“A mobilidade infinita”: um comentário sobre o gênero trágico no Fausto, de Goethe
Por Felipe de Moraes
I
PRÓLOGO NO TEATRO
“So schreitet in dem engen
Bretterhaus
Den ganzen Kreis der Schöpfung
aus,
Und wandelt mit bedächtger
Schnelle
Vom Himmel durch die Welt zur
Hölle!”
Faust — J. W. von Goethe
Em carta datada de cinco de maio
de 1797, Schiller escreve a Goethe dizendo da revisitação que fez da Poética
de Aristóteles e das considerações acerca do gênero trágico realizadas pelo
filósofo grego, que a seu ver eram demasiadas normativas no que concerne à
forma exterior que se deveria adotar para a transmissão do discurso trágico
(GOETHE; SCHILLER, 2014, s.p.). Aristóteles surgia, então, para ambos, como o “juiz
infernal” daqueles que cultivavam uma poética como estrutura dada pronta e
acabavam por não refletir filosoficamente sobre as formas poéticas.
Um mês depois, em vinte e dois de
junho, a obra embrionária de Goethe, o Fausto, apareceria como tema de
discussão para ambos. Os comentários feitos por Schiller, nas cartas de vinte e
dois e vinte e seis de junho, serão uma baliza importante para os comentários
que tecerei neste ensaio, em que tentaremos discutir como se dá o entendimento
do gênero trágico na primeira parte do drama goethiano.
Para tanto, comentaremos aspectos
do “Prólogo no Teatro” (“Vorspiel auf dem Theater”), onde o próprio autor põe
na boca de suas personagens uma reflexão sobre o gênero do drama e seu
entendimento moderno. Não perderemos de vista, sobretudo, a enorme complexidade
do poema trágico de Goethe e dos conceitos fundamentais discutidos entre ele e
Schiller, de modo que não se pretende enquadrar uma obra composta por mais de
sessenta anos numa chave redutora de leitura.
II
OS POETAS FILÓSOFOS
Aristóteles afirma em sua Poética
que a tragédia é a mimese das ações de homens elevados e que por meio da
compaixão e temor deve-se suscitar a catarse (1449 b) (ARISTÓTELES, 2017, p.71-2)¹.
Tal programa orientou a composição de boa parte das tragédias do mundo antigo
que chegaram até nós e se estenderam por quase todo século XVII, sobretudo no
classicismo francês, que teve em Racine seu principal expoente. Contudo, a
visão unificada e harmônica que sustentava essa forma trágica do discurso
poético, em um mundo pós Revolução Francesa, não era capaz mais de amparar a
concepção de que homem na sua individualidade (instância subjetiva) e a
Natureza (instância objetiva) permanecessem conciliados, sendo a arte concebida
como um reflexo divino ao qual o artista estaria submetido. Um deslocamento do
centro gravitacional do pensamento estético ocorre (ROSENFELD, 2015, p.151), de
tal maneira a possibilitar que as formas cristalizadas dos conteúdos artísticos
fossem repensadas historicamente.
Goethe e Schiller são os
principais observadores da fissura que surge no equilíbrio clássico, e passam a
pensar as categorias da teoria da literatura e das artes plásticas rejeitando
as cartilhas do bom escrever. Isso não significa, porém, que o mundo das
antigas tragédias e das epopeias tenha sido completamente ignorado por ambos,
antes o contrário, houve um mergulho profundo por parte tanto de Schiller
quanto de Goethe na leitura de toda essa tradição a fim de que o pensamento
moderno que então se articulava pudesse se relacionar com a tradição,
recolocando e repensando os modelos clássicos. Essas recolocações da cultura
clássica, no entanto, eram formuladas diferentemente para ambos: Goethe
movia-se na esfera poética, a teoria estava sempre associada à intuição
que conduz o mundo sensível do artista; Schiller, por sua vez, está mais
interessado nos conceitos que o pensamento filosófico erige, tendo em
vista sempre uma instância racional superior. Mas é desse encontro entre “imaginação
e entendimento”, para ficarmos com a tipologia kantiana, que foi possível uma
articulação firme entre poesia e filosofia, entre intuição e pensamento.
Vejamos com mais vagar, agora, antes de passarmos aos comentários do segundo
prólogo do Fausto, como viam a poesia trágica.
Peter Szondi, em um ensaio curto e
bastante denso, retoma uma curiosa fala de Goethe, ao chanceler von Müller,
sobre o que pensava ser o trágico: “Todo trágico baseia-se em uma oposição
irreconciliável [unausgleichbar]. Assim que surge ou se torna possível
uma reconciliação [Ausgleichung], desaparece o trágico.” (GOETHE apud SZONDI,
2004, p.48)
Para Goethe a reconciliação entre
duas forças opostas eliminaria a própria essência do trágico em nome de uma verdade
unificadora. Tal verdade apagaria uma tensão que existe entre o querer e o poder
de um Eu, ou seja, sempre vislumbrando a partida e o avanço, o Eu moderno não
se reduz a um estado uno, em que sua identidade se fixa na reconciliação de
suas paixões violentas (basta que pensemos em Édipo, que pela ação descobre
quem é e ao final, suscitando o terror e a piedade, torna-se um vate peregrino,
um instrumento dos deuses). O Fausto goethiano não encontra a reconciliação
mesmo após a morte, seu espírito paira indefinidamente no éter divino, sem
alcançar um termo definido — “Tudo o que é efêmero é somente/ Preexistência;/ O
Humano-Térreo-Insuficiente/ Aqui é essência;/ O Transcendente-Indefinível/ É
fato aqui;/ O Feminil-Imperecível/ Nos ala a si.” (GOETHE, 2007, p.1061-5).
Fausto torna-se irreconciliável [unausgleichbar] consigo mesmo na medida
em que não vislumbra a imagem da transcendência [Unbeschreibliche].
Essa demanda fáustica, de um
titanismo infinito, exigiria um significado simbólico que desse conta da
amplitude do tema nórdico do poema de Goethe (GOETHE; SCHILLER, 2014, carta
329, s.p.), ou seja, algo que passasse do particular para o geral, no nível do
significante, sem que uma esfera sobrepusesse a outra. Uma tragédia em que em
virtude de sua amplitude irreconciliável, a linguagem simbólica atuasse como um
imã entre as oposições dos caracteres, sempre numa relação dialética.
Creio que seja melhor vermos como
essa densa teoria moderna dos gêneros aparece poeticamente dentro do poema de
Goethe.
III
A TRAGÉDIA FILOSÓFICA ABSOLUTA
Na primeira parte da tragédia de
Fausto, temos o doutor selando o pacto e fechando a aposta com o diabo, e
ingressando no “pequeno mundo”, junto de Mephisto. A ação que o diabo provoca
na figura passiva de Fausto, velho e rancoroso, é o motor que desencadeia a
tragédia não só dele como de Margarida. Contudo, antes de ter início as
aventuras e a danação da personagem, o poeta constrói uma moldura na forma de
três prólogos, que funcionam como linhas de força para o poema: o primeiro, uma
Dedicatória [Zueignung], em que alma do poeta se dirige às “trêmulas
visões”, que são nada mais que suas próprias criaturas que ainda não surgiram,
mas que logo povoarão as cenas e os atos, são formas ainda incipientes, vagas
ideias que começam a tomar forma [Gestalt]; já o segundo prólogo, no
teatro, personagens alegóricas (o Diretor, o Bufo e o Poeta) discutem sobre o
próprio gênero dramático e como devem montar o espetáculo; por fim, o “Prólogo
no Céu”, onde se dá o encontro entre Deus e Mephisto (retomando a história de
Jó, no Velho Testamento), para discutirem a vida de Fausto. Quero me deter,
entretanto, no segundo prólogo, onde as visões sobre os diferentes gêneros
parecem estar mais condensadas, e colocadas no interior da própria composição
poética.
Três concepções diferentes são
expostas nesse segundo prólogo: o Poeta defende a noção de unidade cósmica do
mundo, do qual ele é o vate que capta a harmonia divina da Natureza — “Não é
com o uníssono que, do Eu emerso,/ Dentro do coração lhe rebate o universo?/
Quando, indolente, a natureza enlaça/ O eterno, imenso, fio sobre o fuso”
(GOETHE, 2007, p.39). O Poeta quer recuperar a unidade perdida do mundo antigo
no interior de sua poesia, anseia que haja um contato íntimo entre natureza e
homem, e que o universo habite no íntimo de cada ser, como um reflexo do mundo
dos deuses nos corações dos mortais². Visão que não compartilham o Bufo e o
Diretor: o primeiro fala de um drama que não concilie as paixões, mas antes as
coloque todas no próprio ato das ações dos homens, de tal modo que o público
seja enlevado pelas sensações discordantes, sem o despertar de uma catarse — “Da
fantasia armai o vasto coro,/ Tino, emoções, paixão, sorrisos, choro, Mas que
não faltem chistes e doidice.” (p.35); o Diretor, por sua vez, quer casa cheia
e o agrado dos espectadores — “Para que se encha a multidão de pasmo,/ Fareis
também de muitos a conquista:/ Amar-vos-ão com entusiasmos./ A massa só se
empolga pela massa,/ Cada um escolhe uma parcel assim;/ Dai muito, a cada um
dando algo que o satisfaça,/ E gratos todos saem no fim.” (p.37).
O conflito de opiniões sobre como
compor um drama é a maneira como Goethe coloca poeticamente questões teóricas e
filosóficas a respeito dos gêneros literários. Uma visão, contudo, não
sobrepuja a outra, mas se diluem no correr da tragédia de Fausto, mas se
traduzem, como apontou Hegel, numa relação entre o épico e o lírico, para
compor o drama. De tal modo, que o “Prólogo no Teatro” dá o tom de todo o poema,
pondo em cena toda extensão do espaço, onde se desdobrará a ação de Fausto e
das demais personagens, abrangendo todo o círculo da criação — “No palco
alemão, como o sabeis,/ Lida cada um a seu talante;/ Não me poupeis, pois,
neste instante,/ Prospetos, máquinas, painéis./ Armai do céu os raios crus e os
suaves,/ Cavernas, rochas, águas, estrelas,/ Podeis sem conta despendê-las, Há
sobra de animais e de aves./ Percorrei,
pois, no estreito barracão,/ Toda a órbita da criação,/ E, em comedido curso
alterno,/ Transpondo a terra, o céu e o inferno.” (p.45).
Quanto à figura de Fausto, como
figura trágica, há um desenvolvimento progressivo: é um completo drama do
caráter, desde a abertura, na cena “Noite”, em que uma torrente subjetiva,
individual, marca os monólogos da personagem, até a cena final, “Furnas
montanhosas, floresta, rochedos”, onde pondera toda sua vida de quase
centenário, e os fantasmas assolam seus pensamentos. Não existe uma máscara,
como disse Schiller em relação à tragédia clássica, que torne Fausto um tipo
universal, mas é seu próprio drama enquanto homem singular que o integra na
contingência histórica. Seus anseios e medos, seu envolvimento amoroso, os dilemas
da vida e da morte, preenchem a personagem e evitam a criação de um tipo
abstrato, alegorizado, como os heróis antigos. O trágico não nasce de um
destino pronto que o homem segue sem conhecimento, como Édipo, Medéia, mas é
experimentado através dos acontecimentos da vida real (SZONDI, 2004, p.50).
Algo que pode parecer contraditório, vindo de uma peça em que o irreal, o
fantástico, calca raízes; contudo, se pensarmos em Mephisto, ele se mostra,
através do entendimento, uma personagem que se despe de toda fantasmagoria, guiando
Fausto através de um “novo teor de vida” (GOETHE, 2013, p.199).
Contudo, outra personagem também se
nega a uma reconciliação e padece da situação trágica — Margarida. A jovem
dama, inocente e pobre, se entrega aos amores com um Fausto rejuvenescido. A
sedução que é insuflada por Mephistopheles leva a moça se deitar com Fausto e
gerar um filho. A partir disso sua vida se desgraça, a mãe acaba morta, o irmão
assassinado, e ela mesma torna-se uma assassina ao matar o próprio recém-nascido
afogado. A tragicidade de Margarida, como já disse Peter Szondi, vem de uma
dolorosa experiência da vida real³ — antes de ir para o patíbulo, não concilia
consigo mesmo, entregando-se à dor e ao delírio dos moribundos: “Não devo; para
mim a esperança está morta./ Por que fugir?/ se estão mesmo a espreitar-me./
Tão triste é esmolar na indulgência,/ E, ainda mais, doendo a consciência!/ É
tão triste vaguear entre estranhos, errante./ E hão de agarrar-me, não
obstante!” (GOETHE, 2013, p.515).
*
Na segunda parte deste ensaio
explorei como o drama trágico ganhava uma nova leitura no que concerne à teoria
dos gêneros. As cartas trocadas entre Goethe e Schiller entre os meses de abril
de 1797 e junho do mesmo ano mostraram como o tema era relevante não só para o
momento histórico e cultural em que ambos estavam inscritos, como para a
compreensão da obra de ambos os escritores. A revisitação que fizeram da obra
de Aristóteles, principalmente da Poética, deixou claro o interesse por
uma nova conceituação histórica dos gêneros literários e a consequente
superação de um “pragmatismo literário” que havia se espalhado com o
classicismo francês. É importante ressaltar que para Goethe a noção de trágico
era algo difícil (ele mesmo disse não ser capaz de ser um poeta trágico),
contudo, a despeito de toda uma postulação teórica que as cartas com Schiller
sugerem, a melhor maneira de compreendê-la é lendo sua obra poética e suas
peças.
Por fim, na terceira parte,
comentei rapidamente algumas cenas do Fausto I, tentando mostrar como
essas conceituações acerca do trágico só ganhavam sentido dentro do texto
literário — sendo o “Prólogo no Teatro” um notável excerto metalinguístico, que
discute a própria obra na sua fatura. Em seguida, explorei rapidamente os dois
principais caracteres da primeira parte da tragédia, Fausto e Margarida,
evidenciando as linhas de força do drama moderno como o drama individual e
subjetivo do indivíduo; a ideia de “oposição irreconciliável”, proposta por
Goethe, foi a linha mestra de minha análise, e um conceito fundamental para se
entender a cena final da segunda parte da tragédia fáustica.
Notas:
1 Vale lembrar que Goethe traduziu
esta mesma passagem da Poética, optando por fazer uma leitura contrária
a que é proposta pelo filósofo grego — diz que a verdadeira tragédia não é
aquela que, ao final, conduz o espectador a um apaziguamento do ânimo, mas
produz uma inquietação no coração que vai de encontro a “uma condição vagamente
indeterminada” (GOETHE, 2000, p.125-6).
2 Hegel, em seu quarto volume dos Cursos
de Estética comenta acerca da relação do poeta dramático e seu público
moderno, comentário por sinal que faz ecoar a fala do Poeta do “Prólogo do
Teatro”. Diz Hegel: “Ao poeta dramático certamente permanece também a saída de
desprezar o público; mas então, justamente no que concerne ao modo do efeito
mais próprio, ele sempre erra a sua finalidade. Particularmente entre nós
alemães, desde a época de Tieck, essa teimosia se tornou moda.” (HEGEL, 2014,
p.217).
3 Segundo alguns críticos, Goethe
estudou os processos de acusação de moças solteiras que foram executadas por
terem matado os próprios bebês. Cf. introdução à cena “Dia sombrio — Campo” por
Mazzari (GOETHE, 2013, p.489).
Bibliografia consultada:
ARISTÓTELES. Poética. Trad.
Paulo Pinheiro São Paulo: Editora 34, 2017.
GOETHE, J. W. von; SCHILER, F. “La
más indisoluble unión”. Epistolario completo (1784-1805). Madrid: Miño y Dávila, 2014.
GOETHE, J. W. von. Fausto —
primeira parte da tragédia. Trad. Jenny Klabin Segall. São Paulo: Editora
34, 2013.
GOETHE, J. W. von. Fausto —
segunda parte da tragédia. Trad. Jenny Klabin Segall. São Paulo: Editora
34, 2007.
GOETHE, J. W. von. “Suplemento à Poética
de Aristóteles”. Trad. Oliver Tolle. In: Trans/Form/Ação, v.21, n.1,
Marília, São Paulo, 2000, p.123-6.
HEGEL, G.W.F. Cursos de
Estética — v. IV. Trad. Marco Aurélio Werle e Oliver Tolle. São Paulo:
Edusp, 2014.
ROSENFELD, Anatol. “Aspectos do
romantismo alemão”. In: Texto/Contexto I. São Paulo: Perspectiva, 2015, p.147-172.
SZONDI, Peter. “Goethe”. In: Ensaio
sobre o trágico. Rio de Janeiro: Zahar, 2004, p.48-51.
WERLE, Marco Aurélio. “A relação
entre a estética de Hegel e a poesia de Goethe”. In. Discurso, n.32, São
Paulo, 2001, p.161-192.
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