O último cânone de Harold Bloom
Por Eduardo Lago
Há uma cena que ilustra perfeitamente a maneira como Harold Bloom (1930-2019)
teve de se relacionar com a literatura ao decorrer de sua longa existência: sua
forma de lecionar durante seus últimos anos de vida. Com a mobilidade
gravemente afetada, permanentemente conectado a um cilindro portátil de
oxigênio e afligido por inúmeras enfermidades que tornavam seu dia a dia
indescritivelmente difícil, o velho professor precisava estar em contato direto
com seus alunos.
Para satisfazê-lo, a Universidade
de Yale fretava micro-ônibus que transportavam pequenos grupos de jovens em
cuja presença o sábio se transfigurava. O espetáculo tinha uma espécie de
ritual sagrado. Dependendo do livro em questão, o exegeta sempre podia irromper
numa declamação de uma circulação de centenas de versos de poetas das mais
diversas épocas: Homero, Dante, Milton, Whitman, Emily Dickinson, Wallace
Stevens, John Ashbery... (E Shakespeare, claro, o bardo era para ele o centro
do universo).
Na poesia, mas também na prosa.
Bloom recitava de memória fragmentos de obras narrativas que, ao se impressos,
poderiam ocupar várias páginas. Como se se dirigisse a um oráculo que tinha a
amabilidade de lhe responder, o número de vozes invocadas inclui o mais sublime
(palavra-chave do seu universo) da literatura universal: Cervantes, Melville, Púchkin,
Proust, Virginia Woolf, James Joyce, Flaubert, Tolstói...
Bloom morreu aos 89 anos, dias
depois de ter dado sua última aula, deixando entre suas notas o esboço de
vários manuscritos dos quais dois foram publicados postumamente, o mais recente
e substancial é intitulado The Bright Book Of Life. Novels to Read and Reread
(editado pela Knopf [O brilhante livro da vida. Romances para ler e reler,
em tradução livre]). O volume tem uma característica notável na bibliografia de
Bloom: pela primeira vez, o estudioso dedica um livro exclusivamente ao romance.
The Bright Book Of Life
trata de cinquenta romances, os que mais o marcaram depois de os ter lido e
relido ao longo de mais de oito décadas (dos cinco aos quase 90 anos). Pode-se
suspeitar que se trata de um livro que o autor escreveu várias vezes, mas não é
o caso. A chave está no termo “releitura” que aparece no subtítulo. Bloom nos
alerta que cada vez que voltamos a um livro a experiência é diferente,
estética, cognitiva e emocionalmente.
Bloom garante, e quem o conheceu
de perto sabe que é verdade, que muitos dos livros que comenta (Proust,
Faulkner, Cervantes, Melville, Joyce) os lia todos os anos, alguns várias
vezes. Não é surpreendentemente, um crítico afirmou certa vez que assistir Bloom
na leitura inspirava-lhe medo físico. Uma das coisas mais interessantes do
livro é que os longos fragmentos que sabia de cor (e que às vezes recitava em
plena noite em voz alta para si, como é o caso de Moby Dick) estão aqui
e é uma experiência luminosa regressar a eles.
O favor que ela nos faz é
infinito, porque nos ajuda a reviver o que significou para nós ler Dom
Quixote, Anna Kariênina, O vermelho e o negro ou Em busca
do tempo perdido. Além disso, em alguns casos, pode ter o efeito
perturbador de apontar coisas que não vimos quando lemos alguns desses textos.
O efeito imediato é querer voltar a eles, o que é impossível, claro. Entre os
mais afortunados que virão a este volume incomum estarão aqueles que não leram
as obras explicadas nele, especialmente aqueles que não o fizeram porque são
muito jovens.
Cumprindo um de seus títulos mais
conhecidos, Bloom explica como ler e por quê. Há uma sombra que se projeta
sobre todo o texto de uma forma que não é ignominiosa, a da morte, de cuja
iminência o autor está perfeitamente ciente.
Uma das surpresas mais agradáveis é a presença de Ursula K. Le Guin, a quem Bloom dedica o livro, além de dois
capítulos substanciais. Do ponto de vista emocional, alguns dos momentos mais
valiosos que a leitura da obra póstuma de Bloom proporciona são os comentários
que o autor faz sobre sua amizade com autores ou estudiosos como ele, todos
desaparecidos. Ele começou a se aproximar de Le Guin muito perto do fim de suas
vidas e sua amizade comovente desenvolveu-se por meio de cartas.
Bloom diz que quando escreveu sua
última carta, o fez sem saber que a romancista havia morrido dois dias antes. O
momento é evocado com um profundo sentimento de nostalgia, o mesmo que toma
conta do leitor quando fecha este livro, cujo tom íntimo faz pensar na carta de
um amigo que não conhecíamos há muito tempo.
A viagem à cova de Montesinos
Os dois momentos mais chamativos
do livro póstumo de Harold Bloom, The Bright Book of Life, são talvez o
prólogo e o epílogo, em que ele se despede da vida com uma emoção mal contida.
Seus títulos anunciam de maneira comovedora um aspecto relativamente pouco
conhecido do crítico e brilhante estudioso: o do puro criador, o ourives da
palavra capaz de modular sentimentos e pensamentos ao redor, desnecessário
dizer, do território, para ele sagrado, da literatura.
O prefácio é intitulado “The Lost
Traveller’s Dream” [O sonho perdido do viajante] e nele viaja, entre outros
lugares onde se passa o inefável, à cova cervantina de Montesinos para, a
partir daí, dar forma, com serena beleza, ao sonho dos livros que o
acompanharam até o fim.
No epílogo, ele brinca com a ideia
de eternidade, intercalando seus pensamentos com as vozes de quem o guiou na
jornada que acaba de terminar: a do livro que ele não conseguiu findar porque é
um livro sem fim.
Este é o início do último
parágrafo: “Várias noites atrás, na véspera de meu 88.º aniversário, tive um
sonho em que apareciam crianças trocadas de berço ao nascer.” E ele cita algumas
delas, todas as personagens dos livros que nos ensinou a ler.
Quatro séculos de tradição
ocidental
O percurso de The Bright Book
of Life começa com o Dom Quixote (1615) e termina com Book of
Numbers [O livro dos números] (2015), de Joshua Cohen, uma das vozes mais singulares
da ficção estadunidense recente. Nesse arco temporal de quatro séculos, Bloom
escreve sobre 52 romances que marcaram a tradição literária no Ocidente e que
vão desde O morro dos ventos uivantes, de Emily Brontë, ao Ulysses,
de James Joyce, Moby Dick, de Herman Melville, O homem invisível,
de Ralph Ellison, Os anéis de Saturno, de W. G. Sebald ou Ao farol,
de Virginia Woolf.
Joshua Cohen é, junto com Cormac
McCarthy (Meridiano de sangue), os únicos autores vivos na lista. Entre os
autores escolhidos há poucos com dois títulos: Stendhal (O vermelho e o
negro e A cartuxa de parma), Charles Dickens (A casa soturna
e Nosso amigo em comum), Ivan Turguêniev (Memórias de um caçador
e Primeiro amor), Henry James (Os embaixadores e A princesa
Casamassima), D. H. Lawrence (O arco-íris e Mulheres apaixonadas)
e Ursula K. Le Guin (A mão esquerda da escuridão e Os despossuídos).
Apenas Joseph Conrad (Nostromo, Sob os olhos do Ocidente e O agente
secreto) conta com três livros na lista. E Liev Tolstói é o mais citado na
lista, com quatro romances: Guerra e paz, Anna Kariênina, Khadji-Murát
e Os cossacos).
Ligações a esta post:
>>> A lista completa está disponível aqui, no Tumblr do Letras.
* Este texto é a tradução de “El ultimo canon de Harold Bloom”, publicado aqui, no jornal El País.
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