado e
ressentido, prima antes pela sutileza que pela ostentação. A “poesia
amargurada” dessa figura, como a define Roberto Schwarz, prepara a cada passo
uma nova armadilha que deve ser desarmada pelo leitor. Principalmente porque os
toques de refinamento, o domínio cultural e o cosmopolitismo do Casmurro
colocam-no acima de qualquer suspeita, porquanto seus “recursos intelectuais
são a cobertura cultural da opressão de classe” (SCHWARZ, 1991, p. 88). Brás
Cubas é a barbárie nua e crua, embora entremeada pelos laivos mais avançados da
elegância europeia. Com o respeitável Santiago, a violência se enquadra numa
arquitetura institucional, diluindo-se por isso mesmo numa cadeia de
formalismos.
Pode-se analisar a arapuca de
diversas maneiras. Escolhemos tratar as marcas textuais que tornam Dom Casmurro
o mais fidedigno dos textos, de tal maneira que o insólito do relato é
engenhosamente colocado para debaixo do tapete. Lembremos que o romance enfaixa
duas dicções, uma leve e idílica, outra acusatória e sombria. O bacharel usa de
todas as artimanhas para fazer com que a sucessão de capítulos ganhe a feição
de silogismo e dedução, muito embora na realidade eles sejam objetivamente
indutivos e imaginosos. Tal como num conto de João e Maria, deixam-se
pedacinhos de pão pelo caminho, pistas que convencem o público, mas que podem
também, se lidas a contrapelo, denunciar o narrador, a depender da profundidade
de leitura. Nesta obra, vence-se pela insistência, pois “há conceitos que se
devem incutir na alma do leitor, à força da repetição” (p. 488). Defendendo-se a
priori de qualquer tentativa de refutação, o processo acusatório tenta desde
sempre ser convincente, mesmo antes que seja revelada a dimensão jurídica, e
portanto interessada, da composição:
“Mas é bom ser
enfático, uma ou outra vez, para compensar este escrúpulo de exatidão que me
aflige” (p. 516)
“E sendo esse livro
a verdade pura, é força confessar que tive de interromper mais de uma vez
minhas orações” (p. 529)
“Eu confessarei tudo
o que importar à minha história. Montaigne escreveu de si: ce ne sont pas mes
gestes que j’écris; c’est moi, c’est mon essence. Ora, há só um modo de
escrever a própria essência, é contá-la toda” (p. 544)
“E, visto que digo
tudo, fazê-lo renunciar ao pagamento da minha promessa” (p. 545)
“Digam a verdade, só
a verdade, mas toda a verdade” (p. 557)
O recado é capcioso:
supostamente, tudo que vai escrito é guiado pela minudência, o escrúpulo, o
respeito inegociável pela verdade. O discurso é difundido en passant, sem
maiores alardes, o que torna a confiabilidade do texto um aspecto dado,
impassível de maiores discussões, quase subliminar. Sintomático, nesse sentido,
é o uso de orações reduzidas de gerúndio e particípio (marcado pelas formas
‘sendo’ e ‘visto’), pois a brevidade dessas subordinações como que apaga seu
teor autoritário e comprobatório, deslocando a atenção do leitor para as
orações sintaticamente principais. Garante-se que o narrador diz “a verdade, só
a verdade, mas toda a verdade”, e isso se dá como um aparte ameno, cujo
resultado estratégico consiste na transformação da dúvida em certeza. A boa
consciência de Dom Casmurro é uma segunda natureza do leitor desprevenido.
Que dizer, então, das maluquices
de Brás Cubas? Como compará-las ao edifício calculista engendrado por Bento
Santiago? Pois que se no último caso tudo adquire a forma exterior da
seriedade, no primeiro o disparate ocupa posição central, transfigurando-se em
nó da composição. Ora, o próprio título do romance, as Memórias Póstumas, como
lembra Roberto Schwarz, já é em si um oximoro, e apenas após alguns volteios
lógicos e forçando-se a nota pode-se pintá-lo como viável. O delírio do
narrador, mistura de mania de grandeza e surrealismo avant la lettre, reúne
imagens tão abstrusas como um “barbeiro chinês”, a “Summa theologica de São
Tomás”, um “hipopótamo” e “Natureza ou Pandora” (capítulo VII). Para o efeito
de conjunto disparatado, contribuem as digressões filosofantes, as citações
ornamentais e as anedotas sobre a high society. A circunspecção é virada ao
avesso e tudo se transforma em motivo de diversão para Brás Cubas, o trickster no
Segundo Império brasileiro. Esta figura, em suma, não deve ser levada a sério;
o contrassenso, com efeito, solapa as possibilidades de que o leitor se fie por
muito tempo na boa fé do narrador.
Estabelecida a diferença
fundamental entre Brás e Bento, cabe retomarmos a linha de um dos argumentos
centrais de John Gledson. Em Dom Casmurro, o menino mimado é por conseguinte
inexperiente, ou seja, incapaz de captar a verdadeira substância das relações
sociais e intersubjetivas. Assim, “porque não consegue compreender o mundo ou
as outras pessoas como realmente são, cria, defensivamente, sua própria versão
deles” (GLEDSON, 1991, p. 83). Já adulto, escreve uma peça de ataque contra
Capitu, a suposta adúltera, e é necessário reter não apenas sua tendência a
crer na verossimilhança pura e simples, que não precisa passar pelo teste da
verdade, como também o esforço do narrador para formar um relato verossímil,
irrefutável. Brás Cubas, por outro lado, apesar de ser um “defunto autor, para
quem a campa foi outro berço” (p. 25), comporta-se segundo um egoísmo mundano
vivíssimo, do qual se extrai mais facilmente o caráter interessado de suas
palavras. Sua máscara, assim digamos, cai por terra, ao mesmo tempo que a
consistência de sua imagem é maculada.
Se o raciocínio procede, fica
simples concluir que a despeito dos maus modos de Brás Cubas, é a polidez de
Bento Santiago que encerra os maiores problemas. Quando a violência se expressa
sem rodeios, é possível identificá-la de imediato, apesar da paralisia causada
pelo choque. Quando, no entanto, ela se confunde com os “fumos de fidalgo” (p.
443), acaba por aprofundar seu poder de logro. O bacharelismo do Casmurro, o
respeito à forma e ao decoro, promovem uma calúnia que segue todos os passos do
verossímil, com o risco de perpetrar-se a barbárie sob uma capa institucional.
Durante décadas, não à toa, a crítica nacional foi atraiçoada pelo canto da
sereia, tamanha a eloquência da toada. Se a crítica americana Hellen Caldwell
pôde discernir o que há de complicado no romance, esgaravatando os propósitos
escusos do narrador, isso foi após muitos erros (sintomaticamente) cometidos em
nossas próprias terras.
Ao avançar do espalhafato dos
Cubas à finura de Dom Casmurro, Machado plasma na forma do texto um aspecto
sócio-histórico central, qual seja, a sofisticação da violência institucional,
tão típica da modernização burguesa. Os ideais românticos de imparcialidade e
neutralidade são solapados por dentro, mostrando-se ideológicos. É certo que os
horizontes da História não apontam, ainda, a reversão da ideologia em progresso
efetivo, mas já o fato de Bento Santiago poder ser visto, no Brasil, como um
vilão do entrecho, é um marco civilizacional. Quando lida, a obra machadiana
nos engana; ao nos ler, psicografa as aporias de uma formação cheia de
falências.
Bibliografia
ASSIS, Machado de. Todos
os romances consagrados: volume 2 (Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas
Borba, Dom Casmurro). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.
CALDWELL, Helen. O
Otelo brasileiro de Machado de Assis: um estudo de Dom Casmurro. Cotia: Ateliê
Editorial, 2008.
GLEDSON, John. Machado
de Assis: Impostura e Realismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
POMPEIA, Raul. O
Ateneu. São Paulo: O Estado de São Paulo/ Klick Editora, 1996.
SCHWARZ, Roberto. “A
poesia envenenada de Dom Casmurro”. In: Novos Estudos CEBRAP, n. 29, março de 1991.
SCHWARZ, Roberto. Um
mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Editora 34, 2000.
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