A superfície de Hemingway (III) – Adeus, Hemingway

Por João Arthur Macieira


Ernest Hemingway e Fidel Castro, Cuba, 1960. Foto: Salas



As formas pelas quais uma cultura lê sua literatura por vezes depende mais do contexto histórico do que das qualidades do próprio objeto literário. Além disso, esse mesmo contexto é composto por diversas perspectivas críticas, muitas vezes conflitantes e, para a crítica e a historiografia literária, pode ser mais interessante investigar essa diversidade do que se limitar à análise intrínseca da obra, ainda que essa seja indispensável. 

Nesse ensaio, vamos comentar duas imagens distintas do mesmo Ernest Hemingway, ainda que nenhuma delas tenha se debruçado sobre sua produção literária para justificar-se. Trata-se aqui do filme de Tomás Gutierrez Aléa, Memórias do subdesenvolvimento (1968) e a autobiografia romanceada de Guillermo Cabrera Infante, Corpos divinos (2016). Essas obras apresentam perspectivas diferentes, e os sentidos que empregam à recepção (ou, no caso, a despedida) de Hemingway sejam pautados mais pelo contexto histórico no qual estão inseridos do que por uma avaliação da obra literária.

Todo leitor de O velho e o mar sabe que Cuba teve um papel crucial para a literatura do velho Hemingway; crucial não apenas para essa novela mas também para quase toda sua literatura publicada postumamente. Mas, como veremos a seguir, a imagem póstuma do escritor no contexto cultural cubano foi objeto de disputa e não parece ter havido uma definição. Certo é que Hemingway continua sendo influente para a literatura cubana contemporânea (e assim, mostra mais um ramo de sua presença na literatura internacional), como vemos na obra de Leonardo Padura – Adeus, Hemingway Fuentes. Um autor como Hemingway, tão mal lido no último século,  precisa desse tipo de recuperação.

Hemingway devia ser insuportável

A certa altura do filme Memórias do subdesenvolvimento, Sergio (o protagonista da narrativa) visita a casa deixada por Ernest Hemingway em Cuba, deixada pouco depois da Revolução, uma vez que os Estados Unidos cortaram suas relações com o governo revolucionário. A casa é apresentada pelo antigo empregado do escritor, agora uma espécie de guia turístico, capaz de descrever com detalhe cada objeto e seu papel na rotina de Hemingway. Construção singular, para não dizer estranha, cuja maior bizarrice é provavelmente a torre na qual o escritor trabalhava. Todos os dias, das seis da manhã ao meio-dia, ele escrevia em pé em sua máquina. Há também centenas de livros espalhados por estantes e mesas, além do famoso quadro do jovem Balzac no primeiro andar.

Sergio não parece muito impressionado. Ele abre um livro e lê algumas das primeiras linhas do conto The Short Happy Life of Francis Macomber, considerado um de seus melhores “contos africados”. Para Sergio, basta o primeiro parágrafo para reconhecer no autor o aproveitador que teria sido em vida. Usurpou as mulheres com quem dormiu, os animais que caçou e os pobres que contratou (o guia turístico de sua antiga moradia e ex-empregado de Hemingway é descrito como um escravo recém-liberto). Mas o que a descrição deseja é ligar a imagem de escritor ao imperalismo estadunidense. A ilha, como seus habitantes, não teria passado de um retiro tranquilo, a sua Cuba para ir a praia, beber e visitar os cassinos: “Hemingway debió ser un tipo insuportable”, diz Sergio. Não é por acaso que, pouco depois, o filme segue para uma discussão sobre dependência cultural na América Latina entre intelectuais locais: se a dependência cultura é, como a econômica, uma relação estrutural, uma das missões da revolução é recriar a cultura em suas bases. Entende-se bem o recado para a literatura, em particular: chega de Ernest Hemingway, a ruptura com o realismo estadunidense é total.

É outra a imagem ou melhor, as imagens literárias tecidas por Guillermo Cabrera Infante para o escritor em Corpos divinos. Cheias do humor, acidez e honestidade que lhe são características, nem por isso elas deixam de prestar a Hemingway a importância que lhe é devida. Numa, encontramos Hemingway bêbado urinando em alto-mar em meio a gravação de uma adaptação cinematográfica de O velho e o mar. Noutra, o escritor lança um soco em direção ao rosto de um dos amigos de Infante (sem um motivo razoável), que felizmente erra no vazio. Mas há também uma imagem historicamente significativa nesse livro: Fidel Castro e Hemingway enfrentam-se logo depois da Revolução numa pescaria, provavelmente fictícia. Os dois são descritos como heróis clássicos, de estaturas elevadas e barbas mediterrâneas, expressões do ideal de virilidade masculina no século XX. Castro, sorrindo mostra ao escritor um peixe maior que o seu. Hemingway – ou, como lhe chama o personagem Fidel Castro, “mister Way”, é vencido na sua principal arte.

Infante nem precisaria explicar o significado dessa derrota para Ernest Hemingway: a partir de agora, é “Fidel Castro” o primeiro nome a habitar a imaginação cultural quando ouvimos o nome de Cuba. Não é mais a sua ilha. Essa para ter sido uma forma de considerar, ou melhor, reconsiderar o legado de sua obra para o mundo que estaria por vir em Cuba. Menos que uma ruptura com o imperialismo e uma revolução, trata-se da emergência de um novo rosto e uma nova cultura da ilha, que talvez não precise mais, a partir dos anos 1960, de Santiagos e seus peixes.

As perspectivas, apesar de oferecerem imagens diferentes, não podem negar os fatos: desde a Revolução, era hora de dizer adeus a Ernest Hemingway. Ainda assim, há múltiplas formas de dizer adeus e as suas diferenças não são pouco significativas para a formação do cenário cultural cubano na segunda metade do século XX. Nem para o cenário cultural em todo o mundo.
 
O insuportável em Hemingway

De nossa parte, nem é preciso discordar do personagem Sergio: Hemingway devia mesmo ser insuportável, principalmente para si mesmo. E seus leitores têm hoje mais do que seu suicídio para considerar as coisas dessa forma. Desde os contos de juventude publicados em in our time, a atmosfera dominante em sua literatura é a ansiedade e a possibilidade da morte. O narrador desses contos descreve ações de forma minuciosa, mas é como se temesse levantar os olhos para encarar o contexto mais largo que o cerca. É inegável que o escritor inventou uma forma de narrar incontornável para os melhores contistas americanos das futuras gerações, como John Cheever ou Raymond Carver.

Essa forma de narrar leva muito rapidamente da descrição de ações simples e banais, como o enrolar de uma linha de pesca ou a forma como um café é coado, para o nada absoluto e a morte. “Indian Camp”, um conto comentado em outro texto meu nesse mesmo blog (ver o final do texto), é exemplar nesse sentido: dentro da barraca, a descrição do nascimento de uma criança, do lado de fora o pai do recém-nascido comete suicídio.

O insuportável em Ernest Hemingway foi muito além do fato do escritor compartilhar gostos e hábitos com playboys estadunidenses. Hoje temos a oportunidade de lê-lo a partir dessa ansiedade e menos através de sua imagem do super-macho. O insuportável em Hemingway ainda tem muito nos ensinar.

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