Maria Lúcia Alvim, razão das coisas imprecisas
Por Pedro Fernandes
Maria Lúcia Alvim, anos 1970. Arquivo Jornal O Globo. |
A vida é um todo
fragmentar esse
todo é meu grande deleite
(Maria Lúcia Alvim)
Maria Lúcia Alvim voltou às
pequenas rodas de conversa sobre poesia em 2020. Sim, pode não parecer, mas
esses círculos existem, mesmo feitas de uns poucos que falam e, por vezes,
ignoram os que ouvem e também querem falar ― em alguns casos, bem
compreensível, afinal habitamos um país de muitos interesses e poucas atitudes,
de muitos poetas, uma dezena a cada esquina, e raros leitores. Noutros não. É
um pequeno pacto de silêncio assumido tacitamente num misto de necessidade de
ignorar e de não ampliar seu pequeno círculo. Há mesmo o caso desses poucos que
falam e ignoram que se fazem autores da cobrança sobre determinados silêncios.
É uma selva. Dizemos isso para acrescentar uma linha à observação feita por
Guilherme Gontijo Flores em “Maria Lúcia Alvim no rol do esquecimento: a vida e
a vida da poesia”, texto acrescentado em modo de introdução ao Batendo pasto,
o motivo do retorno da poeta mineira a algum interesse no debate. Para ele, a
atitude resguardada de alguns escritores se desencontra com o acesso à academia
“e as rodas dos contemporâneos se voltam, um tanto cega e exageradamente, para
as grandes cidades, sobretudo Rio de Janeiro e São Paulo”. É verdade. Mas há
outra verdade: a da política profundamente enraizada entre nós dos que olham
melhor para o seu umbigo.
A história de publicação de Batendo
pasto foi sintetizada por aqui noutra ocasião, mas não custa repetir. Este
livro estava pronto havia algumas décadas e dois leitores que tiveram recente
contato com outros títulos da poeta, sobretudo a antologia Vivenda,
publicada em 1989 na coleção Claro Enigma, decidiram saber mais acerca do
destino da obra e da autora. A descoberta da poesia de Maria Lúcia leva esses
dois aventureiros da palavra a outro encontro: com Maria Lúcia ainda viva e com
um manuscrito confiado por ela a um amigo com a recomendação de publicação
apenas depois da sua morte. Os dois leitores / aventureiros são os também
poetas Guilherme Gontijo Flores, antes citado, e Ricardo Domeneck, este que
numa estadia no Brasil consegue estabelecer uma ponte com a poeta e que ela se
desfaça da ideia de colocar um livro à espera dos leitores do futuro. O amigo
detentor do manuscrito, o poeta e tradutor Paulo Henriques Britto, quem, não
apenas carregava a missão recomendada, como chegou a escrever sobre a poesia
reunida no livro que, graças ao empenho de todos, se fez chegar através da
Relicário Edições.
O caso de Maria Lúcia Alvim é,
repetidamente, tido como sui generis nas escolhas envolvidas nas
determinações sobre o funcionamento dessa linha chamada de tradição e que de
alguma maneira nos orienta a compreender as obras produzidas no nosso tempo.
Embora nada disso seja casual, também não é motivado propositalmente como poderá
acreditar algum ingênuo. O grau de esquecimento varia. Passado algum tempo é
possível ver melhor que o esquecimento da poeta de Batendo pasto tinha
tudo para ser provisório: o livro talvez viesse a público, afinal não estava em
mãos de qualquer um; ela pertence a um seleto grupo familiar, do qual se
destaca o irmão Francisco Alvim; e nem estava seu nome sepultado ―
ele aparece no rico Roteiro da poesia brasileira, organizado por André
Seffrim e numa simpaticíssima coleção preparada pela editora Bem-Te-Vi, onde
estão outros nomes de igual importância e talvez mais esquecidos que ela. E o
que dizer daqueles ignorados? Muitos presentes ao reduto impedidos de falar da
referida confraria? Como podemos nos livrar dessa mesquinhez sustentada em
parte pela arrogância dos autobeatificados? Obviamente que isso em nada reduz o
absurdo de qualquer silenciamento, mas é sempre interessante ampliar os
elementos motivadores.
Maria Lúcia Alvim nasceu a 4 de
outubro de 1932, em Araxá, Minas Gerais. Cedo se fez autodidata interessada em
artes plásticas e literatura ― seus dois campos de interesse e de
criação. Realizou algumas exposições e publicou seis livros. Sua estreia
literária foi com a publicação de XX sonetos, em 1959; foi este o título
reeditado em 2011 na coleção Canto do Bem-Te-Vi. Depois vieram outros cinco
títulos: Coração incólume e Pose (1968); Romanceiro de Dona
Beja (1975); A rosa malvada (1980); e Batendo pasto (2020).
Parte dessa produção poética foi reunida na antologia Vivenda (1989). Na
leitura sobre esta antologia, Berta Waldman sublinha que “soam várias vozes
poéticas na poesia de Maria Lúcia Alvim”, entre os quais, ela destaca Jorge de
Lima, Carlos Drummond de Andrade, Mário de Sá-Carneiro, Sá de Miranda, Louise
Labé, Cecília Meireles, Stephane Mallarmé, Paul Valéry e Francisco Alvim; a
variedade de nomes e de poéticas favorece o que Waldman designa como “nível de
dissonância na própria matriz de sua escritura.” Mais tarde, no texto escrito a
partir de um poema do último livro publicado em vida, Paulo Henriques Britto reafirma
essa compreensão, acrescentando outros nomes, como Laforgue e Emily Dickinson.
Guilherme Gontijo Flores, no já
referido texto de abertura sobre Batendo pasto, livro que esperou quatro
décadas para ser apresentado ao público, diz que “ela foi capaz de operar um
aprofundamento subjetivo que deixa no chão a maior parte da geração de 45”. Antes
da afirmativa, parece pertinente revisitar a inviabilidade, ou pelo menos parte
dela, da ideia de geração para se falar sobre os escritores e sobretudo os
poetas que apesar de se constituírem graças as diretrizes libertárias do
modernismo, buscaram se afastar progressivamente dos modelos oferecidos então,
constituindo, isoladamente múltiplas dissonâncias, ou individualidades poéticas
que, vistos de agora, constituem um rico caleidoscópio com linhas das mais
variadas de criações.
João Cabral de Melo
reconhecendo-se poeta isolado entre os demais já esclareceu que a partir
da naturalização do ideário modernista se fez recorrente a noção do poeta individual,
este que casual ou propositalmente não se deixa apreender por nenhuma das
grades de leitura uniformizadoras das obras de um tempo. Mesmo o poeta
estabelecendo os laços com uma ampla tradição e é impossível deixar de fazê-lo ―
como entrevisto no caso de Maria Lúcia Alvim ― resulta problemático o
colocar em relação com, visto que seu interesse aparece motivado exatamente
pela distinção individual de sua voz entre as demais dentro e fora de seu tempo.
Isso é parte de uma maturidade consciência poética, expandida no arco da individualidade,
um exacerbamento daqueles protocolos criativos demonstrados durante o
Romantismo; e é uma das conquistas mais significativas da poesia no nosso tempo,
para qual contribuíram quase todos os poetas desde o início do século XX, ainda
que este não seja um fenômeno específico de uma época.
À primeira vista, o conceito de
geração pressupõe justamente certa uniformidade feita da linhagem ou grau de
parentesco. No caso da geração de 45, não é este puramente; o traço que os une,
especificamente no Brasil, uma vez que o distintivo parece ter se constituído na
crítica hispano-americana, é a diferença e, por oposição ao modernismo, a
descontinuidade, perceptível em qualquer obra poética que se coloque em
aproximação. Logo, o que faz a poeta mineira nada mais é que a constituição de
sua idiossincrasia. Quaisquer interesses de integração é, simultaneamente, distanciamento,
por vezes, negação e ruptura. E isso não funciona como um jogo de competitividade
vocal; é, quando muito, sua situação entre as vozes estabelecidas. De maneira
que, todo seu esforço repousa exclusivamente nele próprio. Uma competição feita
de um jogador com seu jogo. Daí, a variabilidade dos resultados.
Os dois versos que funcionam como
epígrafe dessas notas oferecem uma leitura peculiar sobre a obra de Maria Lúcia
Alvim. Primeiro, como prática criativa. Segundo, como autoafirmação poética.
Toda sua poesia rejeita a uniformidade porque persiste numa revisão contínua de
seu próprio universo ― fabricado ora pelo deslocamento de suas peças ou do que toma
da tradição. Como um exercício de colagem. Nesse sentido, o poema seguinte é
sempre distinto do anterior porque o que se busca é alcançar o original, o centro
intocável e arredio do sentido. Mesmo quando a poeta retoma formas
estabelecidas, como é o caso do soneto ou o do romanceiro, não as pratica
integralmente, obedecendo eventuais os modelos estabelecidos, mas os subverte,
tornando-os peças suas.
Um livro singular, nesse sentido,
pela dinâmica, pela variedade de experimentações com os modelos poéticos,
alguns em voga no seu tempo, como o poema piada, é A rosa malvada. Desde
o título, a poeta aposta numa dicção trocista pelo acerto feito em modo desconstrutivista
com uma cantiga popular. Os motivos aparecem capturados do que a poeta tem ao seu
alcance, os mesmos encontrados em qualquer obra poética, como dissemos, algumas
formas das mais recorrentes entre os poetas de então, mas nem estes tampouco aqueles
se repetem. Este livro é um vasto canteiro feito para o experimental ―
um termo que bem poderia nos oferecer uma precisa síntese da poética de Maria
Lúcia Alvim. Aqui, a poesia (esse sopro do acaso) deixa de ser epifania e se
manifesta melhor como falha, como se resultada do impasse entre o roçar
irregular entre uma camada e outra de linguagem.
Em Batendo pasto, por exemplo,
o título encaminha para certa imagem idílica; nossos sentidos se deixam capturar
para o ambiente rural e o envolvimento das gentes do campo no preparo da terra
para o plantio. Uma vez instalados nesta atmosfera agreste, reencontramos muitos
elementos dessa paisagem, mas se desfaz o idílio, porque se converte noutra
variedade de campos e, logo, de outros sentidos: o corpo, as paixões, o
interior e suas variações, o episódico, o próprio poema e a poesia. Já a forma informe
repete o mesmo circuito do primeiro livro: a poeta continua a revolver seu
campo de experimentação, fazendo-se muitas vezes de novos níveis de expansão. A
natureza, nesse caso, é apenas um estímulo. E a partir dele ergue-se o poema. Essa
leitura logo nos favorece desfazer o devaneio para compreender que o título evoca
puramente o ato criativo: sendo este um livro feito ao espelho de A rosa
malvada, este se configura no campo roçado.
E uma vez situados nesse campo de linguagem
rural, vale evocar outro poeta. Em o Livro de pré-coisas, Manoel de
Barros compreende seu trabalho a partir de um símile: “Minhocas arejam a terra;
poetas, a linguagem.” Ora, o que faz Maria Lúcia Alvim é bem isso. A abertura de
sentidos oferecida desde o título da sua obra recente ― ou no caso do livro de 1980 ― esclarece
bem o que dizemos; é linguagem arejada. Este talvez seja o elo que reúne todos
os poetas numa só geração. Nem maiores, nem melhores, apenas poetas. E é já
suficiente.
Maria Lúcia Alvim vivia em Juiz de
Fora e morreu em decorrência de complicações pela Covid-19 no dia 3 de fevereiro.
Ainda viu alguns pequenos sinais de reconhecimento e ensaiou saídas do silêncio
como uma voz do passado que voltasse para nos cobrar o que o círculo que a
redescobriu simplesmente fez: ouvir falar os que não nasceram para
silenciamentos. Fosse mais cedo, talvez refizesse suas apostas públicas na poesia,
já que certamente nunca se desfez delas ao longo da vida. Ou talvez não. As
distâncias entre a sua estreia e a obra da maturidade são igualmente longas as
de publicação de Batendo pasto e A rosa malvada. Talvez tudo tenha
sido propositalmente pensado, porque todo poeta sabe quando fez o necessário. E o necessário nunca é esse excesso de mídia e de má poesia que praticamos.
Desintegrada a
Beleza
tudo mais é atitude ―
que exceção da
Morte
que é o Sono-Virtude.
(Maria Lúcia Alvim)
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