Aprendizagem da dúvida: Tensões entre desolação e fé no romance “Hóspede por uma noite”, de Shmuel Agnon
Por André Cupone Gatti
Shmuel Agnon. Arquivo: Casa Agnon |
Os shtetl, redutos habitacionais dos judeus na Europa do leste, após a Primeira Guerra Mundial, encontravam-se fisicamente destruídos, habitados por indivíduos igualmente arruinados, sem sustento, sem pão e sem fé. Os judeus da Galícia de então, vivos num mundo agonizante, não voltaram seus olhos uma outra vez para a tradição judaica e o mundo, senão repletos de desolação, desorientação e sentimento de abandono. Não obstante a agonia da diáspora, em Israel uma renovada vida judaica mirava o futuro e fazia ebulir a chamada questão judaica. Um choque entre essas direções, a da diáspora e a da Terra de Israel, criaria uma ideia suspensa, imbuída de nostalgia, sobre o que já foi, o que é, e como será o povo judeu.
Movido, dentre outras coisas, por esse choque, o escritor israelense Shmuel Iossef Agnon (1887-1970), compõe o romance que viria a ser considerado a sua obra-prima. Hóspede por uma noite, publicado pela primeira vez em 1938, é um relato ficcional de um judeu que, após residir por muitos anos em Israel, retorna à sua cidade natal, Szibusz, para uma breve visita que se transforma numa longa estadia. Inspirado em uma visita que Agnon fez à sua cidade natal, Buczacz, em 1930, Hóspede por uma noite, entrelaçando autobiografia e ficção, reflete sobre o mundo suspenso no qual se encontram aqueles judeus de Szibusz, optando para isso pelo difícil e cambiante caminho entre a incerteza dos fatos e a certeza das tradições. Esse caminho, mais que um mero acaso discursivo, é uma construção consciente de Agnon para pensar mais profundamente tudo aquilo que seus olhos veem. A importância central da dúvida no romance em questão, bem como os significativos desdobramentos da tensão entre desolação e fé, são os temas sobre os quais este texto pretende refletir.
O narrador de Hóspede por uma noite, reencontra, em meio ao que sobrou de Szibusz, a velha casa de estudos tão bem aproveitada por ele em sua juventude. Visto que este recinto está quase completamente abandonado tanto física quanto espiritualmente, ele, ao receber casualmente a chave do lugar, incumbe-se de cuidá-lo, dar-lhe utilidade e vida. Esse narrador, oscilante entre o hotel que se hospeda e a velha casa de estudos, observando, no meio desse caminho, o cotidiano desesperançoso das pessoas da cidade, sente em seu espírito a perda de unidade entre os judeus da Europa e, em certa ocasião, ao comentar os remendos que a dona do hotel faz em sua roupa, poderia estar falando do próprio destino judaico: “E talvez os remendos perdurem mais do que a camisa.” (AGNON, 2014, p. 265)
E nesse seu
constante observar, tece comentários que, se se iniciam cheios de certeza,
terminam cheios de interrogação, como quando, em passeio pelo cemitério,
primeiro diz que seus olhos estão ao dispor do coração e este, ao dispor de
Deus, e logo em seguida expressa desconsolo face à indiferenciação dos mortos,
os quais “agora que morreram, perdeu-se a esperança de uns e esvaneceu-se o
desgosto de outros.” (p. 133) E tal como observa, continua a oscilar do
hotel à casa de estudos e vice-versa, ou seja, continua a fundar seus
pensamentos entre aquilo que representa a transitoriedade, a passagem e a
diáspora (o hotel), e aquilo que representa a tradição, a perenidade e a
lembrança da Terra de Israel (a casa de estudos).
Esses dois mundos, o da fé e
o da dúvida, na consciência e na voz do narrador, aos poucos se tocam, se
explicam, se contradizem e se misturam. Sintomático exemplo alegórico desse
movimento é a passagem em que o personagem-narrador, distraído, tenta abrir a casa
de estudos com a chave do hotel e relata “Entre uma coisa e outra, confundi a
chave do hotel com a chave da casa de estudos.” (p. 308) Seria essa
passagem também uma outra alegoria a nos dizer que nem sempre é possível
interpretar os assuntos mundanos à luz dos assuntos divinos, bem como o seu
inverso, pois essa chave não cabe naquela fechadura?
O que podemos afirmar é
que o símbolo da chave comenta, do primeiro ao último capítulo, algumas das
principais questões de Hóspede por uma noite, tais como as heranças da Tradição
e da História, o acesso à esperança e o livre trânsito entre dois mundos
distintos. Até mesmo quando o ânimo para se ocupar das reflexões sagradas
esmorece, a chave da casa de estudos faz as vezes do pensamento flutuante do
narrador, que, por um lado não se deixa enferrujar nos preceitos, e por outro
não se detém em soluções definitivas: “Por vezes entro na casa de estudos, mas
não permaneço lá, apenas abro e torno a trancar, para que a chave não enferruje
[...]”. (p. 429)
O meio do caminho é, portanto, a estrada eleita para os passos desse narrador que é uma espécie de flâneur. Em outras palavras, nos deparamos com uma voz que dá mais atenção às perguntas que às respostas. Se o estilo de Agnon remete ao estilo dos escritos didáticos, professorais, dos ensinamentos sagrados, as indecisões que apresenta, os contrastes e contradições, conferem finíssima ironia a essa malha textual. Os desvios e a desorientação do narrador e, nesse caso, também do judeu da diáspora, traduzem-se nos desvios do texto, pois aquele que, muitas vezes, ao se dirigir à casa de estudos, é interrompido por alguém, ou que, ao refletir sobre a grandeza dos preceitos, desvia aos fatos trágicos da realidade imensurável, esse homem não se abstém de construir um relato em que esteja presente, no tema e na forma, a natureza cambiante dos seus pensamentos e das suas experiências.
Um dos pensamentos mais fortes que lhe ocorre
quando programa a sua partida, é o destino da chave da casa de estudos - aquela
que ele mandou fazer após perder a primeira. A quem entregar a chave do reduto
espiritual da cidade? Entrega-a ao filho de Ierukham Liberto e Raquel. Essa
chave, esse símbolo da tradição sagrada dos judeus da diáspora, então, será
destinada às titubeantes mãos de um recém-nascido, esse menino a quem foi dado
o mesmo nome do narrador, esse menino cujas ações não podem ser previstas tais
como não podem ser previstos os eventos da História.
Ao lado da ironia, a nostalgia está presente em todo o romance. A visão de um mundo que foi vencido pela fragmentação do homem moderno, seja ele judeu ou não, e pela bárbara relativização do que é ser humano, só poderia mesmo instigar pensamentos tão contrastantes, profundos e inconclusivos como aqueles que o narrador de Hóspede por uma noite tece. Já de volta a Israel, essa terra onde, apesar da intensa movimentação sociopolítica, as inquietações espirituais parecem arrefecer, o narrador reencontra a primeira chave da casa de estudos, aquela que ele pensara ter perdido. Guarda-a então como a parcela de nostalgia que lhe cabe por ser um judeu entre dois mundos, e como a esperança de que um dia os judeus voltem a ser um só povo.
Livro sobre um homem que caminha por terras devastadas de uma velha Europa, que deflagra a agonia de uma velha tradição que lhe incita os mais incertos pensamentos, Hóspede por uma noite pode ser encarado como um livro de lições. Lições essas de judaísmo ao leitor leigo, mas não só, lições de como a tradição judaica viveu seus últimos dias na Europa do leste, e, principalmente, lições sobre o observar, o duvidar e o refletir, sobre aquilo que motiva uma pergunta e sobre aquilo que leva uma resposta ao seu impossível, ou provisório, fecho.
BIBLIOGRAFIA
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