Ricardo Piglia em busca do tempo perdido
Por Patricio Pron
“Gostaria de editar este diário em
sequências que sigam as séries de acontecimentos”, escreve Ricardo Piglia:
“todas as vezes que me encontrei com amigos em um bar, todas as vezes que fui
visitar minha mãe. [...] Não uma situação despois da outra, senão uma situação igual
a outra”. A doença degenerativa que foi diagnosticada três anos antes de sua
morte em 2017 impediu o escritor argentino de dar forma a esta tentativa pereciana
de esgotar a experiência; porém, alterar o que seu autor denomina “a
causalidade cronológica” é um dos propósitos mais habitualmente repetidos ao
longo de Los diarios de Emilio Renzi, cujo terceiro e último volume permite
agora vislumbrar o que Piglia poderia ter feito com seus diários se tivesse
obtido um adiamento da sentença: em sua segunda seção, “Un día en la vida” [“Um
dia na vida”], o autor ordena as situações narradas ao longo de vários anos em
uma série joyceana na qual estas aparecem dispostas de acordo com a hora do dia
em que ocorreram, desde a chegada a Buenos Aires em um amanhecer desditoso até
as desculpas noturnas em uma igreja. “Días sin fecha” [“Dias sem data”], a
terceira, explora as possibilidades narrativas de situações excluídas do fluxo
temporal dos acontecimentos.
No entanto, Un día en la vida
adere, em sua maior parte, à situação narrativa estabelecida desde o primeiro
volume da série, Anõs de formación [No Brasil: Anos de formação, Tradução de
Sergio Molina, Todavia, 2017]: Ricardo Piglia transcreve seu diário respeitando
a cronologia original, mas extraindo do material formado por quase sessenta
anos de escritura diarística (de 1957 a 2015) os fragmentos que considera mais
significativos para a recriação de sua trajetória intelectual e do contexto em que
esta se produziu. Não se trata dos diários “em estado bruto” (o que se faz evidente
no fato de não serem apresentados como os diários de Ricardo Piglia, mas sim
como os de Emilio Renzi, seu alter ego literário): as amizades e os amores do
autor são dissimulados com uma letra inicial, e os períodos no exterior não
estão inclusos. Trata-se, afirma Piglia, de “converter-se em leitor de si
mesmo, ver-se como se fosse outro”; em última instância, da “leitura escrita de
uma escritura vivida”, que o autor anunciou em Los anos felices [No Brasil: Os anos
felizes, tradução de Sergio Molina, Todavia, 2019], o segundo volume da série.
Esta terceira e última parte, por
sua vez, narra “os anos da peste”, o período compreendido entre 1976 e 1982 em
que ocorreu a mais recente e cruel ditadura argentina. Nestes anos, Piglia viu
o assassinato e o desaparecimento de parte importante de suas amizades, evitou
como pôde o perigo, assistiu à destruição da sociabilidade intelectual do país
e presenciou (e foi partícipe ativo) das tentativas de reconstruí-la: primeiro
com a revista Punto de Vista, que fundou ao lado de Beatriz Sarlo e Carlos
Altamirano em 1978, e dois anos depois com a publicação de Respiración
artificial [No Brasil: Respiração artificial, tradução de Heloisa Jahn,
Companhia de Bolso, 2010], um dos romances mais importantes da literatura
argentina do século XX. O terceiro volume dos diários, portanto, tem seu ponto
de partida onde Los años felices terminava; todavia, ao contrário do se poderia
esperar, ele não se estende até o presente. A razão, argumenta Piglia, é que
por volta de 1983 teve início uma época pueril e que não merece ser contada:
“Antes, pensava Renzi, [os escritores] podíamos circular nas margens ligadas à
contracultura, ao mundo subterrâneo da arte e da literatura, mas agora éramos
todos estatuetas de um cenário empobrecido e devíamos jogar o jogo que dominava
o mundo. Não havia esperança nem vontade nem coragem para mudar as coisas ou,
ao menos, para correr o risco de viver de ilusões.”
A constatação da perda da
negatividade em sentido adorniano da literatura argentina posterior a esta data
(e a vontade de Piglia de aferrar-se a ela, que para aqueles de nós que
começamos a lê-lo na década de 1990 lhe conferia a condição de um raro anacronismo)
é apenas uma das muitas ideias deslumbrantes deste livro, em que seu autor discute
os modos de apropriação na literatura, a noção de “gesto”, a distinção entre
“enigma”, “mistério” e “segredo”, uma possível história alternativa da pintura
narrada por meio dos títulos dos quadros, as obras inconclusas como resistência
ao imperativo da perfeição formal, as relações entre narração e esquecimento
etc. A última parte dos diários mostra um Piglia muito distinto do das décadas
posteriores, um escritor atormentado por dúvidas vivendo uma existência
precária em uma cidade paralisada pelo terror de Estado em que o escritor
começa um romance para evadir-se do presente e este (o mencionado Respiração
artificial) acaba se convertendo em um dos testemunhos mais oblíquos e no
entanto mais relevantes do momento em que foi escrito; um leitor que toma
distância de seus entusiasmos iniciais (Jorge Luis Borges) e adquire outros
(Witold Gombrowicz, Martin Heidegger, Ludwig Wittgenstein), alguém que delineia
narrativas que não escreve, que fantasia com a transcrição de seu diário como
sua versão de Em busca do tempo perdido e que nele apresenta suas “reflexões
privadas sobre os modos de fazer e ler literatura” enquanto se permite alguns
juízos crus (e certeiros) sobre seus contemporâneos.
“Um diário – afirma Piglia –
registra os fatos em seu suceder, não os recorda nem os organiza
narrativamente. Tende à linguagem privada, ao idioleto. Por isso, quando alguém
lê um diário acaba por encontrar blocos de existência, sempre no presente, e só
a leitura permite reconstruir a história que se desdobra invisível ao longo dos
anos. Mas os diários aspiram à narrativa e nesse sentido foram escritos para
serem lidos (ainda que ninguém os leia).” Un día en la vida não enclausura a
obra do escritor argentino, cuja releitura à luz dos diários possivelmente
constitui uma das aventuras intelectuais mais fascinantes que a literatura em
espanhol tem a oferecer neste momento, mas sim testemunha seu término: de forma
comovente, o diário vai se dissolvendo em parágrafos cada vez mais breves e,
finalmente, em linhas que convocam o silêncio. Quando Piglia se cala, o leitor
tem um poderosíssimo vislumbre da inteligência de primeira ordem que se perdeu
com sua morte.
* Tradução livre de Guilherme
Mazzafera para “Ricardo Piglia em busca del tiempo perdido”, publicado em Letras Libres em 14 nov. 2017.
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