Poeta total
Por Eduardo Milán
1. Questão de justiça
A história da poesia latino-americana
é também a história da supremacia da língua espanhola sobre a língua portuguesa. Supremacia como
isolamento, isolamento como marginalização. Consciente de sua singularidade à
força, de sua alteridade caída do céu imperial, a cultura brasileira assumiu
sua deriva periférica, seu impureza numa pureza suspeitosamente impura e
igualmente mestiça que se encontrava deixada de lado.
Ensimesmada como um caracol
consciente de sua alteridade caracol começou a trabalhar seu próprio ruído de
mar. Resultado: no século XX, dois dos maiores momentos da cultura
latino-americana ― a Semana de Arte Moderna de 1922 e a fundação do movimento da
Poesia Concreta em 1956. O primeiro esplendor foi produzido por artistas como
Manuel Bandeira, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Mario de Andrade, Patrícia
Galvão “Pagu”, Carlos Drummond de Andrade, entre os mais importantes.
O segundo foi de responsabilidade de três
poetas nascidos em São Paulo: Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos.
O primeiro movimento constitui o chamado modernismo brasileiro, salto
qualitativo desta cultura ao assimilar as vanguardas europeias dos anos XX. Um salto
não epigonal: uma deriva latino-americana do estopim do vanguardismo movido por
um agudo espírito crítico. A prova é o Manifesto Antropofágico do visionário da
Semana de arte Moderna, Oswald de Andrade.
Num tudo ou nada que se apoiava numa
especial simbiose mítico-crítica, Oswald de Andrade propunha a devoração dos
produtos estéticos europeus, sua assimilação e a apresentação renovada de
outros produtos com igual valor de intercâmbio no mercado internacional. Proveniente
de uma cultura “marginal”, a visão oswaldiana era extraordinariamente radical. Como
proposta orgânica, a América Latina não apresentava antecedentes culturais de
enfrentamento à cultura importada. E como proposta orgânica, não existiu
continuação.
Do lado hispânico da língua, apenas a
atitude heroica dos herdeiros da vanguarda apresentou alternativas particulares
frente ao problema: Huidobro, Vallejo, Girondo, Lezama, Paz ― essa história que
já conhecemos, a história que se articula na necessidade de fundar uma avançada
crítica no interior da poesia latino-americana.
Apesar do eco da visão oswaldiana não
conseguir transpor a fronteira, ganhou projeção dentro dos limites da sua
própria língua, o lado luso. O Brasil volta à vanguarda: o movimento da Poesia
Concreta, mais consciente e articulado programaticamente que o anterior,
radicaliza a proposta até às suas últimas consequências e cai ao centro da discussão
ocidental: o poema concreto é a aposta ao limite do que é a tradição ocidental
criativa ou de concretude.
O Brasil entra na historiografia da
poética contemporânea por direito de radicalismo. Uma história da epifania cultural
latino-americana, derrubada já a mentira da barreira da língua, teria que
passar, em sua revisão atualizadora, pelo eixo modernismo hispano-americano ― modernismo
brasileiro ― poesia concreta. No nível dos movimentos orgânicos, este é o conto
que sei. Haverá outro?
2. Novo azo: sincronia e tradição
Se é bem verdade que a proposta
concreta coincidiu historicamente com algumas intuições estéticas europeias, como
a do suíço-boliviano Eugen Gomringer, o criador de um famoso poema, “Ping pong”,
jogo de fonemas que repicava na página, a derivação posterior ― isto é, atual ―
dos poetas São Paulo demonstrou que no caso brasileiro a aventura concretista não
se tratava de uma música oriental impressionista. Não se tratava, simplesmente,
porque a aposta da poética que propôs o concretismo brasileiro era praticamente
uma condição de sobrevivência cultural, muito parecida com o caso de Darío e do
modernismo hispano-americano.
Num continente de transposições culturais,
a história estética não se pode medir por um dicionário de autores,
encaminhados nessa longa fila indiana que propõe o tempo linear. Na América
Latina, civilização que é metáfora flutuante, se impõe uma política de
qualidade, de corte profundo no tempo estético para tratar de recuperar a
deficiência negativa que marca sua posição tardia na evolução ocidental.
Não poucas vezes os sonhos de
modernidade latino-americana produzem “monstros” que devoram a Europa. A verdadeira
ameaça notável no Ocidente, sua hora zero cultural, é o momento quando as margens
avançam sobre o centro. A necessidade de se apoderar do instrumental estético europeu,
praticada pelo concretismo brasileiro ou por um Octavio Paz do outro lado da
língua, era questão de vida ou morte.
Casos limites semelhantes, embora à
simples vista pareçam encontrados, são as poéticas propostas por um Lezama
Lima, um Borges ou, do lado norte-americano, de um Ezra Pound. A avidez de passado
desses autores, esse salto de erudição que para um scholar francês pode
parecer falsa, se origina e é exatamente paralelo (estratégias opostas e
complementares) à avidez de modernidade da poética concretista ou da poética de
Paz.
Tão parecidas são as experiências, que
um dos autores modelo do “paideuma” ― elenco de autores vivos num
determinado momento histórico ― que implanta o concretismo brasileiro é, justamente
Ezra Pound. Considerar o salto erudito-cultural da poética poundiana como inusual
e megalomaníaco, como o faz um autodeclarado pós-moderno, o brasileiro Affonso
Romano de Sant’Anna, é não entender nada, não saber qual solo está pisando.
Além disso, o enfrentamento ao passado de Pound não é uma reverência
sacralizante. Parte de uma necessidade de inventário: seu lema a respeito, “make
it new”, é claramente demolidor.
Diante da tradição e da busca pelo
novo e vigente em certos autores da tradição não apenas ocidental, Pound
inventa: torna-a presente, coexistente. A mesma política de invenção do passado
mediante a tradução foi praticada de forma parecida ao desenvolvimento de sua
poética, desde o início do movimento, pelos poetas concretos de São Paulo. A transcriação,
a proposta tradutória de Haroldo de Campos, parte da mesma base: a presentificação
do texto objeto ― seja de um autor do passado ou de um autor do presente ―
mediante a crítica e a invenção. Para os poetas concretos, traduzir,
transcriar, não é uma operação isolada: se origina na mesma necessidade de
modernidade que fundou seu aparato teórico-poético: a visão sincrônica da tradição.
3. Augusto, o augusto
Augusto de Campos (1930) é um dos mais
importantes poetas latino-americanos. Sua poesia inclui foi reunida pela primeira
vez em Viva vaia (1949-1979). É difícil abarcar em poucas linhas a
extraordinária riqueza da poesia de Augusto de Campos. Viva vaia é o
devir rigoroso e insubordinável de uma poesia que não cedeu jamais ao cânone
poético estabelecido na poesia brasileira ou latino-americana.
Desde seu primeiro livro, O rei
menos o reino (1949), escrito num perfeito hendecassílabo, dantesco,
passando por Poetamenos (1953), poesia que fazia um pendant entre
as cores dos fonemas e os sons e silêncios da música Webern, seguindo com o
extraordinário poema “Solange Sohl” e daí em diante pela fase concreta
de sua poesia e suas derivações intersemióticas e icônicas atuais, a poesia de
Augusto de Campos perseguiu uma só frente: a investigação das formas.
Acerta o poeta e crítico Antonio
Risério quando afirma que existem dois grandes temas na poesia de Augusto: a própria
poesia e o amor. Trata-se de um lírico da forma, de um poeta que canta o corpo
do poema como se cantasse a mulher, também cantada sob o prisma da forma do
poema.
Mas, acredito que o grande tema desta
poesia em sua última fase é o tema do estar, não o do ser, mas o do estar.
“Pulsar”, um dos melhores poemas do poeta é uma espécie de arte poética neste
sentido. Resultado de uma forma intersemiótica, intercalando signos
não-verbais, o poeta propõe a harmonia cósmica. Escrito sobre plano escuro,
noite escura de letra branca, o fonema e que se repete alternado é substituído
pela figura de uma estrela, que aumenta ou reduz seu tamanho enquanto o texto
avança, acentuando assim a sensação de profundidade espaço-estelar. Explicar o
poema é traí-lo. Para traí-lo totalmente, o apresento verbalmente:
Onde quer que você esteja
Em Marte ou Eldorado
Abra a janela e veja
O pulsar quase mudo
Abraço de anos luz
Que nenhum sol aquece
E o oco escuro esquece
Mais que traduzida a poesia de Augusto
de Campos em sua fase intersemiótica deve ser reproduzida como objeto e glosada
ao pé de página, tal é seu encadeamento de sentido. A micrologia da composição poética
de Augusto de Campos e sua união significante obrigaram ao tradutor muitas
vezes à reinvenção do poema. Tal é a proposta tradutora do poeta brasileiro.
4. Tradução de amor e anticrítica de
amor
A tarefa de tradutor exercida por Augusto
de Campos sempre correu paralela à tarefa crítica. Desde seu livro Verso,
reverso, controverso, o poeta busca no passado os poetas que cimentaram sua
mesma tradição: a de sua predileção. Aí estão vertidos para o português alguns dos
metafísicos ingleses e alguns poetas provençais. Sua versão de poemas de Arnaut
Daniel (“L’sur amara”, entre outros) atualiza de tal forma o travador provençal
que seus poemas parecem escritos hoje. E é a concepção da tradução reinventiva que
marca o tempo dos poetas que conformam a tradição do concretismo ocidental de
agora. A equação de Augusto Campos é clara: reinvenção = agoridade.
Em O anticrítico reúne autores
como Dante, Donne, Gertrude Stein, Paul Verlaine, Marcel Duchamp, John Cage,
Vicente Huidobro, Mallarmé, Lewis Carroll, Edward Fitzgerald e outros. Já no
título deste volume se alude uma operação crítica, embora seja tomada pelo seu
fim, já que, na verdade, se trata de uma síntese operacional de crítica e tradução:
para Augusto de Campos a tradução é fundamentalmente uma tarefa crítica na medida
em que seleciona, estabelece escolhas e valoriza.
Rever Dante, Doone ou Duchamp sob a miríade
de sua funcionalidade atual é deixar clara sua vitalidade e sua influência
presentes. A dupla ação crítico-tradutória é uma luta contra o tempo, um exercício
transtemporal. Reinventar Verlaine é evidenciar o lugar de seu trabalho poético
sob a ótica do concretismo. Evidenciar é a palavra: através do trabalho de
acentuação significante do repertório poético do autor-objeto, Augusto de Campos,
ao mesmo tempo que ilumina sua singularidade funcional dentro de sua época abre
lugar para a poética do referido autor na atualidade. Desta forma, Verlaine
escreve hoje.
Mas, também existe uma especificidade
crítica em relação à escritura reflexiva de Augusto de Campos. O poeta
brasileiro se nega a uma escritura escolástica que remete à retórica e ao
vocabulário abstratizante da crítica tradicional. A escritura crítica do poeta
paulista é essencialmente poética desde sua própria forma. A reflexão está
versificada: as linhas são cortadas ritmicamente pela respiração poética,
geralmente limitadas por períodos fônicos da fala cotidiana. A lógica do discurso
reflexivo é sabotada constantemente pela analogia, pelo jogo de palavras e
pelos paralelismos antitéticos. Em duas palavras: prosa porosa, uma definição
onde o adjetivo já por si trapaça o substantivo ao outorgar a este uma
respiração, um ar suplementar.
Na tradição do Valéry dos Cahiers,
de um Cage ou de Buckminster Fuller, a reflexão crítica sobre um autor se torna
inseparável da reflexão sobre a linguagem da qual se utiliza. Não só crítica
nem só anticrítica: metacrítica. Para Augusto de Campos, cujo eixo escritural é
a poesia, a reflexão tem que encontrar sua própria forma. Mais que uma prosa
preceptiva, sua escritura crítica se converte numa conversa entre homens
inteligentes. Isso estabelece um passo para uma interação sobre as distintas funções
da linguagem: não apenas a reflexiva e a poética, mas também a expressiva e
apelativa.
A eleição dos autores criticados / traduzidos
não pode ser, então, casual: regido por uma visão sincrônica do passado
literário, Augusto de Campos vai em busca dos fragmentos de um elenco que cimente
a concretude de sua mirada. E a leitura se torna necessariamente fragmentária. Não
se trata de traduzir uma obra completa ou um conjunto de poemas. Melhor,
trata-se de traduzir os momentos limites da produção de um poeta, onde o
tradutor vislumbra a ação concretizadora da linguagem objeto.
Neste aspecto, nada mais distante de
um exercício para Biblioteca. Como quem lê por fragmentos organizados por
prazer, por um ato de amor. Mas não um amor irresponsável e desperdiçável: o
rigor construtivo converte numa verdadeira ciência de amor. Ciência da
tradução mais consciência do instante poético luminoso: Augusto de Campos
traduz epifanias.
Em Linguaviagem reúnem-se dois
estudos-traduções baseados no que para o autor são afinidades eletivas evidentes:
sobre o par Mallarmé-Valéry e sobre o par Keats-Yeats, suspeitosamente unidos
pela representação de seus nomes na letra. De Mallarmé, traduz “Hérodiade”, de
Valéry, “Le jeune parque”. De John Keats, “Ode to nightingale” e “Ode on a
Grecian Urn”. Por sua vez, Yeats participa com “Sailing to Byzantium” e “Byzantium”.
E um aparte final: dois poemas de Aleksandr Blok ― “Ravena” e “Veneza”, que
entram no jogo por uma deriva simpática proveniente do tema de Bizâncio
e Salomé.
Como leitura alternativa ao seu estudo
comparativo sobre Keats e Yeats, o poeta brasileiro traduz um poema de Jorge
Luis Borges: “A John Keats”. O leitor se pergunta (independentemente da
afinidade conhecida entre Mallarmé e Valéry): qual razão une esses poetas? E
não deveria existir nenhuma. Que, além de rigoroso, Augusto de Campos é um
tradutor libertário. Mas, sim, existe uma razão: os poetas escolhidos são surpreendidos
justamente em seu limite de concretismo linguístico. Juntá-los sobre um mesmo solo,
por analogias diversas, mas cujo eixo é a criatividade, funda uma nova
tradição, uma nova história: uma história poética que independe da
linearidade dos acontecimentos, das distintas épocas e das biografias. Trata-se,
outra vez, das possibilidades reais da sincronia.
Surpreende o leitor o fato de Augusto
de Campos, apesar da posição marginal que elegeu para seu trabalho poético,
selecione autores de prestígio universal indiscutível. Mas é justamente esse o
desafio: ver o novo no que, de tão evidente, já está demasiado, aceite. Reafirmar
uma tradição, sim, mas continuamente submetendo a tradição à prova. Esta é uma das
chaves das tarefas da verdadeira crítica. Quando o geral é aceitar a sacralização
de ouvido, Augusto de Campos coloca à prova o som: verifica a legitimidade do acorde,
mede sua capacidade de duração. A tradução coloca em xeque a tradição.
Em O anticrítico e Linguaviagem
certifica-se que, para Augusto de Campos, a tradução, a crítica e a criação são
tarefas inseparáveis. Essa convicção também rege as práticas de Haroldo de
Campos e de Décio Pignatari. Situado à margem de uma língua marginal, a visão ética
e a consciência poética do escritor paulista são uma lição de vitalidade.
Para os que pretendem reduzir a tarefa
criativa dos poetas de São Paulo à fase ortodoxa da poesia concretista ― uma
imagem que funciona não apenas no Brasil mas também para o ponto de vista latino-americano
―, a lição de Augusto de Campos é uma escolha pelo devir poético, sem se
afastar um instante do presente. Uma poética que pode se condensar num lema do
qual Augusto de Campos não se distanciou: olhos novos para o novo, não importa
onde o novo se encontre.
* Este texto é a tradução de “Poeta total”, publicado na revista Vuelta,
de setembro de 1987.
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